Modern Love: O dia em que o diário do meu pai ficou em branco


Uma filha procura reunir as memórias do pai antes que o Alzheimer as leve embora

Por Annabelle Allen

Meu pai estava na cozinha comendo feijão refrito (prato mexicano) diretamente da lata com um garfo, e Paul Simon cantava Graceland há 20 minutos sem parar.

“Ei, Alexa, vamos parar um pouco?”, ele disse finalmente, como se o alto-falante fosse uma criança que já havia brincado no escorrega até não poder mais. “Tá, vamos parar um pouco”.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 
continua após a publicidade

Observei que ele acariciou o aparelho e depois delicadamente o mandou se calar.

“Alexa, desligue”, eu disse, e a cozinha ficou silenciosa.

Papai me deu uma olhada, a mesma que ele me dava quando eu tinha 10 anos e não queria telefonar para minha avó ou mandar cartões de agradecimento depois da minha festa de aniversário. O olhar de quem vai dar uma lição.

continua após a publicidade

“Sim?”, perguntei.

“Da próxima vez,” ele disse, “diga por favor”.

Meu pai sempre foi o tipo de pessoa que gosta de ouvir os pássaros e recolher o lixo. Cresci admirando a forma como ele entrava em uma sala cheia de amigos que assistiam TV e perguntava: “Quem está a fim de conversar?” Ele queria saber o que as pessoas pensavam, e quando os telefones tocavam na mesa do jantar, ele sentava e olhava a gente baixando a cabeça e espiando no nosso colo como zumbis viciados em celulares.

continua após a publicidade

Tento parecer mais com meu pai e assimilar estes valores. Mas estas suas características estão desaparecendo juntamente com a memória, e os recursos com os quais procuro estabelecer um contato com ele parecem menos um meio de comunicação e mais puro desespero.

Há quase cinco anos, quando meu pai tinha 62, ele descobriu que estava com Alzheimer. De lá para cá, minha mãe e eu observamos o seu declínio. Ele esquece os nomes dos amigos e não lê mais. Todas as manhãs, fica sentado com uma toalha de bolinhas azuis de criança à espera de alguém que o ajude a começar o dia.

Minha mãe diz: “Venha querido, vista-se”. “Escove os dentes, meu bem”. “Tome um pouco de suco de laranja, querido”.

continua após a publicidade

Olho outros pais que ganham dinheiro, fazem panquecas e beijam a esposa, e me sinto deprimida. Como ficou pequeno o mundo do meu pai! Vejo minha mãe nervosa ao se comunicar com ele ou quando o leva a jantares onde os outros maridos conversam sobre trabalho e política, enquanto o dela pergunta, continuamente, se Frank Sinatra ainda está vivo.

Desde que me formei na faculdade, há dois anos, divido o meu tempo entre o meu apartamento no Brooklyn e a casa dos meus pais em Hastings-on-Hudson. Toda semana, faço a mala e pego o trem e viajo 50 quilômetros para ajudar a cuidar dele. Falo brincando que viver em dois lugares confunde um pouco. “É como se eu tivesse pais divorciados”, digo e abraço as colegas ao me despedir.

Luto para compreender a mim mesma, uma mulher de 23 anos que também cuida do pai. Fico tensa quando minhas colegas de quarto se vestem para ir trabalhar e perguntam que sapatos eu escolheria; ou quando falam dos seus objetivos: do que pretendem fazer; onde gostariam de morar. Eu fico espantada com a sua tranquilidade, parecendo tão seguras de sua liberdade e escolhas.

continua após a publicidade

Não que eu não tenha meus planos, ou que não goste dos sapatos. É que tem uma coisa que eu sinto quando meu pai me chama de “mamãe” diante dos vizinhos pela manhã, e então pede desculpas, que me deixa paralisada na hora de dar conselhos sobre estilo ou falar dos meus sonhos.

Muitas vezes gostaria de poder perguntar ao meu pai quem ele era aos 23 anos. Gostaria de poder perguntar como ele tratava mamãe, ou o que ele costumava fazer aos sábados. Mas a sua capacidade de lembrar do passado desapareceu, por isso preciso me acostumar ao fato de não saber. Passo muito tempo fazendo outras perguntas para ele, mas minhas indagações já foram além da mera curiosidade casual.

Todas as semanas pergunto: “Pai, o que você mais gosta na mamãe?” “Papai, qual é a coisa de que você mais gosta em você mesmo?” “Pai, você gosta de chorar?”

continua após a publicidade

Eu o sacudo como uma bola 8 mágica e faço tantas perguntas quanto posso. Mas como o brinquedo, as suas respostas são frases aleatórias que já ouvi antes. Sou paciente quando ele procura as palavras e as pronúncias, mas frequentemente acabamos fazendo charadas enquanto penso nas palavras que ele perdeu.

Em setembro do ano passado, eu e meus pais estávamos organizando coisas que guardamos no subsolo do prédio quando descobri uma caixa com velhas anotações do meu pai. Em baixo de revistas em quadrinhos do Superman e de ingressos para concerto estragados pela água, havia uns 15 cadernos datados de 1978 a 2002.

Minha mãe dizia que diários são um assunto íntimo e tentou escondê-los de mim, mas ela logo se deu conta que eu insistiria. Senti que moral e privacidade não tinham nenhuma importância se estes diários me dessem acesso à prisão em que meu pai se encontrava. Então comecei a lê-los. E eles foram uma grande dádiva para mim.

