Modern Love: Dois beijos sobre os quais nunca falamos


Às vezes você realmente tem que estar presente para o seu ex; este foi um desses momentos...

Por Alessandra Ranelli

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Kevin e eu nos separamos há dois anos; só continuamos casados no papel. Com tempo e muita terapia, conseguimos encontrar o caminho para uma amizade genuína, e sei que muitas pessoas não podem dizer isso. Mas como americanos morando em Viena, não sentimos a necessidade de terminar oficialmente nosso casamento.

Mantemos bons limites, exceto por uma segunda-feira em janeiro passado, quando fomos comemorar seu novo emprego. Depois de algumas taças de Aperol Spritz, voltamos para casa. Em frente à estação do metrô perto da Catedral de St. Stephen, no topo da escada rolante, Kevin me deu um beijo de despedida. Primeiro na bochecha, depois nos lábios. Sem língua, nada selvagem. Ele disse que era “por hábito” e “tecnicamente ainda somos casados”.

Eu disse boa noite e que iria buscá-lo para sua colonoscopia na sexta-feira, porque “isso é um trabalho para sua ainda-esposa-técnica”.

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Kevin me beijou na segunda-feira e descobriu que tinha câncer de cólon na sexta-feira, e nunca conversamos sobre o beijo.

O câncer estava no estágio 3B. Este é um código alfanumérico que você pode pesquisar no Google se estiver com vontade de ler uma longa lista de números de partir o coração.

Aqui está outro número de partir o coração: Kevin tinha apenas 31 anos.

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'Encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas' Foto: Brian Rea/The New York Times

Tenho muita experiência com câncer, não o meu, mas de tantos amigos e familiares que perdi a conta. Minha mãe morreu de câncer no pâncreas quando eu tinha 19 anos. Essa experiência me tornou ótima em emergências - boa em atender telefonemas no meio da noite, acostumada a ouvir meu nome ser chamado por ajuda.

Eu fui feita para esta situação. Eu fui feita para estar lá para ele. Após receber a notícia, fui ao apartamento de Kevin, onde ligamos para a mãe dele. Eu era a única família de Kevin aqui. Ela entrou na internet para renovar o passaporte e eu encontrei um apartamento para ela alugar.

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Eu não disse isso em voz alta, mas sabia que não poderia mais ser a esposa. Eu poderia ser a amiga, mas não a esposa.

Fiquei na casa de Kevin naquela noite. Dormimos com nossa roupa de baixo. Já fazia muito tempo que meu corpo não era algo sensual para ele. Quando estávamos juntos, ele me abraçava no início da noite antes de rolar para o seu lado da cama. Mas naquela noite permanecemos no mesmo lugar, o suor se acumulando entre nossos corpos.

Eu ia lá com frequência nas primeiras semanas para ajudá-lo a se organizar e contar piadas de mau gosto que nos faziam rir até chorar. Fiquei com ele depois da cirurgia, depois da notícia de que o câncer havia se espalhado. Meu pai voou para Viena para um apoio moral. A mãe de Kevin também veio e assumiu as coisas.

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Ela ficou com ele após as primeiras sessões de quimioterapia. Sentei-me no meu apartamento, que tinha sido nosso apartamento, olhando para o meu telefone até adormecer às 5 da manhã. Soube na manhã seguinte que Kevin teve complicações. Ele acordou às 3 da manhã, gritando de dor de estômago. Ninguém tinha me ligado. Uma ambulância foi chamada. Ele recebeu medicação para a dor. Os médicos não tinham ideia do que estava acontecendo, ou porquê.

Sua mãe ficou até seu visto expirar. Então foi a minha vez de cuidar dele após a quimioterapia. Eu me preparei para ser a pessoa que talvez tivesse que chamar uma ambulância.

Lembrei-me da manhã em que acordei com os gritos de meu pai, quando segurei minha mãe em convulsão em meus braços, quando ela cuspiu em meu cotovelo. Na manhã em que ela ficou azul, eu implorei para ela respirar e implorei para que ela ficasse comigo.

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Para ser justa, todo câncer é diferente e todo amor é diferente. Para ser justa, ela ficou comigo, por um tempo.

Kevin me disse que a dor geralmente durava cinco minutos. Nosso plano: fazer o possível para evitá-la. Se isso acontecesse, ele poderia gritar em um travesseiro enquanto eu programaria um cronômetro. Eu disse que se passasse um segundo depois de cinco minutos, eu chamaria uma ambulância. Eu nunca tive a chance de programar o cronômetro.

