Modern Love: Lições sobre como abrir mão das coisas e abraçar uma vida mais leve


Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros’

Por Zoe Fowler

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três anos depois do meu divórcio, dei os sapatos do casamento à minha filha mais nova. Eles serviam perfeitamente, as tiras de couro azul claro realçando o arco de seu pé, os saltos de sete centímetros elevando sua graça élfica. Certa vez, eu tinha tirado esses sapatos e mergulhado os dedos dos pés no tapete de pele de carneiro do carro antigo que me levava a um cartório na Inglaterra.

Era julho e as rosas estavam magníficas.

Esses sapatos ficaram anos guardados num depósito e provavelmente ainda estariam lá se eu não tivesse ouvido um programa de rádio sobre a “limpeza sueca da morte” que dizia que seria possível viver com mais leveza se eu me desfizesse das coisas materiais.

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É isso que eu quero, uma vida mais leve. Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros.

Quando minha filha mais velha, que estava de folga do serviço militar, visitou nossa casa em Vermont, anunciei que esvaziaríamos o depósito juntas. Achei que seria um sinal visível da minha cura, uma demonstração de que estava seguindo com minha vida. Imaginei um ato de precisão militar. Mas não consegui encontrar a chave.

“Acontece o tempo todo”, disse a mulher do depósito que atendeu o telefone. “Meu marido cobra 25 dólares para quebrar as fechaduras. Só dinheiro vivo”.

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Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida. Foto: Brian Rea/The New York Times

Vinte e cinco dólares não é muito, mas era mais do que eu estava disposta a pagar. Meu casamento já tinha me custado bastante.

Vasculhei cada gaveta, desenterrei pacotes de sementes que nunca tinha plantado, revirei vouchers de itens que nunca tinha comprado, folheei receitas que nunca tinha feito. A chave finalmente apareceu numa pilha de recibos de cartão de crédito na gaveta de cima da minha escrivaninha.

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Dirigimos por estradas vicinais até o depósito, minha filha e eu, numa daquelas manhãs perfeitas de primavera na Nova Inglaterra, quando parece que dá para esquecer a monotonia nebulosa do inverno. Eu estava sorrindo quando abri a porta do depósito, mas aí a tristeza se assentou como poeira.

Três anos e meio antes, depois de um período ruim na reabilitação, meu ex-marido decidiu que preferia morar sozinho a voltar para a família. Sem conseguir pagar sozinha pela nossa imensa casa na montanha, doei o que pude, guardei o que precisávamos, encontrei uma casa menor e enchi este depósito.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida.

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Meu ex-marido e eu nos conhecemos no início da década de 1990, quando éramos estudantes de filosofia no norte da Inglaterra. Líamos a ética aristotélica, a metafísica cartesiana e as sombrias visões existenciais de Nietzsche. Se você abrisse qualquer um desses livros, veria as anotações que ele fizera a lápis, o formato de sua caligrafia tão familiar para mim quanto seu corpo.

Folhear as páginas dos livros era como vê-lo conversando profundamente com ideias que esqueci. Costumávamos levar esses livros ao parque com uma garrafa de vinho, cada um em comunhão com as palavras da página, nossos pés se tocando silenciosamente.

“O que você quer fazer com esses livros todos?”, minha filha mais velha perguntou.

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“Bote tudo numa caixa e escreva ‘Doação’”, eu disse.

A caixa seguinte não estava cheia de livros.

Na festa de aniversário de 21 anos do meu ex-marido, sua mãe o presenteou com uma estátua de bronze do Pensador de Rodin, um presente adequado para o filho filósofo. Eu fiquei ao lado dele, observando maravilhada enquanto ele colocava distraidamente a estátua entre castiçais de prata, talheres polidos e taças de cristal. Venho de uma família operária do norte, de uma cidade onde a siderúrgica fechou quando eu era pequena. Meu ex-marido cresceu com um tipo de riqueza sobre a qual eu só tinha lido nos romances.

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Depois que ele me deixou, enrolei a estátua no edredom tirado da nossa cama e a coloquei numa caixa só dela. Enquanto minha filha arrumava as coisas do depósito, fiquei cheirando o embrulho da estátua. Queria encontrar um cheiro que me lembrasse dele, mas, quando passei o edredom no rosto, ele cheirava a hinários antigos e orações nas quais não acreditava mais.