Em seus escritos, meu pai falava de temores e dúvidas íntimas e de todas as coisas que lhe davam alegrias. Copiei suas frases no meu diário e citava a sua sabedoria falando com os amigos. Ele também escrevia que percorria o Brooklyn de bicicleta, em busca de notícias para pequenos jornais, e que costumava sair da estação do metrô da Sétima Avenida e ir para casa atravessando o parque.

Até começar a ler esses diários, não tinha ideia de que ele tivesse feito estas coisas, e as semelhanças entre nós dois me impressionaram. Passei os dois últimos anos trabalhando como repórter para pequenos jornais do Brooklyn e, todos os domingos, voltando para casa da estação do trem que me leva de Hastings de volta para a cidade, faço aquele mesmo trajeto da Sétima Avenida.

Quando leio as anotações do meu pai, me sinto menos perdida. Não só reconheço a pessoa que meu pai foi, como reconheço a mim mesma.

Minha mãe me permitiu reproduzir algumas delas.

No dia 9 de setembro de 1991, ele escreveu: “Quero ficar na avenida no meio dos carros, a cabeça  ao vento, e gritar, gritar até que quase começo a viver ...  começo a viver o meu sonho. Preciso de alguma coisa. Muito tempo e muito pouco contato na minha vida ultimamente. Acho que a solidão pode matar”.

Meses mais tarde, no dia 10 de fevereiro de 1992: “Estou meio zonzo, como uma criança. Quero dançar”. Ela telefonou. Suzanne do Brooklyn. Sim. Ela adoraria sair de novo. Então será um brunch e assistiremos aos playoffs no apartamento dela no domingo. Deus, como eu estou feliz”.

“Muito tarde, na noite passada, depois das 11, estimulado pelo telefonema, dancei na cozinha no escuro. Uma música dos Stones, dancei com velhos fantasmas e ri deles. Tentando me livrar de demônios ou abraçar um novo sonho, dançar no escuro sempre foi muito bom”.

Suzanne é minha mãe, e foi através destes diários que soube quanto meu pai a ama. Seus diários me mostraram também quanto ele ama os amigos, e quanto me ama. Todas as anotações de 1997 a 2002 mencionam “a pequena Annabelle”.

Mas eu não estava preparada para o momento em que as anotações pararam. Dia 28 de abril de 2002, meu pai escreveu sobre a minha exibição no banheiro de Tomorrow, do musical Anne; e então a página seguinte está em branco. E também a seguinte, e a outra. Folheei o caderno de olhos escancarados não querendo admitir. Não queria que esta versão do me pai tivesse terminado.

Quando li a última anotação, ele e eu estávamos sentados lado a lado no sofá vendo Ellen na TV. Ela fazia o quadro "Perguntas Indiscretas" ao ator Bradley Cooper, mas as falas eram rápidas demais para ele, então ele ficou olhando o tapete.

Pensei nas cenas que acabara de ler: meu pai telefonando para os amigos à meia-noite para contar uma piada, pegando o metrô e lendo o jornal, pedindo a minha mãe que dançasse com ele. Observando-o agora, enquanto ele olhava o tapete, me senti incomodada por todo o tempo que ele passa em silêncio. Tive medo de tudo o que ele perdeu e continuaria perdendo.

“Pai”, falei.

“Sim?”

“Você ama a mamãe?”

Ele riu: “Claro”.

Respirei e desliguei a TV. Fiz o melhor que pude para estar com ele naquela hora, porque é tudo o que temos.

“Quanto você a ama?”

“O que você quer dizer com quanto?” Ele riu novamente. “Um litro”.

“E você me ama um galão [unidade de medida]?”

“Sim”, respondeu. Ele entendia. “Muitos galões”.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Meu pai estava na cozinha comendo feijão refrito (prato mexicano) diretamente da lata com um garfo, e Paul Simon cantava Graceland há 20 minutos sem parar.

“Ei, Alexa, vamos parar um pouco?”, ele disse finalmente, como se o alto-falante fosse uma criança que já havia brincado no escorrega até não poder mais. “Tá, vamos parar um pouco”.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Observei que ele acariciou o aparelho e depois delicadamente o mandou se calar.

“Alexa, desligue”, eu disse, e a cozinha ficou silenciosa.

Papai me deu uma olhada, a mesma que ele me dava quando eu tinha 10 anos e não queria telefonar para minha avó ou mandar cartões de agradecimento depois da minha festa de aniversário. O olhar de quem vai dar uma lição.

“Sim?”, perguntei.

“Da próxima vez,” ele disse, “diga por favor”.

Meu pai sempre foi o tipo de pessoa que gosta de ouvir os pássaros e recolher o lixo. Cresci admirando a forma como ele entrava em uma sala cheia de amigos que assistiam TV e perguntava: “Quem está a fim de conversar?” Ele queria saber o que as pessoas pensavam, e quando os telefones tocavam na mesa do jantar, ele sentava e olhava a gente baixando a cabeça e espiando no nosso colo como zumbis viciados em celulares.

Tento parecer mais com meu pai e assimilar estes valores. Mas estas suas características estão desaparecendo juntamente com a memória, e os recursos com os quais procuro estabelecer um contato com ele parecem menos um meio de comunicação e mais puro desespero.

Há quase cinco anos, quando meu pai tinha 62, ele descobriu que estava com Alzheimer. De lá para cá, minha mãe e eu observamos o seu declínio. Ele esquece os nomes dos amigos e não lê mais. Todas as manhãs, fica sentado com uma toalha de bolinhas azuis de criança à espera de alguém que o ajude a começar o dia.

Minha mãe diz: “Venha querido, vista-se”. “Escove os dentes, meu bem”. “Tome um pouco de suco de laranja, querido”.