Pouco antes das 21h, Kevin tomou um remédio para dormir e vestiu um pijama. Lavei alguns pratos, algo que eu fazia melhor como amiga do que como esposa. Vesti minha camisola, tirei minha calcinha e percebi que a limpa estava na minha bolsa. Eu estava escovando os dentes quando Kevin chamou da outra sala. Larguei a escova de dentes e corri. Então, de acordo com o plano, Kevin gritou. Ele engasgou e se enrolou como uma bola. Ofereci-lhe o travesseiro, mas ele não aguentou. Então ele parou de respirar.

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Liguei para o 144, o equivalente austríaco do 192, e dei informações militarmente eficientes sobre sua condição e nossa localização.

Um minuto depois, o corpo de Kevin relaxou, o arco em suas costas cedeu e ele fez um barulho horrível. Então, ele respirou novamente, com o ar sufocando em seus pulmões. Ele parecia estranhamente - bem? Peguei a bolsa de emergência, coloquei as calças nele e esperei os paramédicos.

Isso foi há um ano, durante outra onda de Covid. Fui vacinada com três doses, tinha me recuperado da Covid há 30 dias, tinha um certificado para provar isso e um PCR negativo de 24 horas, além de ser legalmente casada com o homem na maca, mas mesmo assim eles não me deixaram entrar na ambulância. Então eu o observei ir embora.

Pedi um táxi e liguei para um amigo enquanto esperava. Eu não chorei. Quando o táxi me deixou, desci do carro e percebi que estava na rua, no frio, vestindo apenas uma camisola e sem calcinha.

A terrível realidade do mundo é que, em qualquer história de amor, existem duas opções: ou você se separa ou alguém morre. A morte é o cenário célebre, exultante em votos tradicionais. Nós escrevemos os nossos votos, então eu nunca concordei com a coisa toda de “até que a morte nos separe”. E, no entanto, aqui estava eu de qualquer forma.

Houve um momento no início de nosso relacionamento em que Kevin me visitava em Nova York. Ele acordou uma manhã com a luz da janela do meu quarto brilhando em seus olhos, fazendo-os enrugar, e estendeu as mãos trêmulas para agarrar meu rosto. Ele parecia um velhinho e, naquele momento, pude ver toda a nossa história se desenrolar. O cenário célebre e tudo. Então talvez eu tenha concordado com isso.

Kevin sobreviveu à noite. Para sua quarta rodada de quimioterapia, eles o internaram no hospital. A essa altura, a quimioterapia estava afetando seu funcionamento cognitivo. Enviei-lhe uma lista de todas as coisas que precisava trazer. Ele esqueceu de ler. Naquela tarde, ele mandou uma mensagem: “Você poderia me trazer um carregador de celular?”

Fiquei irritada, mas levei, pois precisaria saber se Kevin ainda estava vivo, e para isso precisava que ele tivesse um celular funcionando. Perguntei se precisava de mais alguma coisa e ele disse que não. De qualquer forma, levei comida para ele, porque a comida do hospital é terrível e ele não teria vontade de comer depois da quimioterapia, mas acordaria com fome mais tarde, e porque fui treinada para isso.

Eu não podia entrar no hospital sem um PCR negativo, então ficamos do lado de fora da entrada entre os fumantes e guardas de segurança. Estava frio, o que desencadeou sua neuropatia, um belo efeito colateral. Fiquei lá com meu não-marido e dei a ele o carregador do celular. Ele pegou os lanches e disse: “Você é a melhor”.

Eu disse a ele para verificar se eu ainda era seu contato de emergência. Eu o beijei na bochecha, e depois brevemente nos lábios, e nunca conversamos sobre o beijo.

Fui a um bar a quatro quarteirões de distância, pedi um uísque sour e olhei para o meu celular, implorando para não tocar. Eu tinha acabado de reorganizar meu dia inteiro para levar para o meu ex-marido um carregador de celular que eu já havia dito para ele não esquecer, um encontro que durou cinco minutos, e agora aqui estava eu, irritada e sozinha.

Mas se você perder alguém que ama, como eu posso perder Kevin em breve, você vai se culpar por perder os cinco minutos que poderia ter passado do lado de fora da entrada de um hospital no frio congelante entre os fumantes e os guardas de segurança.

