No 25º dia de isolamento em casa, meu marido fez a mala, pegou um saco de papel pardo com alguns alimentos e se mudou para um Airbnb, a cerca de 3 quilômetros de distância da nossa casa. O nosso casamento de 25 anos balançava, e nós precisávamos dar um tempo, então ele se foi.
Nos 24 dias anteriores, nós cinco - nosso filho Tyler, a namorada, Irina; nossa filha Alexa e eu e meu marido - ficamos fechados em casa, saindo apenas raramente em caso de absoluta necessidade. Acabaram-se os deslocamentos a trabalho para mim. Fim das viagens diárias para o escritório e as noitadas para Jason. Fim da vida no campus para Alexa. Acabara o apartamento para Tyler e Irina, que ficou na nossa casa a fim de evitar riscos na convivência com as colegas de quarto, por causa da pandemia.
Encomendamos puzzle e jogos, passeamos com o nosso cachorro nas ruas estranhamente desertas, fizemos café e ovos mexidos, nos esbarramos na cozinha nas horas de descanso entre uma e outra reunião no Zoom, e novamente depois das 6 da tarde para preparar o jantar. Alexa e Irina orbitavam ao meu redor, fazendo um ano de perguntas em menos de um mês. “Quando você põe o sal?”, “Como tirar raspas de limão?”, “Mostre como faz o macarrão”.
Depois, no 25º dia, tudo se estilhaçou. Eu estava deitada no chão frio do banheiro com a mão na boca para que os filhos não me ouvissem chorar quando Jason se foi. Na sua ausência, os dias passaram como se eu estivesse debaixo d’água: sufocada, flutuando, numa profunda depressão. Meu coração pulava tano que a médica pediu um ECG, que em duas leituras separadas, mostrou anomalias.
“Quero que você use um monitor Holter”, ela disse.
Mas eu não suportava a ideia de algo tão perto do meu coração desregulado. E prescreveu uns pequenos comprimidos para eu mastigar.
Os amigos me contaram que Jason estava tendo uma crise da meia idade.
Sim, eu suponho, mas dar nome ao problema - até algo tão gasto e comum como uma crise da meia idade - não ajudou meu coração machucado. Meu marido (quem sabe em breve ex-marido?) ia e vinha, alternando entre o Airbnb e as visitas aos filhos.
Em uma visita, ele disse: “Estou com outra pessoa. Só queria que você soubesse”.
Acenei com a cabeça, fui para dentro e fiz meu próprio inventário de outras pessoas. Reuni fotografias, retirei o rosto sorridente do meu marido para me postar nesta versão da vida adulta da verdade ou mesmo ousar. A verdade está no texto, ousaria um telefonema? Não ousaria absolutamente um encontro em pessoa nestes tempos estrangulados pelo vírus. Nem ele, prometeu Jason.
“Acho que as coisas acontecem por alguma razão”, ele disse. “Quarentena significa que nenhum de nós dois pode realmente ir embora”.
Mas de certo modo, eu saí; deixei a vida que eu conhecia. Bebi demais e comi de menos. Dormi de menos e pensei demais.
Reuni mais fotos, balancei aqui e ali, namorei online com homens diferentes. Eliminei os fumantes, os motoqueiros e os que confundiam “você” com “voçê”. Parei de ficar olhando fotos de família e comecei a examinar retratos de homens antes da pandemia, na praia, de férias, de terno, no escritório. Meu marido levantara o véu. E eu estava vendo um mundo lá fora que nunca havia visto antes, um mundo repleto de pessoas diferentes e várias possibilidades.
O Dia das Mães caiu no 48º, mais de três semanas depois que Jason se fora. Alexa, que costuma ignorar artes e artesanatos, fez um etreito com as palavras “Feliz Dia das Mães” em letras de papel. Toquei cada letra, enxugando as lágrimas, tentando lembrar a mim mesma que, independentemente de qualquer outra coisa - covid-19, divórcio, morte - eu ainda era uma mãe.
Estava começando a desaparecer. Parei de cozinhar e mal comia.
Tyler, que costumava dizer, balbuciando como uma criancinha de 4 anos : “Você é uma boa cozinheira, mamãe”, passou a dizer: “Você está horrivelmente minúscula, mamãe”.
Ainda nos reuníamos na cozinha à noite, somente nós quatro, a quinta cadeira vazia cuidadosamente ignorada, mas a comida me dava uma sensação de saturação. A fome e o hábito desapareceram . Não me dava conta de que a geladeira estava quase vazia até que Tyler e Irina voltavam do supermercado.
Irina me deu um buquê de rosas cor de rosa e me abraçou enquanto eu chorava. Tyler, que me acordava às 2 da madrugada com um ataque de pânico, estava perto e limpou os olhos como faziadepois do cochilo de criança. Desejei ter um cobertorzinho para ele, para todos nós.