Olho outros pais que ganham dinheiro, fazem panquecas e beijam a esposa, e me sinto deprimida. Como ficou pequeno o mundo do meu pai! Vejo minha mãe nervosa ao se comunicar com ele ou quando o leva a jantares onde os outros maridos conversam sobre trabalho e política, enquanto o dela pergunta, continuamente, se Frank Sinatra ainda está vivo.

Desde que me formei na faculdade, há dois anos, divido o meu tempo entre o meu apartamento no Brooklyn e a casa dos meus pais em Hastings-on-Hudson. Toda semana, faço a mala e pego o trem e viajo 50 quilômetros para ajudar a cuidar dele. Falo brincando que viver em dois lugares confunde um pouco. “É como se eu tivesse pais divorciados”, digo e abraço as colegas ao me despedir.

Luto para compreender a mim mesma, uma mulher de 23 anos que também cuida do pai. Fico tensa quando minhas colegas de quarto se vestem para ir trabalhar e perguntam que sapatos eu escolheria; ou quando falam dos seus objetivos: do que pretendem fazer; onde gostariam de morar. Eu fico espantada com a sua tranquilidade, parecendo tão seguras de sua liberdade e escolhas.

Não que eu não tenha meus planos, ou que não goste dos sapatos. É que tem uma coisa que eu sinto quando meu pai me chama de “mamãe” diante dos vizinhos pela manhã, e então pede desculpas, que me deixa paralisada na hora de dar conselhos sobre estilo ou falar dos meus sonhos.

Muitas vezes gostaria de poder perguntar ao meu pai quem ele era aos 23 anos. Gostaria de poder perguntar como ele tratava mamãe, ou o que ele costumava fazer aos sábados. Mas a sua capacidade de lembrar do passado desapareceu, por isso preciso me acostumar ao fato de não saber. Passo muito tempo fazendo outras perguntas para ele, mas minhas indagações já foram além da mera curiosidade casual.

Todas as semanas pergunto: “Pai, o que você mais gosta na mamãe?” “Papai, qual é a coisa de que você mais gosta em você mesmo?” “Pai, você gosta de chorar?”

Eu o sacudo como uma bola 8 mágica e faço tantas perguntas quanto posso. Mas como o brinquedo, as suas respostas são frases aleatórias que já ouvi antes. Sou paciente quando ele procura as palavras e as pronúncias, mas frequentemente acabamos fazendo charadas enquanto penso nas palavras que ele perdeu.

Em setembro do ano passado, eu e meus pais estávamos organizando coisas que guardamos no subsolo do prédio quando descobri uma caixa com velhas anotações do meu pai. Em baixo de revistas em quadrinhos do Superman e de ingressos para concerto estragados pela água, havia uns 15 cadernos datados de 1978 a 2002.

Minha mãe dizia que diários são um assunto íntimo e tentou escondê-los de mim, mas ela logo se deu conta que eu insistiria. Senti que moral e privacidade não tinham nenhuma importância se estes diários me dessem acesso à prisão em que meu pai se encontrava. Então comecei a lê-los. E eles foram uma grande dádiva para mim.

Em seus escritos, meu pai falava de temores e dúvidas íntimas e de todas as coisas que lhe davam alegrias. Copiei suas frases no meu diário e citava a sua sabedoria falando com os amigos. Ele também escrevia que percorria o Brooklyn de bicicleta, em busca de notícias para pequenos jornais, e que costumava sair da estação do metrô da Sétima Avenida e ir para casa atravessando o parque.

Até começar a ler esses diários, não tinha ideia de que ele tivesse feito estas coisas, e as semelhanças entre nós dois me impressionaram. Passei os dois últimos anos trabalhando como repórter para pequenos jornais do Brooklyn e, todos os domingos, voltando para casa da estação do trem que me leva de Hastings de volta para a cidade, faço aquele mesmo trajeto da Sétima Avenida.

Quando leio as anotações do meu pai, me sinto menos perdida. Não só reconheço a pessoa que meu pai foi, como reconheço a mim mesma.

Minha mãe me permitiu reproduzir algumas delas.

No dia 9 de setembro de 1991, ele escreveu: “Quero ficar na avenida no meio dos carros, a cabeça  ao vento, e gritar, gritar até que quase começo a viver ...  começo a viver o meu sonho. Preciso de alguma coisa. Muito tempo e muito pouco contato na minha vida ultimamente. Acho que a solidão pode matar”.

Meses mais tarde, no dia 10 de fevereiro de 1992: “Estou meio zonzo, como uma criança. Quero dançar”. Ela telefonou. Suzanne do Brooklyn. Sim. Ela adoraria sair de novo. Então será um brunch e assistiremos aos playoffs no apartamento dela no domingo. Deus, como eu estou feliz”.

“Muito tarde, na noite passada, depois das 11, estimulado pelo telefonema, dancei na cozinha no escuro. Uma música dos Stones, dancei com velhos fantasmas e ri deles. Tentando me livrar de demônios ou abraçar um novo sonho, dançar no escuro sempre foi muito bom”.

Suzanne é minha mãe, e foi através destes diários que soube quanto meu pai a ama. Seus diários me mostraram também quanto ele ama os amigos, e quanto me ama. Todas as anotações de 1997 a 2002 mencionam “a pequena Annabelle”.

Mas eu não estava preparada para o momento em que as anotações pararam. Dia 28 de abril de 2002, meu pai escreveu sobre a minha exibição no banheiro de Tomorrow, do musical Anne; e então a página seguinte está em branco. E também a seguinte, e a outra. Folheei o caderno de olhos escancarados não querendo admitir. Não queria que esta versão do me pai tivesse terminado.