Coloquei o Pensador sobre a lareira e virei seu rosto para a parede.

“Ele pode ficar aí esperando até seu pai pedir de volta”, falei para a minha filha, depois enfiei o edredom num saco de lixo e pedi que ela que o deixasse no abrigo de animais local.

Eu tinha 25 anos quando nos casamos. Como presente de casamento, minha avó nos deu um lindo armário de banheiro feito de carvalho inglês. Meu ex e eu devemos ter trocado mil olhares no espelho enquanto escovávamos os dentes, penteávamos o cabelo ou nos preparávamos para sair à noite. Ele abria um sorriso quando me via olhando para ele.

Já faz muito tempo que não vejo um sorriso no rosto do meu ex. Já faz muito tempo que olho meu reflexo e só vejo tristeza nos meus olhos. Não quero ver a pessoa que me tornei no espelho onde me via, então mandei uma mensagem para um amigo, que disse que adoraria ficar com o armário do banheiro.

Quando minha filha mais nova chegou da escola, mostrei as laterais do berço de madeira que elas mastigavam quando seus dentinhos estavam crescendo.

“Você não pode jogar isso fora”, disse minha filha mais nova. “Quero esse berço para quando eu tiver filhos”.

Nós o levamos para o sótão e o cobrimos com um cobertor.

Ainda não sei como meu ex e eu vamos encarar o futuro das nossas filhas, como nos sentaremos perto um do outro para as cerimônias de casamento, como seremos avós juntos. Machucamos tanto um ao outro que não sei se ainda resta alguma coisa para curar.

Enquanto minhas filhas levavam as caixas para a doação, abri a velha mala que estava no canto. O governo inglês a entregara ao meu avô em 1945, depois de ele ter passado três anos num campo de prisioneiros. Anos mais tarde, meu pai me deu a mala quando saí de casa, aos 16 anos. Desde então, é onde guardo meus tesouros.

Como os ferrolhos de latão não funcionam mais, um velho cinto de couro a mantém fechada. Fiz força para abrir a fivela e comecei a chorar. Meu cachorro de pelúcia laranja estava em cima de tudo. Ele tinha perdido um dos olhos quando eu era pequena, mas minha avó costurou um novo com linha branca e escura. Eu não o amo menos porque seus olhos não combinam.

Por baixo dele estavam o minúsculo macacão de algodão que a nossa filha mais velha usou na noite do seu nascimento, envelopes cheios de cartas que meus avós me escreveram e álbuns de fotografias tiradas nas ruas inglesas, que agora me parecem estrangeiras.

Meus sapatos de casamento estavam embrulhados na camisa floral azul que o homem que se tornaria meu melhor amigo, depois meu amante, depois meu marido e depois meu ex-marido estava usando na noite em que nos conhecemos. Ainda me lembro do toque de sua mão nas minhas costas, da luz das velas lançando sombras sobre o oceano verde de seus olhos e do tremor branco na sua garganta quando ele engolia vinho tinto.

Não sei onde o método da limpeza sueca recomendaria que uma mulher de 50 anos colocasse uma camisa como esta. É muito velha para usar, muito gasta para ser doada a um brechó. Embora eu a tenha levado até a lata de lixo, não consegui jogá-la fora.

Depois de tirar os sapatos da maleta, guardei a camisa de volta e afivelei o cinto o máximo que pude. Perder a memória de como as coisas um dia foram preciosas está entre meus maiores medos: mesmo cercada de tantas coisas que compartilhamos, não consigo estancar o esquecimento.

Mas os sapatos! Eu os entreguei à minha filha mais nova no café da manhã do dia seguinte e ela gritou de alegria. Ela está planejando usá-los neste verão. Já posso imaginá-la dançando até tarde da noite e depois caminhando até o lago no crepúsculo do verão. Ela vai ficar na beira da água com os vaga-lumes piscando e meus sapatos de casamento soltos numa das mãos, evocando uma vida cheia de todas as coisas que ela vai levar anos para entender que na verdade não precisa carregar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três anos depois do meu divórcio, dei os sapatos do casamento à minha filha mais nova. Eles serviam perfeitamente, as tiras de couro azul claro realçando o arco de seu pé, os saltos de sete centímetros elevando sua graça élfica. Certa vez, eu tinha tirado esses sapatos e mergulhado os dedos dos pés no tapete de pele de carneiro do carro antigo que me levava a um cartório na Inglaterra.