O 66º dia foi o aniversário de Irina, mas a pandemia eliminara a maioria das comemorações. Toquei o meu cartaz do Dia das Mães como se fosse um talismãe pedi a Alexa que modificasse as letras para “Feliz Aniversário”. Penduramos o novo letreiro do lado de fora para um jantar socialmente distanciado com as poucas pessoas do nosso casulo, inclusive Jason, que parecia ao mesmo tempo desajeitado e normal.
Comecei a fazer longas caminhadas; Jason comprou uma bicicleta.
“Asmanhãs são as mais difíceis”, falou. “Me sinto só”.
As manhãs eram mais fáceis para mim, a luz da janela me lembrava de que o sol ainda nascia, apesar da minha tristeza. A minha luta era à noite, com medo do escuro, de dormir ou não dormir, dos sonhos e das lembranças.
Os dias foram passando, ainda disformes, bagunçados. Desliguei a câmera durante os chamados de trabalho online no Zoom e apoiava a cabeça na mesa. Depois que anoitecia, Alexa se enrolava perto de mim e olhávamos programas bobos de TV.
“Não sou apenas triste”, ela disse. “É muito mais do que isso. Sinto como se toda a minha vida tivesse virado de cabeça para baixo”.
“E virou”, eu dizia abraçando-a com força.
Semanas se passaram. Jason corria de bicicleta, eu continuava com Bumble. Bufávamos, sussurrávamos, gritávamos, ficávamos calados. Ele ia e vinha do seu Airbnb, tão perto e no entanto tão longe.
Caminhei e caminhei, tentando voltar gradativamente a ser eu mesma, como um interruptor que aos poucos volta a ligar. Parei com os comprimidos brancos, comecei a comer, dormir, ler, até sorrir. Jason vinha para levar o lixo para fora, para pôr gasolina no carro. Trazia compras do mercado, comida para o cachorro, meu café gelado favorito.
Ele me convidou para jantar; comemos calados em seu apartamento mínimo, nervosos como em um encontro às cegas. Ficamos carinhosos e desajeitados, vacilando entre a paixão e a dor.
“Desculpe”, ele disse. “Quero voltar para casa. Tenho saudade de você”.
“Sente saudades de mim ou da nossa vida?”
“De você”, respondeu. “É de você”.
No começo, suas palavras eram calmas e pouco convincentes. E o véu foi levantado: Eu ia para trás e para frente entre as lembranças dos nossos 29 anos juntos e as mensagens de texto entre a outra pessoa e Bumble. Ficava indagando como seriam os 29 anos seguintes, e o que eu queria.
Jason me comprou uma bicicleta. Pedalamos quilômetros na praia em um silêncio forçado. Sentados na areia vazia, depois, ele se inclinou sobre mim e disse: “Posso beijar você?”
Eu me curvei, abrindo os meus lábios para ele. Parecia nostálgico e novo. “É tão estranho”, falei; pensei que ele fosse chorar. Eu estava triste, presente e esperançosa. O futuro, embora incerto, estava bem à nossa frente.
“Desculpe”, repetiu, mas não tão frequente a ponto de não parecer sincero. “Compreendo que você precise de tempo. Só sei que sinto a sua falta e que te amo muito”.
Avaliei 29 anos com o homem que é o pai dos meus filhos, que conheceu meus avós, com quem mais adoro viver, em comparação a um novo capítulo de diferentes possibilidades. Pensei nos anos entre nós e os anos à frente.
No 98º dia, comemoramos o aniversário de Tyler. A Califórnia começava a reabrir. Amarrei o avental e fiz os pratos de que Tayler mais gostava: molho de cebola, salada de macarrão, torta de biscoitos de chocolate.
“Você voltou a ser chef, mamãe”,disse Tyler. Comemoramos no jardim, em baixo do letreiro que ainda dizia “Feliz Aniversário”.
“Eu te amo”, disse Jason ao sair da nossa pequena festa, e eu lembrei de nós, pais recentes, na sala de parto, demasiado felizes e apaixonados para saber quanto seria difícil.
“Também te amo”, eu disse.
O aniversário de Alexa foi no 109º dia, 84 depois que Jason partira, Nós cinco comemos crumble de mirtilos sob o letreiro, e depois Alexa soprou as velinhas. Jason pigarreou, e falou, com voz emocionada: “Quero dizer o quanto estou triste por tudo o que aconteceu. Mamãe e eu decidimos - estou voltando para casa”.
Na manhã seguinte, ele estava de voltacom sua mala e mais sacos de comida do que quando saíra meses antes.
Tínhamos chegado à beira do abismo, balançado, tropeçado. Quando ele quis pular, eu o puxei de volta.Quando eu dei um passo à frente, ele me agarrou. No fim, ele segurou minha mão e eu a dele, cada um impedindo que o outro pulasse, até que conseguimos dar a volta e mais uma vez nos escolhemos. Agora, aprendemos o bastante para saber que o penhasco está sempre ali, e que amar é escolher e continuar escolhendo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.