Quando li a última anotação, ele e eu estávamos sentados lado a lado no sofá vendo Ellen na TV. Ela fazia o quadro "Perguntas Indiscretas" ao ator Bradley Cooper, mas as falas eram rápidas demais para ele, então ele ficou olhando o tapete.

Pensei nas cenas que acabara de ler: meu pai telefonando para os amigos à meia-noite para contar uma piada, pegando o metrô e lendo o jornal, pedindo a minha mãe que dançasse com ele. Observando-o agora, enquanto ele olhava o tapete, me senti incomodada por todo o tempo que ele passa em silêncio. Tive medo de tudo o que ele perdeu e continuaria perdendo.

“Pai”, falei.

“Sim?”

“Você ama a mamãe?”

Ele riu: “Claro”.

Respirei e desliguei a TV. Fiz o melhor que pude para estar com ele naquela hora, porque é tudo o que temos.

“Quanto você a ama?”

“O que você quer dizer com quanto?” Ele riu novamente. “Um litro”.

“E você me ama um galão [unidade de medida]?”

“Sim”, respondeu. Ele entendia. “Muitos galões”.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Meu pai estava na cozinha comendo feijão refrito (prato mexicano) diretamente da lata com um garfo, e Paul Simon cantava Graceland há 20 minutos sem parar.

“Ei, Alexa, vamos parar um pouco?”, ele disse finalmente, como se o alto-falante fosse uma criança que já havia brincado no escorrega até não poder mais. “Tá, vamos parar um pouco”.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Observei que ele acariciou o aparelho e depois delicadamente o mandou se calar.

“Alexa, desligue”, eu disse, e a cozinha ficou silenciosa.

Papai me deu uma olhada, a mesma que ele me dava quando eu tinha 10 anos e não queria telefonar para minha avó ou mandar cartões de agradecimento depois da minha festa de aniversário. O olhar de quem vai dar uma lição.

“Sim?”, perguntei.

“Da próxima vez,” ele disse, “diga por favor”.

Meu pai sempre foi o tipo de pessoa que gosta de ouvir os pássaros e recolher o lixo. Cresci admirando a forma como ele entrava em uma sala cheia de amigos que assistiam TV e perguntava: “Quem está a fim de conversar?” Ele queria saber o que as pessoas pensavam, e quando os telefones tocavam na mesa do jantar, ele sentava e olhava a gente baixando a cabeça e espiando no nosso colo como zumbis viciados em celulares.

Tento parecer mais com meu pai e assimilar estes valores. Mas estas suas características estão desaparecendo juntamente com a memória, e os recursos com os quais procuro estabelecer um contato com ele parecem menos um meio de comunicação e mais puro desespero.

Há quase cinco anos, quando meu pai tinha 62, ele descobriu que estava com Alzheimer. De lá para cá, minha mãe e eu observamos o seu declínio. Ele esquece os nomes dos amigos e não lê mais. Todas as manhãs, fica sentado com uma toalha de bolinhas azuis de criança à espera de alguém que o ajude a começar o dia.

Minha mãe diz: “Venha querido, vista-se”. “Escove os dentes, meu bem”. “Tome um pouco de suco de laranja, querido”.

Olho outros pais que ganham dinheiro, fazem panquecas e beijam a esposa, e me sinto deprimida. Como ficou pequeno o mundo do meu pai! Vejo minha mãe nervosa ao se comunicar com ele ou quando o leva a jantares onde os outros maridos conversam sobre trabalho e política, enquanto o dela pergunta, continuamente, se Frank Sinatra ainda está vivo.

Desde que me formei na faculdade, há dois anos, divido o meu tempo entre o meu apartamento no Brooklyn e a casa dos meus pais em Hastings-on-Hudson. Toda semana, faço a mala e pego o trem e viajo 50 quilômetros para ajudar a cuidar dele. Falo brincando que viver em dois lugares confunde um pouco. “É como se eu tivesse pais divorciados”, digo e abraço as colegas ao me despedir.

Luto para compreender a mim mesma, uma mulher de 23 anos que também cuida do pai. Fico tensa quando minhas colegas de quarto se vestem para ir trabalhar e perguntam que sapatos eu escolheria; ou quando falam dos seus objetivos: do que pretendem fazer; onde gostariam de morar. Eu fico espantada com a sua tranquilidade, parecendo tão seguras de sua liberdade e escolhas.

Não que eu não tenha meus planos, ou que não goste dos sapatos. É que tem uma coisa que eu sinto quando meu pai me chama de “mamãe” diante dos vizinhos pela manhã, e então pede desculpas, que me deixa paralisada na hora de dar conselhos sobre estilo ou falar dos meus sonhos.

Muitas vezes gostaria de poder perguntar ao meu pai quem ele era aos 23 anos. Gostaria de poder perguntar como ele tratava mamãe, ou o que ele costumava fazer aos sábados. Mas a sua capacidade de lembrar do passado desapareceu, por isso preciso me acostumar ao fato de não saber. Passo muito tempo fazendo outras perguntas para ele, mas minhas indagações já foram além da mera curiosidade casual.

Todas as semanas pergunto: “Pai, o que você mais gosta na mamãe?” “Papai, qual é a coisa de que você mais gosta em você mesmo?” “Pai, você gosta de chorar?”