Portanto, encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas. Invente uma desculpa ridícula para passar uma tarde na companhia delas: vá comprar fita adesiva, observe-as fazendo compras, o que for. Ligue agora mesmo para a pessoa que você mais ama e diga: “Preciso comprar cartuchos de tinta para minha impressora. Você gostaria de vir junto?” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Kevin e eu nos separamos há dois anos; só continuamos casados no papel. Com tempo e muita terapia, conseguimos encontrar o caminho para uma amizade genuína, e sei que muitas pessoas não podem dizer isso. Mas como americanos morando em Viena, não sentimos a necessidade de terminar oficialmente nosso casamento.

Mantemos bons limites, exceto por uma segunda-feira em janeiro passado, quando fomos comemorar seu novo emprego. Depois de algumas taças de Aperol Spritz, voltamos para casa. Em frente à estação do metrô perto da Catedral de St. Stephen, no topo da escada rolante, Kevin me deu um beijo de despedida. Primeiro na bochecha, depois nos lábios. Sem língua, nada selvagem. Ele disse que era “por hábito” e “tecnicamente ainda somos casados”.

Eu disse boa noite e que iria buscá-lo para sua colonoscopia na sexta-feira, porque “isso é um trabalho para sua ainda-esposa-técnica”.

Kevin me beijou na segunda-feira e descobriu que tinha câncer de cólon na sexta-feira, e nunca conversamos sobre o beijo.

O câncer estava no estágio 3B. Este é um código alfanumérico que você pode pesquisar no Google se estiver com vontade de ler uma longa lista de números de partir o coração.

Aqui está outro número de partir o coração: Kevin tinha apenas 31 anos.

'Encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas' Foto: Brian Rea/The New York Times

Tenho muita experiência com câncer, não o meu, mas de tantos amigos e familiares que perdi a conta. Minha mãe morreu de câncer no pâncreas quando eu tinha 19 anos. Essa experiência me tornou ótima em emergências - boa em atender telefonemas no meio da noite, acostumada a ouvir meu nome ser chamado por ajuda.

Eu fui feita para esta situação. Eu fui feita para estar lá para ele. Após receber a notícia, fui ao apartamento de Kevin, onde ligamos para a mãe dele. Eu era a única família de Kevin aqui. Ela entrou na internet para renovar o passaporte e eu encontrei um apartamento para ela alugar.

Eu não disse isso em voz alta, mas sabia que não poderia mais ser a esposa. Eu poderia ser a amiga, mas não a esposa.

Fiquei na casa de Kevin naquela noite. Dormimos com nossa roupa de baixo. Já fazia muito tempo que meu corpo não era algo sensual para ele. Quando estávamos juntos, ele me abraçava no início da noite antes de rolar para o seu lado da cama. Mas naquela noite permanecemos no mesmo lugar, o suor se acumulando entre nossos corpos.

Eu ia lá com frequência nas primeiras semanas para ajudá-lo a se organizar e contar piadas de mau gosto que nos faziam rir até chorar. Fiquei com ele depois da cirurgia, depois da notícia de que o câncer havia se espalhado. Meu pai voou para Viena para um apoio moral. A mãe de Kevin também veio e assumiu as coisas.

Ela ficou com ele após as primeiras sessões de quimioterapia. Sentei-me no meu apartamento, que tinha sido nosso apartamento, olhando para o meu telefone até adormecer às 5 da manhã. Soube na manhã seguinte que Kevin teve complicações. Ele acordou às 3 da manhã, gritando de dor de estômago. Ninguém tinha me ligado. Uma ambulância foi chamada. Ele recebeu medicação para a dor. Os médicos não tinham ideia do que estava acontecendo, ou porquê.

Sua mãe ficou até seu visto expirar. Então foi a minha vez de cuidar dele após a quimioterapia. Eu me preparei para ser a pessoa que talvez tivesse que chamar uma ambulância.

Lembrei-me da manhã em que acordei com os gritos de meu pai, quando segurei minha mãe em convulsão em meus braços, quando ela cuspiu em meu cotovelo. Na manhã em que ela ficou azul, eu implorei para ela respirar e implorei para que ela ficasse comigo.

Para ser justa, todo câncer é diferente e todo amor é diferente. Para ser justa, ela ficou comigo, por um tempo.

Kevin me disse que a dor geralmente durava cinco minutos. Nosso plano: fazer o possível para evitá-la. Se isso acontecesse, ele poderia gritar em um travesseiro enquanto eu programaria um cronômetro. Eu disse que se passasse um segundo depois de cinco minutos, eu chamaria uma ambulância. Eu nunca tive a chance de programar o cronômetro.