Era julho e as rosas estavam magníficas.

Esses sapatos ficaram anos guardados num depósito e provavelmente ainda estariam lá se eu não tivesse ouvido um programa de rádio sobre a “limpeza sueca da morte” que dizia que seria possível viver com mais leveza se eu me desfizesse das coisas materiais.

É isso que eu quero, uma vida mais leve. Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros.

Quando minha filha mais velha, que estava de folga do serviço militar, visitou nossa casa em Vermont, anunciei que esvaziaríamos o depósito juntas. Achei que seria um sinal visível da minha cura, uma demonstração de que estava seguindo com minha vida. Imaginei um ato de precisão militar. Mas não consegui encontrar a chave.

“Acontece o tempo todo”, disse a mulher do depósito que atendeu o telefone. “Meu marido cobra 25 dólares para quebrar as fechaduras. Só dinheiro vivo”.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida. Foto: Brian Rea/The New York Times

Vinte e cinco dólares não é muito, mas era mais do que eu estava disposta a pagar. Meu casamento já tinha me custado bastante.

Vasculhei cada gaveta, desenterrei pacotes de sementes que nunca tinha plantado, revirei vouchers de itens que nunca tinha comprado, folheei receitas que nunca tinha feito. A chave finalmente apareceu numa pilha de recibos de cartão de crédito na gaveta de cima da minha escrivaninha.

Dirigimos por estradas vicinais até o depósito, minha filha e eu, numa daquelas manhãs perfeitas de primavera na Nova Inglaterra, quando parece que dá para esquecer a monotonia nebulosa do inverno. Eu estava sorrindo quando abri a porta do depósito, mas aí a tristeza se assentou como poeira.

Três anos e meio antes, depois de um período ruim na reabilitação, meu ex-marido decidiu que preferia morar sozinho a voltar para a família. Sem conseguir pagar sozinha pela nossa imensa casa na montanha, doei o que pude, guardei o que precisávamos, encontrei uma casa menor e enchi este depósito.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida.

Meu ex-marido e eu nos conhecemos no início da década de 1990, quando éramos estudantes de filosofia no norte da Inglaterra. Líamos a ética aristotélica, a metafísica cartesiana e as sombrias visões existenciais de Nietzsche. Se você abrisse qualquer um desses livros, veria as anotações que ele fizera a lápis, o formato de sua caligrafia tão familiar para mim quanto seu corpo.

Folhear as páginas dos livros era como vê-lo conversando profundamente com ideias que esqueci. Costumávamos levar esses livros ao parque com uma garrafa de vinho, cada um em comunhão com as palavras da página, nossos pés se tocando silenciosamente.

“O que você quer fazer com esses livros todos?”, minha filha mais velha perguntou.

“Bote tudo numa caixa e escreva ‘Doação’”, eu disse.

A caixa seguinte não estava cheia de livros.

Na festa de aniversário de 21 anos do meu ex-marido, sua mãe o presenteou com uma estátua de bronze do Pensador de Rodin, um presente adequado para o filho filósofo. Eu fiquei ao lado dele, observando maravilhada enquanto ele colocava distraidamente a estátua entre castiçais de prata, talheres polidos e taças de cristal. Venho de uma família operária do norte, de uma cidade onde a siderúrgica fechou quando eu era pequena. Meu ex-marido cresceu com um tipo de riqueza sobre a qual eu só tinha lido nos romances.

Depois que ele me deixou, enrolei a estátua no edredom tirado da nossa cama e a coloquei numa caixa só dela. Enquanto minha filha arrumava as coisas do depósito, fiquei cheirando o embrulho da estátua. Queria encontrar um cheiro que me lembrasse dele, mas, quando passei o edredom no rosto, ele cheirava a hinários antigos e orações nas quais não acreditava mais.

Coloquei o Pensador sobre a lareira e virei seu rosto para a parede.

“Ele pode ficar aí esperando até seu pai pedir de volta”, falei para a minha filha, depois enfiei o edredom num saco de lixo e pedi que ela que o deixasse no abrigo de animais local.

Eu tinha 25 anos quando nos casamos. Como presente de casamento, minha avó nos deu um lindo armário de banheiro feito de carvalho inglês. Meu ex e eu devemos ter trocado mil olhares no espelho enquanto escovávamos os dentes, penteávamos o cabelo ou nos preparávamos para sair à noite. Ele abria um sorriso quando me via olhando para ele.