Eu o sacudo como uma bola 8 mágica e faço tantas perguntas quanto posso. Mas como o brinquedo, as suas respostas são frases aleatórias que já ouvi antes. Sou paciente quando ele procura as palavras e as pronúncias, mas frequentemente acabamos fazendo charadas enquanto penso nas palavras que ele perdeu.

Em setembro do ano passado, eu e meus pais estávamos organizando coisas que guardamos no subsolo do prédio quando descobri uma caixa com velhas anotações do meu pai. Em baixo de revistas em quadrinhos do Superman e de ingressos para concerto estragados pela água, havia uns 15 cadernos datados de 1978 a 2002.

Minha mãe dizia que diários são um assunto íntimo e tentou escondê-los de mim, mas ela logo se deu conta que eu insistiria. Senti que moral e privacidade não tinham nenhuma importância se estes diários me dessem acesso à prisão em que meu pai se encontrava. Então comecei a lê-los. E eles foram uma grande dádiva para mim.

Em seus escritos, meu pai falava de temores e dúvidas íntimas e de todas as coisas que lhe davam alegrias. Copiei suas frases no meu diário e citava a sua sabedoria falando com os amigos. Ele também escrevia que percorria o Brooklyn de bicicleta, em busca de notícias para pequenos jornais, e que costumava sair da estação do metrô da Sétima Avenida e ir para casa atravessando o parque.

Até começar a ler esses diários, não tinha ideia de que ele tivesse feito estas coisas, e as semelhanças entre nós dois me impressionaram. Passei os dois últimos anos trabalhando como repórter para pequenos jornais do Brooklyn e, todos os domingos, voltando para casa da estação do trem que me leva de Hastings de volta para a cidade, faço aquele mesmo trajeto da Sétima Avenida.

Quando leio as anotações do meu pai, me sinto menos perdida. Não só reconheço a pessoa que meu pai foi, como reconheço a mim mesma.

Minha mãe me permitiu reproduzir algumas delas.

No dia 9 de setembro de 1991, ele escreveu: “Quero ficar na avenida no meio dos carros, a cabeça  ao vento, e gritar, gritar até que quase começo a viver ...  começo a viver o meu sonho. Preciso de alguma coisa. Muito tempo e muito pouco contato na minha vida ultimamente. Acho que a solidão pode matar”.

Meses mais tarde, no dia 10 de fevereiro de 1992: “Estou meio zonzo, como uma criança. Quero dançar”. Ela telefonou. Suzanne do Brooklyn. Sim. Ela adoraria sair de novo. Então será um brunch e assistiremos aos playoffs no apartamento dela no domingo. Deus, como eu estou feliz”.

“Muito tarde, na noite passada, depois das 11, estimulado pelo telefonema, dancei na cozinha no escuro. Uma música dos Stones, dancei com velhos fantasmas e ri deles. Tentando me livrar de demônios ou abraçar um novo sonho, dançar no escuro sempre foi muito bom”.

Suzanne é minha mãe, e foi através destes diários que soube quanto meu pai a ama. Seus diários me mostraram também quanto ele ama os amigos, e quanto me ama. Todas as anotações de 1997 a 2002 mencionam “a pequena Annabelle”.

Mas eu não estava preparada para o momento em que as anotações pararam. Dia 28 de abril de 2002, meu pai escreveu sobre a minha exibição no banheiro de Tomorrow, do musical Anne; e então a página seguinte está em branco. E também a seguinte, e a outra. Folheei o caderno de olhos escancarados não querendo admitir. Não queria que esta versão do me pai tivesse terminado.

Quando li a última anotação, ele e eu estávamos sentados lado a lado no sofá vendo Ellen na TV. Ela fazia o quadro "Perguntas Indiscretas" ao ator Bradley Cooper, mas as falas eram rápidas demais para ele, então ele ficou olhando o tapete.

Pensei nas cenas que acabara de ler: meu pai telefonando para os amigos à meia-noite para contar uma piada, pegando o metrô e lendo o jornal, pedindo a minha mãe que dançasse com ele. Observando-o agora, enquanto ele olhava o tapete, me senti incomodada por todo o tempo que ele passa em silêncio. Tive medo de tudo o que ele perdeu e continuaria perdendo.

“Pai”, falei.

“Sim?”

“Você ama a mamãe?”

Ele riu: “Claro”.

Respirei e desliguei a TV. Fiz o melhor que pude para estar com ele naquela hora, porque é tudo o que temos.

“Quanto você a ama?”

“O que você quer dizer com quanto?” Ele riu novamente. “Um litro”.

“E você me ama um galão [unidade de medida]?”

“Sim”, respondeu. Ele entendia. “Muitos galões”.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Meu pai estava na cozinha comendo feijão refrito (prato mexicano) diretamente da lata com um garfo, e Paul Simon cantava Graceland há 20 minutos sem parar.

“Ei, Alexa, vamos parar um pouco?”, ele disse finalmente, como se o alto-falante fosse uma criança que já havia brincado no escorrega até não poder mais. “Tá, vamos parar um pouco”.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Observei que ele acariciou o aparelho e depois delicadamente o mandou se calar.

“Alexa, desligue”, eu disse, e a cozinha ficou silenciosa.

Papai me deu uma olhada, a mesma que ele me dava quando eu tinha 10 anos e não queria telefonar para minha avó ou mandar cartões de agradecimento depois da minha festa de aniversário. O olhar de quem vai dar uma lição.

“Sim?”, perguntei.

“Da próxima vez,” ele disse, “diga por favor”.