Pouco antes das 21h, Kevin tomou um remédio para dormir e vestiu um pijama. Lavei alguns pratos, algo que eu fazia melhor como amiga do que como esposa. Vesti minha camisola, tirei minha calcinha e percebi que a limpa estava na minha bolsa. Eu estava escovando os dentes quando Kevin chamou da outra sala. Larguei a escova de dentes e corri. Então, de acordo com o plano, Kevin gritou. Ele engasgou e se enrolou como uma bola. Ofereci-lhe o travesseiro, mas ele não aguentou. Então ele parou de respirar.

Liguei para o 144, o equivalente austríaco do 192, e dei informações militarmente eficientes sobre sua condição e nossa localização.

Um minuto depois, o corpo de Kevin relaxou, o arco em suas costas cedeu e ele fez um barulho horrível. Então, ele respirou novamente, com o ar sufocando em seus pulmões. Ele parecia estranhamente - bem? Peguei a bolsa de emergência, coloquei as calças nele e esperei os paramédicos.

Isso foi há um ano, durante outra onda de Covid. Fui vacinada com três doses, tinha me recuperado da Covid há 30 dias, tinha um certificado para provar isso e um PCR negativo de 24 horas, além de ser legalmente casada com o homem na maca, mas mesmo assim eles não me deixaram entrar na ambulância. Então eu o observei ir embora.

Pedi um táxi e liguei para um amigo enquanto esperava. Eu não chorei. Quando o táxi me deixou, desci do carro e percebi que estava na rua, no frio, vestindo apenas uma camisola e sem calcinha.

A terrível realidade do mundo é que, em qualquer história de amor, existem duas opções: ou você se separa ou alguém morre. A morte é o cenário célebre, exultante em votos tradicionais. Nós escrevemos os nossos votos, então eu nunca concordei com a coisa toda de “até que a morte nos separe”. E, no entanto, aqui estava eu de qualquer forma.

Houve um momento no início de nosso relacionamento em que Kevin me visitava em Nova York. Ele acordou uma manhã com a luz da janela do meu quarto brilhando em seus olhos, fazendo-os enrugar, e estendeu as mãos trêmulas para agarrar meu rosto. Ele parecia um velhinho e, naquele momento, pude ver toda a nossa história se desenrolar. O cenário célebre e tudo. Então talvez eu tenha concordado com isso.

Kevin sobreviveu à noite. Para sua quarta rodada de quimioterapia, eles o internaram no hospital. A essa altura, a quimioterapia estava afetando seu funcionamento cognitivo. Enviei-lhe uma lista de todas as coisas que precisava trazer. Ele esqueceu de ler. Naquela tarde, ele mandou uma mensagem: “Você poderia me trazer um carregador de celular?”

Fiquei irritada, mas levei, pois precisaria saber se Kevin ainda estava vivo, e para isso precisava que ele tivesse um celular funcionando. Perguntei se precisava de mais alguma coisa e ele disse que não. De qualquer forma, levei comida para ele, porque a comida do hospital é terrível e ele não teria vontade de comer depois da quimioterapia, mas acordaria com fome mais tarde, e porque fui treinada para isso.

Eu não podia entrar no hospital sem um PCR negativo, então ficamos do lado de fora da entrada entre os fumantes e guardas de segurança. Estava frio, o que desencadeou sua neuropatia, um belo efeito colateral. Fiquei lá com meu não-marido e dei a ele o carregador do celular. Ele pegou os lanches e disse: “Você é a melhor”.

Eu disse a ele para verificar se eu ainda era seu contato de emergência. Eu o beijei na bochecha, e depois brevemente nos lábios, e nunca conversamos sobre o beijo.

Fui a um bar a quatro quarteirões de distância, pedi um uísque sour e olhei para o meu celular, implorando para não tocar. Eu tinha acabado de reorganizar meu dia inteiro para levar para o meu ex-marido um carregador de celular que eu já havia dito para ele não esquecer, um encontro que durou cinco minutos, e agora aqui estava eu, irritada e sozinha.

Mas se você perder alguém que ama, como eu posso perder Kevin em breve, você vai se culpar por perder os cinco minutos que poderia ter passado do lado de fora da entrada de um hospital no frio congelante entre os fumantes e os guardas de segurança.