Já faz muito tempo que não vejo um sorriso no rosto do meu ex. Já faz muito tempo que olho meu reflexo e só vejo tristeza nos meus olhos. Não quero ver a pessoa que me tornei no espelho onde me via, então mandei uma mensagem para um amigo, que disse que adoraria ficar com o armário do banheiro.

Quando minha filha mais nova chegou da escola, mostrei as laterais do berço de madeira que elas mastigavam quando seus dentinhos estavam crescendo.

“Você não pode jogar isso fora”, disse minha filha mais nova. “Quero esse berço para quando eu tiver filhos”.

Nós o levamos para o sótão e o cobrimos com um cobertor.

Ainda não sei como meu ex e eu vamos encarar o futuro das nossas filhas, como nos sentaremos perto um do outro para as cerimônias de casamento, como seremos avós juntos. Machucamos tanto um ao outro que não sei se ainda resta alguma coisa para curar.

Enquanto minhas filhas levavam as caixas para a doação, abri a velha mala que estava no canto. O governo inglês a entregara ao meu avô em 1945, depois de ele ter passado três anos num campo de prisioneiros. Anos mais tarde, meu pai me deu a mala quando saí de casa, aos 16 anos. Desde então, é onde guardo meus tesouros.

Como os ferrolhos de latão não funcionam mais, um velho cinto de couro a mantém fechada. Fiz força para abrir a fivela e comecei a chorar. Meu cachorro de pelúcia laranja estava em cima de tudo. Ele tinha perdido um dos olhos quando eu era pequena, mas minha avó costurou um novo com linha branca e escura. Eu não o amo menos porque seus olhos não combinam.

Por baixo dele estavam o minúsculo macacão de algodão que a nossa filha mais velha usou na noite do seu nascimento, envelopes cheios de cartas que meus avós me escreveram e álbuns de fotografias tiradas nas ruas inglesas, que agora me parecem estrangeiras.

Meus sapatos de casamento estavam embrulhados na camisa floral azul que o homem que se tornaria meu melhor amigo, depois meu amante, depois meu marido e depois meu ex-marido estava usando na noite em que nos conhecemos. Ainda me lembro do toque de sua mão nas minhas costas, da luz das velas lançando sombras sobre o oceano verde de seus olhos e do tremor branco na sua garganta quando ele engolia vinho tinto.

Não sei onde o método da limpeza sueca recomendaria que uma mulher de 50 anos colocasse uma camisa como esta. É muito velha para usar, muito gasta para ser doada a um brechó. Embora eu a tenha levado até a lata de lixo, não consegui jogá-la fora.

Depois de tirar os sapatos da maleta, guardei a camisa de volta e afivelei o cinto o máximo que pude. Perder a memória de como as coisas um dia foram preciosas está entre meus maiores medos: mesmo cercada de tantas coisas que compartilhamos, não consigo estancar o esquecimento.

Mas os sapatos! Eu os entreguei à minha filha mais nova no café da manhã do dia seguinte e ela gritou de alegria. Ela está planejando usá-los neste verão. Já posso imaginá-la dançando até tarde da noite e depois caminhando até o lago no crepúsculo do verão. Ela vai ficar na beira da água com os vaga-lumes piscando e meus sapatos de casamento soltos numa das mãos, evocando uma vida cheia de todas as coisas que ela vai levar anos para entender que na verdade não precisa carregar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três anos depois do meu divórcio, dei os sapatos do casamento à minha filha mais nova. Eles serviam perfeitamente, as tiras de couro azul claro realçando o arco de seu pé, os saltos de sete centímetros elevando sua graça élfica. Certa vez, eu tinha tirado esses sapatos e mergulhado os dedos dos pés no tapete de pele de carneiro do carro antigo que me levava a um cartório na Inglaterra.

Era julho e as rosas estavam magníficas.

Esses sapatos ficaram anos guardados num depósito e provavelmente ainda estariam lá se eu não tivesse ouvido um programa de rádio sobre a “limpeza sueca da morte” que dizia que seria possível viver com mais leveza se eu me desfizesse das coisas materiais.

É isso que eu quero, uma vida mais leve. Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros.