Meu pai sempre foi o tipo de pessoa que gosta de ouvir os pássaros e recolher o lixo. Cresci admirando a forma como ele entrava em uma sala cheia de amigos que assistiam TV e perguntava: “Quem está a fim de conversar?” Ele queria saber o que as pessoas pensavam, e quando os telefones tocavam na mesa do jantar, ele sentava e olhava a gente baixando a cabeça e espiando no nosso colo como zumbis viciados em celulares.

Tento parecer mais com meu pai e assimilar estes valores. Mas estas suas características estão desaparecendo juntamente com a memória, e os recursos com os quais procuro estabelecer um contato com ele parecem menos um meio de comunicação e mais puro desespero.

Há quase cinco anos, quando meu pai tinha 62, ele descobriu que estava com Alzheimer. De lá para cá, minha mãe e eu observamos o seu declínio. Ele esquece os nomes dos amigos e não lê mais. Todas as manhãs, fica sentado com uma toalha de bolinhas azuis de criança à espera de alguém que o ajude a começar o dia.

Minha mãe diz: “Venha querido, vista-se”. “Escove os dentes, meu bem”. “Tome um pouco de suco de laranja, querido”.

Olho outros pais que ganham dinheiro, fazem panquecas e beijam a esposa, e me sinto deprimida. Como ficou pequeno o mundo do meu pai! Vejo minha mãe nervosa ao se comunicar com ele ou quando o leva a jantares onde os outros maridos conversam sobre trabalho e política, enquanto o dela pergunta, continuamente, se Frank Sinatra ainda está vivo.

Desde que me formei na faculdade, há dois anos, divido o meu tempo entre o meu apartamento no Brooklyn e a casa dos meus pais em Hastings-on-Hudson. Toda semana, faço a mala e pego o trem e viajo 50 quilômetros para ajudar a cuidar dele. Falo brincando que viver em dois lugares confunde um pouco. “É como se eu tivesse pais divorciados”, digo e abraço as colegas ao me despedir.

Luto para compreender a mim mesma, uma mulher de 23 anos que também cuida do pai. Fico tensa quando minhas colegas de quarto se vestem para ir trabalhar e perguntam que sapatos eu escolheria; ou quando falam dos seus objetivos: do que pretendem fazer; onde gostariam de morar. Eu fico espantada com a sua tranquilidade, parecendo tão seguras de sua liberdade e escolhas.

Não que eu não tenha meus planos, ou que não goste dos sapatos. É que tem uma coisa que eu sinto quando meu pai me chama de “mamãe” diante dos vizinhos pela manhã, e então pede desculpas, que me deixa paralisada na hora de dar conselhos sobre estilo ou falar dos meus sonhos.

Muitas vezes gostaria de poder perguntar ao meu pai quem ele era aos 23 anos. Gostaria de poder perguntar como ele tratava mamãe, ou o que ele costumava fazer aos sábados. Mas a sua capacidade de lembrar do passado desapareceu, por isso preciso me acostumar ao fato de não saber. Passo muito tempo fazendo outras perguntas para ele, mas minhas indagações já foram além da mera curiosidade casual.

Todas as semanas pergunto: “Pai, o que você mais gosta na mamãe?” “Papai, qual é a coisa de que você mais gosta em você mesmo?” “Pai, você gosta de chorar?”

Eu o sacudo como uma bola 8 mágica e faço tantas perguntas quanto posso. Mas como o brinquedo, as suas respostas são frases aleatórias que já ouvi antes. Sou paciente quando ele procura as palavras e as pronúncias, mas frequentemente acabamos fazendo charadas enquanto penso nas palavras que ele perdeu.

Em setembro do ano passado, eu e meus pais estávamos organizando coisas que guardamos no subsolo do prédio quando descobri uma caixa com velhas anotações do meu pai. Em baixo de revistas em quadrinhos do Superman e de ingressos para concerto estragados pela água, havia uns 15 cadernos datados de 1978 a 2002.

Minha mãe dizia que diários são um assunto íntimo e tentou escondê-los de mim, mas ela logo se deu conta que eu insistiria. Senti que moral e privacidade não tinham nenhuma importância se estes diários me dessem acesso à prisão em que meu pai se encontrava. Então comecei a lê-los. E eles foram uma grande dádiva para mim.

Em seus escritos, meu pai falava de temores e dúvidas íntimas e de todas as coisas que lhe davam alegrias. Copiei suas frases no meu diário e citava a sua sabedoria falando com os amigos. Ele também escrevia que percorria o Brooklyn de bicicleta, em busca de notícias para pequenos jornais, e que costumava sair da estação do metrô da Sétima Avenida e ir para casa atravessando o parque.

Até começar a ler esses diários, não tinha ideia de que ele tivesse feito estas coisas, e as semelhanças entre nós dois me impressionaram. Passei os dois últimos anos trabalhando como repórter para pequenos jornais do Brooklyn e, todos os domingos, voltando para casa da estação do trem que me leva de Hastings de volta para a cidade, faço aquele mesmo trajeto da Sétima Avenida.

Quando leio as anotações do meu pai, me sinto menos perdida. Não só reconheço a pessoa que meu pai foi, como reconheço a mim mesma.

Minha mãe me permitiu reproduzir algumas delas.

No dia 9 de setembro de 1991, ele escreveu: “Quero ficar na avenida no meio dos carros, a cabeça  ao vento, e gritar, gritar até que quase começo a viver ...  começo a viver o meu sonho. Preciso de alguma coisa. Muito tempo e muito pouco contato na minha vida ultimamente. Acho que a solidão pode matar”.