Portanto, encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas. Invente uma desculpa ridícula para passar uma tarde na companhia delas: vá comprar fita adesiva, observe-as fazendo compras, o que for. Ligue agora mesmo para a pessoa que você mais ama e diga: “Preciso comprar cartuchos de tinta para minha impressora. Você gostaria de vir junto?” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Kevin e eu nos separamos há dois anos; só continuamos casados no papel. Com tempo e muita terapia, conseguimos encontrar o caminho para uma amizade genuína, e sei que muitas pessoas não podem dizer isso. Mas como americanos morando em Viena, não sentimos a necessidade de terminar oficialmente nosso casamento.

Mantemos bons limites, exceto por uma segunda-feira em janeiro passado, quando fomos comemorar seu novo emprego. Depois de algumas taças de Aperol Spritz, voltamos para casa. Em frente à estação do metrô perto da Catedral de St. Stephen, no topo da escada rolante, Kevin me deu um beijo de despedida. Primeiro na bochecha, depois nos lábios. Sem língua, nada selvagem. Ele disse que era “por hábito” e “tecnicamente ainda somos casados”.

Eu disse boa noite e que iria buscá-lo para sua colonoscopia na sexta-feira, porque “isso é um trabalho para sua ainda-esposa-técnica”.

Kevin me beijou na segunda-feira e descobriu que tinha câncer de cólon na sexta-feira, e nunca conversamos sobre o beijo.

O câncer estava no estágio 3B. Este é um código alfanumérico que você pode pesquisar no Google se estiver com vontade de ler uma longa lista de números de partir o coração.

Aqui está outro número de partir o coração: Kevin tinha apenas 31 anos.

'Encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas' Foto: Brian Rea/The New York Times

Tenho muita experiência com câncer, não o meu, mas de tantos amigos e familiares que perdi a conta. Minha mãe morreu de câncer no pâncreas quando eu tinha 19 anos. Essa experiência me tornou ótima em emergências - boa em atender telefonemas no meio da noite, acostumada a ouvir meu nome ser chamado por ajuda.

Eu fui feita para esta situação. Eu fui feita para estar lá para ele. Após receber a notícia, fui ao apartamento de Kevin, onde ligamos para a mãe dele. Eu era a única família de Kevin aqui. Ela entrou na internet para renovar o passaporte e eu encontrei um apartamento para ela alugar.

Eu não disse isso em voz alta, mas sabia que não poderia mais ser a esposa. Eu poderia ser a amiga, mas não a esposa.

Fiquei na casa de Kevin naquela noite. Dormimos com nossa roupa de baixo. Já fazia muito tempo que meu corpo não era algo sensual para ele. Quando estávamos juntos, ele me abraçava no início da noite antes de rolar para o seu lado da cama. Mas naquela noite permanecemos no mesmo lugar, o suor se acumulando entre nossos corpos.

Eu ia lá com frequência nas primeiras semanas para ajudá-lo a se organizar e contar piadas de mau gosto que nos faziam rir até chorar. Fiquei com ele depois da cirurgia, depois da notícia de que o câncer havia se espalhado. Meu pai voou para Viena para um apoio moral. A mãe de Kevin também veio e assumiu as coisas.

Ela ficou com ele após as primeiras sessões de quimioterapia. Sentei-me no meu apartamento, que tinha sido nosso apartamento, olhando para o meu telefone até adormecer às 5 da manhã. Soube na manhã seguinte que Kevin teve complicações. Ele acordou às 3 da manhã, gritando de dor de estômago. Ninguém tinha me ligado. Uma ambulância foi chamada. Ele recebeu medicação para a dor. Os médicos não tinham ideia do que estava acontecendo, ou porquê.

Sua mãe ficou até seu visto expirar. Então foi a minha vez de cuidar dele após a quimioterapia. Eu me preparei para ser a pessoa que talvez tivesse que chamar uma ambulância.

Lembrei-me da manhã em que acordei com os gritos de meu pai, quando segurei minha mãe em convulsão em meus braços, quando ela cuspiu em meu cotovelo. Na manhã em que ela ficou azul, eu implorei para ela respirar e implorei para que ela ficasse comigo.

Para ser justa, todo câncer é diferente e todo amor é diferente. Para ser justa, ela ficou comigo, por um tempo.

Kevin me disse que a dor geralmente durava cinco minutos. Nosso plano: fazer o possível para evitá-la. Se isso acontecesse, ele poderia gritar em um travesseiro enquanto eu programaria um cronômetro. Eu disse que se passasse um segundo depois de cinco minutos, eu chamaria uma ambulância. Eu nunca tive a chance de programar o cronômetro.