Quando minha filha mais velha, que estava de folga do serviço militar, visitou nossa casa em Vermont, anunciei que esvaziaríamos o depósito juntas. Achei que seria um sinal visível da minha cura, uma demonstração de que estava seguindo com minha vida. Imaginei um ato de precisão militar. Mas não consegui encontrar a chave.

“Acontece o tempo todo”, disse a mulher do depósito que atendeu o telefone. “Meu marido cobra 25 dólares para quebrar as fechaduras. Só dinheiro vivo”.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida. Foto: Brian Rea/The New York Times

Vinte e cinco dólares não é muito, mas era mais do que eu estava disposta a pagar. Meu casamento já tinha me custado bastante.

Vasculhei cada gaveta, desenterrei pacotes de sementes que nunca tinha plantado, revirei vouchers de itens que nunca tinha comprado, folheei receitas que nunca tinha feito. A chave finalmente apareceu numa pilha de recibos de cartão de crédito na gaveta de cima da minha escrivaninha.

Dirigimos por estradas vicinais até o depósito, minha filha e eu, numa daquelas manhãs perfeitas de primavera na Nova Inglaterra, quando parece que dá para esquecer a monotonia nebulosa do inverno. Eu estava sorrindo quando abri a porta do depósito, mas aí a tristeza se assentou como poeira.

Três anos e meio antes, depois de um período ruim na reabilitação, meu ex-marido decidiu que preferia morar sozinho a voltar para a família. Sem conseguir pagar sozinha pela nossa imensa casa na montanha, doei o que pude, guardei o que precisávamos, encontrei uma casa menor e enchi este depósito.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida.

Meu ex-marido e eu nos conhecemos no início da década de 1990, quando éramos estudantes de filosofia no norte da Inglaterra. Líamos a ética aristotélica, a metafísica cartesiana e as sombrias visões existenciais de Nietzsche. Se você abrisse qualquer um desses livros, veria as anotações que ele fizera a lápis, o formato de sua caligrafia tão familiar para mim quanto seu corpo.

Folhear as páginas dos livros era como vê-lo conversando profundamente com ideias que esqueci. Costumávamos levar esses livros ao parque com uma garrafa de vinho, cada um em comunhão com as palavras da página, nossos pés se tocando silenciosamente.

“O que você quer fazer com esses livros todos?”, minha filha mais velha perguntou.

“Bote tudo numa caixa e escreva ‘Doação’”, eu disse.

A caixa seguinte não estava cheia de livros.

Na festa de aniversário de 21 anos do meu ex-marido, sua mãe o presenteou com uma estátua de bronze do Pensador de Rodin, um presente adequado para o filho filósofo. Eu fiquei ao lado dele, observando maravilhada enquanto ele colocava distraidamente a estátua entre castiçais de prata, talheres polidos e taças de cristal. Venho de uma família operária do norte, de uma cidade onde a siderúrgica fechou quando eu era pequena. Meu ex-marido cresceu com um tipo de riqueza sobre a qual eu só tinha lido nos romances.

Depois que ele me deixou, enrolei a estátua no edredom tirado da nossa cama e a coloquei numa caixa só dela. Enquanto minha filha arrumava as coisas do depósito, fiquei cheirando o embrulho da estátua. Queria encontrar um cheiro que me lembrasse dele, mas, quando passei o edredom no rosto, ele cheirava a hinários antigos e orações nas quais não acreditava mais.

Coloquei o Pensador sobre a lareira e virei seu rosto para a parede.

“Ele pode ficar aí esperando até seu pai pedir de volta”, falei para a minha filha, depois enfiei o edredom num saco de lixo e pedi que ela que o deixasse no abrigo de animais local.

Eu tinha 25 anos quando nos casamos. Como presente de casamento, minha avó nos deu um lindo armário de banheiro feito de carvalho inglês. Meu ex e eu devemos ter trocado mil olhares no espelho enquanto escovávamos os dentes, penteávamos o cabelo ou nos preparávamos para sair à noite. Ele abria um sorriso quando me via olhando para ele.

Já faz muito tempo que não vejo um sorriso no rosto do meu ex. Já faz muito tempo que olho meu reflexo e só vejo tristeza nos meus olhos. Não quero ver a pessoa que me tornei no espelho onde me via, então mandei uma mensagem para um amigo, que disse que adoraria ficar com o armário do banheiro.

Quando minha filha mais nova chegou da escola, mostrei as laterais do berço de madeira que elas mastigavam quando seus dentinhos estavam crescendo.