Meses mais tarde, no dia 10 de fevereiro de 1992: “Estou meio zonzo, como uma criança. Quero dançar”. Ela telefonou. Suzanne do Brooklyn. Sim. Ela adoraria sair de novo. Então será um brunch e assistiremos aos playoffs no apartamento dela no domingo. Deus, como eu estou feliz”.

“Muito tarde, na noite passada, depois das 11, estimulado pelo telefonema, dancei na cozinha no escuro. Uma música dos Stones, dancei com velhos fantasmas e ri deles. Tentando me livrar de demônios ou abraçar um novo sonho, dançar no escuro sempre foi muito bom”.

Suzanne é minha mãe, e foi através destes diários que soube quanto meu pai a ama. Seus diários me mostraram também quanto ele ama os amigos, e quanto me ama. Todas as anotações de 1997 a 2002 mencionam “a pequena Annabelle”.

Mas eu não estava preparada para o momento em que as anotações pararam. Dia 28 de abril de 2002, meu pai escreveu sobre a minha exibição no banheiro de Tomorrow, do musical Anne; e então a página seguinte está em branco. E também a seguinte, e a outra. Folheei o caderno de olhos escancarados não querendo admitir. Não queria que esta versão do me pai tivesse terminado.

Quando li a última anotação, ele e eu estávamos sentados lado a lado no sofá vendo Ellen na TV. Ela fazia o quadro "Perguntas Indiscretas" ao ator Bradley Cooper, mas as falas eram rápidas demais para ele, então ele ficou olhando o tapete.

Pensei nas cenas que acabara de ler: meu pai telefonando para os amigos à meia-noite para contar uma piada, pegando o metrô e lendo o jornal, pedindo a minha mãe que dançasse com ele. Observando-o agora, enquanto ele olhava o tapete, me senti incomodada por todo o tempo que ele passa em silêncio. Tive medo de tudo o que ele perdeu e continuaria perdendo.

“Pai”, falei.

“Sim?”

“Você ama a mamãe?”

Ele riu: “Claro”.

Respirei e desliguei a TV. Fiz o melhor que pude para estar com ele naquela hora, porque é tudo o que temos.

“Quanto você a ama?”

“O que você quer dizer com quanto?” Ele riu novamente. “Um litro”.

“E você me ama um galão [unidade de medida]?”

“Sim”, respondeu. Ele entendia. “Muitos galões”.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Meu pai estava na cozinha comendo feijão refrito (prato mexicano) diretamente da lata com um garfo, e Paul Simon cantava Graceland há 20 minutos sem parar.

“Ei, Alexa, vamos parar um pouco?”, ele disse finalmente, como se o alto-falante fosse uma criança que já havia brincado no escorrega até não poder mais. “Tá, vamos parar um pouco”.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Observei que ele acariciou o aparelho e depois delicadamente o mandou se calar.

“Alexa, desligue”, eu disse, e a cozinha ficou silenciosa.

Papai me deu uma olhada, a mesma que ele me dava quando eu tinha 10 anos e não queria telefonar para minha avó ou mandar cartões de agradecimento depois da minha festa de aniversário. O olhar de quem vai dar uma lição.

“Sim?”, perguntei.

“Da próxima vez,” ele disse, “diga por favor”.

Meu pai sempre foi o tipo de pessoa que gosta de ouvir os pássaros e recolher o lixo. Cresci admirando a forma como ele entrava em uma sala cheia de amigos que assistiam TV e perguntava: “Quem está a fim de conversar?” Ele queria saber o que as pessoas pensavam, e quando os telefones tocavam na mesa do jantar, ele sentava e olhava a gente baixando a cabeça e espiando no nosso colo como zumbis viciados em celulares.

Tento parecer mais com meu pai e assimilar estes valores. Mas estas suas características estão desaparecendo juntamente com a memória, e os recursos com os quais procuro estabelecer um contato com ele parecem menos um meio de comunicação e mais puro desespero.

Há quase cinco anos, quando meu pai tinha 62, ele descobriu que estava com Alzheimer. De lá para cá, minha mãe e eu observamos o seu declínio. Ele esquece os nomes dos amigos e não lê mais. Todas as manhãs, fica sentado com uma toalha de bolinhas azuis de criança à espera de alguém que o ajude a começar o dia.

Minha mãe diz: “Venha querido, vista-se”. “Escove os dentes, meu bem”. “Tome um pouco de suco de laranja, querido”.

Olho outros pais que ganham dinheiro, fazem panquecas e beijam a esposa, e me sinto deprimida. Como ficou pequeno o mundo do meu pai! Vejo minha mãe nervosa ao se comunicar com ele ou quando o leva a jantares onde os outros maridos conversam sobre trabalho e política, enquanto o dela pergunta, continuamente, se Frank Sinatra ainda está vivo.

Desde que me formei na faculdade, há dois anos, divido o meu tempo entre o meu apartamento no Brooklyn e a casa dos meus pais em Hastings-on-Hudson. Toda semana, faço a mala e pego o trem e viajo 50 quilômetros para ajudar a cuidar dele. Falo brincando que viver em dois lugares confunde um pouco. “É como se eu tivesse pais divorciados”, digo e abraço as colegas ao me despedir.

Luto para compreender a mim mesma, uma mulher de 23 anos que também cuida do pai. Fico tensa quando minhas colegas de quarto se vestem para ir trabalhar e perguntam que sapatos eu escolheria; ou quando falam dos seus objetivos: do que pretendem fazer; onde gostariam de morar. Eu fico espantada com a sua tranquilidade, parecendo tão seguras de sua liberdade e escolhas.