Pouco antes das 21h, Kevin tomou um remédio para dormir e vestiu um pijama. Lavei alguns pratos, algo que eu fazia melhor como amiga do que como esposa. Vesti minha camisola, tirei minha calcinha e percebi que a limpa estava na minha bolsa. Eu estava escovando os dentes quando Kevin chamou da outra sala. Larguei a escova de dentes e corri. Então, de acordo com o plano, Kevin gritou. Ele engasgou e se enrolou como uma bola. Ofereci-lhe o travesseiro, mas ele não aguentou. Então ele parou de respirar.

Liguei para o 144, o equivalente austríaco do 192, e dei informações militarmente eficientes sobre sua condição e nossa localização.

Um minuto depois, o corpo de Kevin relaxou, o arco em suas costas cedeu e ele fez um barulho horrível. Então, ele respirou novamente, com o ar sufocando em seus pulmões. Ele parecia estranhamente - bem? Peguei a bolsa de emergência, coloquei as calças nele e esperei os paramédicos.

Isso foi há um ano, durante outra onda de Covid. Fui vacinada com três doses, tinha me recuperado da Covid há 30 dias, tinha um certificado para provar isso e um PCR negativo de 24 horas, além de ser legalmente casada com o homem na maca, mas mesmo assim eles não me deixaram entrar na ambulância. Então eu o observei ir embora.

Pedi um táxi e liguei para um amigo enquanto esperava. Eu não chorei. Quando o táxi me deixou, desci do carro e percebi que estava na rua, no frio, vestindo apenas uma camisola e sem calcinha.

A terrível realidade do mundo é que, em qualquer história de amor, existem duas opções: ou você se separa ou alguém morre. A morte é o cenário célebre, exultante em votos tradicionais. Nós escrevemos os nossos votos, então eu nunca concordei com a coisa toda de “até que a morte nos separe”. E, no entanto, aqui estava eu de qualquer forma.

Houve um momento no início de nosso relacionamento em que Kevin me visitava em Nova York. Ele acordou uma manhã com a luz da janela do meu quarto brilhando em seus olhos, fazendo-os enrugar, e estendeu as mãos trêmulas para agarrar meu rosto. Ele parecia um velhinho e, naquele momento, pude ver toda a nossa história se desenrolar. O cenário célebre e tudo. Então talvez eu tenha concordado com isso.

Kevin sobreviveu à noite. Para sua quarta rodada de quimioterapia, eles o internaram no hospital. A essa altura, a quimioterapia estava afetando seu funcionamento cognitivo. Enviei-lhe uma lista de todas as coisas que precisava trazer. Ele esqueceu de ler. Naquela tarde, ele mandou uma mensagem: “Você poderia me trazer um carregador de celular?”

Fiquei irritada, mas levei, pois precisaria saber se Kevin ainda estava vivo, e para isso precisava que ele tivesse um celular funcionando. Perguntei se precisava de mais alguma coisa e ele disse que não. De qualquer forma, levei comida para ele, porque a comida do hospital é terrível e ele não teria vontade de comer depois da quimioterapia, mas acordaria com fome mais tarde, e porque fui treinada para isso.

Eu não podia entrar no hospital sem um PCR negativo, então ficamos do lado de fora da entrada entre os fumantes e guardas de segurança. Estava frio, o que desencadeou sua neuropatia, um belo efeito colateral. Fiquei lá com meu não-marido e dei a ele o carregador do celular. Ele pegou os lanches e disse: “Você é a melhor”.

Eu disse a ele para verificar se eu ainda era seu contato de emergência. Eu o beijei na bochecha, e depois brevemente nos lábios, e nunca conversamos sobre o beijo.

Fui a um bar a quatro quarteirões de distância, pedi um uísque sour e olhei para o meu celular, implorando para não tocar. Eu tinha acabado de reorganizar meu dia inteiro para levar para o meu ex-marido um carregador de celular que eu já havia dito para ele não esquecer, um encontro que durou cinco minutos, e agora aqui estava eu, irritada e sozinha.

Mas se você perder alguém que ama, como eu posso perder Kevin em breve, você vai se culpar por perder os cinco minutos que poderia ter passado do lado de fora da entrada de um hospital no frio congelante entre os fumantes e os guardas de segurança.