“Você não pode jogar isso fora”, disse minha filha mais nova. “Quero esse berço para quando eu tiver filhos”.

Nós o levamos para o sótão e o cobrimos com um cobertor.

Ainda não sei como meu ex e eu vamos encarar o futuro das nossas filhas, como nos sentaremos perto um do outro para as cerimônias de casamento, como seremos avós juntos. Machucamos tanto um ao outro que não sei se ainda resta alguma coisa para curar.

Enquanto minhas filhas levavam as caixas para a doação, abri a velha mala que estava no canto. O governo inglês a entregara ao meu avô em 1945, depois de ele ter passado três anos num campo de prisioneiros. Anos mais tarde, meu pai me deu a mala quando saí de casa, aos 16 anos. Desde então, é onde guardo meus tesouros.

Como os ferrolhos de latão não funcionam mais, um velho cinto de couro a mantém fechada. Fiz força para abrir a fivela e comecei a chorar. Meu cachorro de pelúcia laranja estava em cima de tudo. Ele tinha perdido um dos olhos quando eu era pequena, mas minha avó costurou um novo com linha branca e escura. Eu não o amo menos porque seus olhos não combinam.

Por baixo dele estavam o minúsculo macacão de algodão que a nossa filha mais velha usou na noite do seu nascimento, envelopes cheios de cartas que meus avós me escreveram e álbuns de fotografias tiradas nas ruas inglesas, que agora me parecem estrangeiras.

Meus sapatos de casamento estavam embrulhados na camisa floral azul que o homem que se tornaria meu melhor amigo, depois meu amante, depois meu marido e depois meu ex-marido estava usando na noite em que nos conhecemos. Ainda me lembro do toque de sua mão nas minhas costas, da luz das velas lançando sombras sobre o oceano verde de seus olhos e do tremor branco na sua garganta quando ele engolia vinho tinto.

Não sei onde o método da limpeza sueca recomendaria que uma mulher de 50 anos colocasse uma camisa como esta. É muito velha para usar, muito gasta para ser doada a um brechó. Embora eu a tenha levado até a lata de lixo, não consegui jogá-la fora.

Depois de tirar os sapatos da maleta, guardei a camisa de volta e afivelei o cinto o máximo que pude. Perder a memória de como as coisas um dia foram preciosas está entre meus maiores medos: mesmo cercada de tantas coisas que compartilhamos, não consigo estancar o esquecimento.

Mas os sapatos! Eu os entreguei à minha filha mais nova no café da manhã do dia seguinte e ela gritou de alegria. Ela está planejando usá-los neste verão. Já posso imaginá-la dançando até tarde da noite e depois caminhando até o lago no crepúsculo do verão. Ela vai ficar na beira da água com os vaga-lumes piscando e meus sapatos de casamento soltos numa das mãos, evocando uma vida cheia de todas as coisas que ela vai levar anos para entender que na verdade não precisa carregar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três anos depois do meu divórcio, dei os sapatos do casamento à minha filha mais nova. Eles serviam perfeitamente, as tiras de couro azul claro realçando o arco de seu pé, os saltos de sete centímetros elevando sua graça élfica. Certa vez, eu tinha tirado esses sapatos e mergulhado os dedos dos pés no tapete de pele de carneiro do carro antigo que me levava a um cartório na Inglaterra.

Era julho e as rosas estavam magníficas.

Esses sapatos ficaram anos guardados num depósito e provavelmente ainda estariam lá se eu não tivesse ouvido um programa de rádio sobre a “limpeza sueca da morte” que dizia que seria possível viver com mais leveza se eu me desfizesse das coisas materiais.

É isso que eu quero, uma vida mais leve. Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros.

Quando minha filha mais velha, que estava de folga do serviço militar, visitou nossa casa em Vermont, anunciei que esvaziaríamos o depósito juntas. Achei que seria um sinal visível da minha cura, uma demonstração de que estava seguindo com minha vida. Imaginei um ato de precisão militar. Mas não consegui encontrar a chave.

“Acontece o tempo todo”, disse a mulher do depósito que atendeu o telefone. “Meu marido cobra 25 dólares para quebrar as fechaduras. Só dinheiro vivo”.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida. Foto: Brian Rea/The New York Times

Vinte e cinco dólares não é muito, mas era mais do que eu estava disposta a pagar. Meu casamento já tinha me custado bastante.