Não que eu não tenha meus planos, ou que não goste dos sapatos. É que tem uma coisa que eu sinto quando meu pai me chama de “mamãe” diante dos vizinhos pela manhã, e então pede desculpas, que me deixa paralisada na hora de dar conselhos sobre estilo ou falar dos meus sonhos.

Muitas vezes gostaria de poder perguntar ao meu pai quem ele era aos 23 anos. Gostaria de poder perguntar como ele tratava mamãe, ou o que ele costumava fazer aos sábados. Mas a sua capacidade de lembrar do passado desapareceu, por isso preciso me acostumar ao fato de não saber. Passo muito tempo fazendo outras perguntas para ele, mas minhas indagações já foram além da mera curiosidade casual.

Todas as semanas pergunto: “Pai, o que você mais gosta na mamãe?” “Papai, qual é a coisa de que você mais gosta em você mesmo?” “Pai, você gosta de chorar?”

Eu o sacudo como uma bola 8 mágica e faço tantas perguntas quanto posso. Mas como o brinquedo, as suas respostas são frases aleatórias que já ouvi antes. Sou paciente quando ele procura as palavras e as pronúncias, mas frequentemente acabamos fazendo charadas enquanto penso nas palavras que ele perdeu.

Em setembro do ano passado, eu e meus pais estávamos organizando coisas que guardamos no subsolo do prédio quando descobri uma caixa com velhas anotações do meu pai. Em baixo de revistas em quadrinhos do Superman e de ingressos para concerto estragados pela água, havia uns 15 cadernos datados de 1978 a 2002.

Minha mãe dizia que diários são um assunto íntimo e tentou escondê-los de mim, mas ela logo se deu conta que eu insistiria. Senti que moral e privacidade não tinham nenhuma importância se estes diários me dessem acesso à prisão em que meu pai se encontrava. Então comecei a lê-los. E eles foram uma grande dádiva para mim.

Em seus escritos, meu pai falava de temores e dúvidas íntimas e de todas as coisas que lhe davam alegrias. Copiei suas frases no meu diário e citava a sua sabedoria falando com os amigos. Ele também escrevia que percorria o Brooklyn de bicicleta, em busca de notícias para pequenos jornais, e que costumava sair da estação do metrô da Sétima Avenida e ir para casa atravessando o parque.

Até começar a ler esses diários, não tinha ideia de que ele tivesse feito estas coisas, e as semelhanças entre nós dois me impressionaram. Passei os dois últimos anos trabalhando como repórter para pequenos jornais do Brooklyn e, todos os domingos, voltando para casa da estação do trem que me leva de Hastings de volta para a cidade, faço aquele mesmo trajeto da Sétima Avenida.

Quando leio as anotações do meu pai, me sinto menos perdida. Não só reconheço a pessoa que meu pai foi, como reconheço a mim mesma.

Minha mãe me permitiu reproduzir algumas delas.

No dia 9 de setembro de 1991, ele escreveu: “Quero ficar na avenida no meio dos carros, a cabeça  ao vento, e gritar, gritar até que quase começo a viver ...  começo a viver o meu sonho. Preciso de alguma coisa. Muito tempo e muito pouco contato na minha vida ultimamente. Acho que a solidão pode matar”.

Meses mais tarde, no dia 10 de fevereiro de 1992: “Estou meio zonzo, como uma criança. Quero dançar”. Ela telefonou. Suzanne do Brooklyn. Sim. Ela adoraria sair de novo. Então será um brunch e assistiremos aos playoffs no apartamento dela no domingo. Deus, como eu estou feliz”.

“Muito tarde, na noite passada, depois das 11, estimulado pelo telefonema, dancei na cozinha no escuro. Uma música dos Stones, dancei com velhos fantasmas e ri deles. Tentando me livrar de demônios ou abraçar um novo sonho, dançar no escuro sempre foi muito bom”.

Suzanne é minha mãe, e foi através destes diários que soube quanto meu pai a ama. Seus diários me mostraram também quanto ele ama os amigos, e quanto me ama. Todas as anotações de 1997 a 2002 mencionam “a pequena Annabelle”.

Mas eu não estava preparada para o momento em que as anotações pararam. Dia 28 de abril de 2002, meu pai escreveu sobre a minha exibição no banheiro de Tomorrow, do musical Anne; e então a página seguinte está em branco. E também a seguinte, e a outra. Folheei o caderno de olhos escancarados não querendo admitir. Não queria que esta versão do me pai tivesse terminado.

Quando li a última anotação, ele e eu estávamos sentados lado a lado no sofá vendo Ellen na TV. Ela fazia o quadro "Perguntas Indiscretas" ao ator Bradley Cooper, mas as falas eram rápidas demais para ele, então ele ficou olhando o tapete.

Pensei nas cenas que acabara de ler: meu pai telefonando para os amigos à meia-noite para contar uma piada, pegando o metrô e lendo o jornal, pedindo a minha mãe que dançasse com ele. Observando-o agora, enquanto ele olhava o tapete, me senti incomodada por todo o tempo que ele passa em silêncio. Tive medo de tudo o que ele perdeu e continuaria perdendo.

“Pai”, falei.

“Sim?”

“Você ama a mamãe?”

Ele riu: “Claro”.

Respirei e desliguei a TV. Fiz o melhor que pude para estar com ele naquela hora, porque é tudo o que temos.

“Quanto você a ama?”

“O que você quer dizer com quanto?” Ele riu novamente. “Um litro”.

“E você me ama um galão [unidade de medida]?”

“Sim”, respondeu. Ele entendia. “Muitos galões”.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.