Portanto, encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas. Invente uma desculpa ridícula para passar uma tarde na companhia delas: vá comprar fita adesiva, observe-as fazendo compras, o que for. Ligue agora mesmo para a pessoa que você mais ama e diga: “Preciso comprar cartuchos de tinta para minha impressora. Você gostaria de vir junto?” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Kevin e eu nos separamos há dois anos; só continuamos casados no papel. Com tempo e muita terapia, conseguimos encontrar o caminho para uma amizade genuína, e sei que muitas pessoas não podem dizer isso. Mas como americanos morando em Viena, não sentimos a necessidade de terminar oficialmente nosso casamento.

Mantemos bons limites, exceto por uma segunda-feira em janeiro passado, quando fomos comemorar seu novo emprego. Depois de algumas taças de Aperol Spritz, voltamos para casa. Em frente à estação do metrô perto da Catedral de St. Stephen, no topo da escada rolante, Kevin me deu um beijo de despedida. Primeiro na bochecha, depois nos lábios. Sem língua, nada selvagem. Ele disse que era “por hábito” e “tecnicamente ainda somos casados”.

Eu disse boa noite e que iria buscá-lo para sua colonoscopia na sexta-feira, porque “isso é um trabalho para sua ainda-esposa-técnica”.

Kevin me beijou na segunda-feira e descobriu que tinha câncer de cólon na sexta-feira, e nunca conversamos sobre o beijo.

O câncer estava no estágio 3B. Este é um código alfanumérico que você pode pesquisar no Google se estiver com vontade de ler uma longa lista de números de partir o coração.

Aqui está outro número de partir o coração: Kevin tinha apenas 31 anos.

'Encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas' Foto: Brian Rea/The New York Times

Tenho muita experiência com câncer, não o meu, mas de tantos amigos e familiares que perdi a conta. Minha mãe morreu de câncer no pâncreas quando eu tinha 19 anos. Essa experiência me tornou ótima em emergências - boa em atender telefonemas no meio da noite, acostumada a ouvir meu nome ser chamado por ajuda.

Eu fui feita para esta situação. Eu fui feita para estar lá para ele. Após receber a notícia, fui ao apartamento de Kevin, onde ligamos para a mãe dele. Eu era a única família de Kevin aqui. Ela entrou na internet para renovar o passaporte e eu encontrei um apartamento para ela alugar.

Eu não disse isso em voz alta, mas sabia que não poderia mais ser a esposa. Eu poderia ser a amiga, mas não a esposa.

Fiquei na casa de Kevin naquela noite. Dormimos com nossa roupa de baixo. Já fazia muito tempo que meu corpo não era algo sensual para ele. Quando estávamos juntos, ele me abraçava no início da noite antes de rolar para o seu lado da cama. Mas naquela noite permanecemos no mesmo lugar, o suor se acumulando entre nossos corpos.

Eu ia lá com frequência nas primeiras semanas para ajudá-lo a se organizar e contar piadas de mau gosto que nos faziam rir até chorar. Fiquei com ele depois da cirurgia, depois da notícia de que o câncer havia se espalhado. Meu pai voou para Viena para um apoio moral. A mãe de Kevin também veio e assumiu as coisas.

Ela ficou com ele após as primeiras sessões de quimioterapia. Sentei-me no meu apartamento, que tinha sido nosso apartamento, olhando para o meu telefone até adormecer às 5 da manhã. Soube na manhã seguinte que Kevin teve complicações. Ele acordou às 3 da manhã, gritando de dor de estômago. Ninguém tinha me ligado. Uma ambulância foi chamada. Ele recebeu medicação para a dor. Os médicos não tinham ideia do que estava acontecendo, ou porquê.

Sua mãe ficou até seu visto expirar. Então foi a minha vez de cuidar dele após a quimioterapia. Eu me preparei para ser a pessoa que talvez tivesse que chamar uma ambulância.

Lembrei-me da manhã em que acordei com os gritos de meu pai, quando segurei minha mãe em convulsão em meus braços, quando ela cuspiu em meu cotovelo. Na manhã em que ela ficou azul, eu implorei para ela respirar e implorei para que ela ficasse comigo.

Para ser justa, todo câncer é diferente e todo amor é diferente. Para ser justa, ela ficou comigo, por um tempo.

Kevin me disse que a dor geralmente durava cinco minutos. Nosso plano: fazer o possível para evitá-la. Se isso acontecesse, ele poderia gritar em um travesseiro enquanto eu programaria um cronômetro. Eu disse que se passasse um segundo depois de cinco minutos, eu chamaria uma ambulância. Eu nunca tive a chance de programar o cronômetro.

Pouco antes das 21h, Kevin tomou um remédio para dormir e vestiu um pijama. Lavei alguns pratos, algo que eu fazia melhor como amiga do que como esposa. Vesti minha camisola, tirei minha calcinha e percebi que a limpa estava na minha bolsa. Eu estava escovando os dentes quando Kevin chamou da outra sala. Larguei a escova de dentes e corri. Então, de acordo com o plano, Kevin gritou. Ele engasgou e se enrolou como uma bola. Ofereci-lhe o travesseiro, mas ele não aguentou. Então ele parou de respirar.

Liguei para o 144, o equivalente austríaco do 192, e dei informações militarmente eficientes sobre sua condição e nossa localização.

Um minuto depois, o corpo de Kevin relaxou, o arco em suas costas cedeu e ele fez um barulho horrível. Então, ele respirou novamente, com o ar sufocando em seus pulmões. Ele parecia estranhamente - bem? Peguei a bolsa de emergência, coloquei as calças nele e esperei os paramédicos.

Isso foi há um ano, durante outra onda de Covid. Fui vacinada com três doses, tinha me recuperado da Covid há 30 dias, tinha um certificado para provar isso e um PCR negativo de 24 horas, além de ser legalmente casada com o homem na maca, mas mesmo assim eles não me deixaram entrar na ambulância. Então eu o observei ir embora.

Pedi um táxi e liguei para um amigo enquanto esperava. Eu não chorei. Quando o táxi me deixou, desci do carro e percebi que estava na rua, no frio, vestindo apenas uma camisola e sem calcinha.

A terrível realidade do mundo é que, em qualquer história de amor, existem duas opções: ou você se separa ou alguém morre. A morte é o cenário célebre, exultante em votos tradicionais. Nós escrevemos os nossos votos, então eu nunca concordei com a coisa toda de “até que a morte nos separe”. E, no entanto, aqui estava eu de qualquer forma.

Houve um momento no início de nosso relacionamento em que Kevin me visitava em Nova York. Ele acordou uma manhã com a luz da janela do meu quarto brilhando em seus olhos, fazendo-os enrugar, e estendeu as mãos trêmulas para agarrar meu rosto. Ele parecia um velhinho e, naquele momento, pude ver toda a nossa história se desenrolar. O cenário célebre e tudo. Então talvez eu tenha concordado com isso.

Kevin sobreviveu à noite. Para sua quarta rodada de quimioterapia, eles o internaram no hospital. A essa altura, a quimioterapia estava afetando seu funcionamento cognitivo. Enviei-lhe uma lista de todas as coisas que precisava trazer. Ele esqueceu de ler. Naquela tarde, ele mandou uma mensagem: “Você poderia me trazer um carregador de celular?”

Fiquei irritada, mas levei, pois precisaria saber se Kevin ainda estava vivo, e para isso precisava que ele tivesse um celular funcionando. Perguntei se precisava de mais alguma coisa e ele disse que não. De qualquer forma, levei comida para ele, porque a comida do hospital é terrível e ele não teria vontade de comer depois da quimioterapia, mas acordaria com fome mais tarde, e porque fui treinada para isso.

Eu não podia entrar no hospital sem um PCR negativo, então ficamos do lado de fora da entrada entre os fumantes e guardas de segurança. Estava frio, o que desencadeou sua neuropatia, um belo efeito colateral. Fiquei lá com meu não-marido e dei a ele o carregador do celular. Ele pegou os lanches e disse: “Você é a melhor”.

Eu disse a ele para verificar se eu ainda era seu contato de emergência. Eu o beijei na bochecha, e depois brevemente nos lábios, e nunca conversamos sobre o beijo.

Fui a um bar a quatro quarteirões de distância, pedi um uísque sour e olhei para o meu celular, implorando para não tocar. Eu tinha acabado de reorganizar meu dia inteiro para levar para o meu ex-marido um carregador de celular que eu já havia dito para ele não esquecer, um encontro que durou cinco minutos, e agora aqui estava eu, irritada e sozinha.

Mas se você perder alguém que ama, como eu posso perder Kevin em breve, você vai se culpar por perder os cinco minutos que poderia ter passado do lado de fora da entrada de um hospital no frio congelante entre os fumantes e os guardas de segurança.

Portanto, encontre as pessoas com quem você deseja estar e fique perto delas. Invente uma desculpa ridícula para passar uma tarde na companhia delas: vá comprar fita adesiva, observe-as fazendo compras, o que for. Ligue agora mesmo para a pessoa que você mais ama e diga: “Preciso comprar cartuchos de tinta para minha impressora. Você gostaria de vir junto?” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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