Vasculhei cada gaveta, desenterrei pacotes de sementes que nunca tinha plantado, revirei vouchers de itens que nunca tinha comprado, folheei receitas que nunca tinha feito. A chave finalmente apareceu numa pilha de recibos de cartão de crédito na gaveta de cima da minha escrivaninha.

Dirigimos por estradas vicinais até o depósito, minha filha e eu, numa daquelas manhãs perfeitas de primavera na Nova Inglaterra, quando parece que dá para esquecer a monotonia nebulosa do inverno. Eu estava sorrindo quando abri a porta do depósito, mas aí a tristeza se assentou como poeira.

Três anos e meio antes, depois de um período ruim na reabilitação, meu ex-marido decidiu que preferia morar sozinho a voltar para a família. Sem conseguir pagar sozinha pela nossa imensa casa na montanha, doei o que pude, guardei o que precisávamos, encontrei uma casa menor e enchi este depósito.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida.

Meu ex-marido e eu nos conhecemos no início da década de 1990, quando éramos estudantes de filosofia no norte da Inglaterra. Líamos a ética aristotélica, a metafísica cartesiana e as sombrias visões existenciais de Nietzsche. Se você abrisse qualquer um desses livros, veria as anotações que ele fizera a lápis, o formato de sua caligrafia tão familiar para mim quanto seu corpo.

Folhear as páginas dos livros era como vê-lo conversando profundamente com ideias que esqueci. Costumávamos levar esses livros ao parque com uma garrafa de vinho, cada um em comunhão com as palavras da página, nossos pés se tocando silenciosamente.

“O que você quer fazer com esses livros todos?”, minha filha mais velha perguntou.

“Bote tudo numa caixa e escreva ‘Doação’”, eu disse.

A caixa seguinte não estava cheia de livros.

Na festa de aniversário de 21 anos do meu ex-marido, sua mãe o presenteou com uma estátua de bronze do Pensador de Rodin, um presente adequado para o filho filósofo. Eu fiquei ao lado dele, observando maravilhada enquanto ele colocava distraidamente a estátua entre castiçais de prata, talheres polidos e taças de cristal. Venho de uma família operária do norte, de uma cidade onde a siderúrgica fechou quando eu era pequena. Meu ex-marido cresceu com um tipo de riqueza sobre a qual eu só tinha lido nos romances.

Depois que ele me deixou, enrolei a estátua no edredom tirado da nossa cama e a coloquei numa caixa só dela. Enquanto minha filha arrumava as coisas do depósito, fiquei cheirando o embrulho da estátua. Queria encontrar um cheiro que me lembrasse dele, mas, quando passei o edredom no rosto, ele cheirava a hinários antigos e orações nas quais não acreditava mais.

Coloquei o Pensador sobre a lareira e virei seu rosto para a parede.

“Ele pode ficar aí esperando até seu pai pedir de volta”, falei para a minha filha, depois enfiei o edredom num saco de lixo e pedi que ela que o deixasse no abrigo de animais local.

Eu tinha 25 anos quando nos casamos. Como presente de casamento, minha avó nos deu um lindo armário de banheiro feito de carvalho inglês. Meu ex e eu devemos ter trocado mil olhares no espelho enquanto escovávamos os dentes, penteávamos o cabelo ou nos preparávamos para sair à noite. Ele abria um sorriso quando me via olhando para ele.

Já faz muito tempo que não vejo um sorriso no rosto do meu ex. Já faz muito tempo que olho meu reflexo e só vejo tristeza nos meus olhos. Não quero ver a pessoa que me tornei no espelho onde me via, então mandei uma mensagem para um amigo, que disse que adoraria ficar com o armário do banheiro.

Quando minha filha mais nova chegou da escola, mostrei as laterais do berço de madeira que elas mastigavam quando seus dentinhos estavam crescendo.

“Você não pode jogar isso fora”, disse minha filha mais nova. “Quero esse berço para quando eu tiver filhos”.

Nós o levamos para o sótão e o cobrimos com um cobertor.

Ainda não sei como meu ex e eu vamos encarar o futuro das nossas filhas, como nos sentaremos perto um do outro para as cerimônias de casamento, como seremos avós juntos. Machucamos tanto um ao outro que não sei se ainda resta alguma coisa para curar.

Enquanto minhas filhas levavam as caixas para a doação, abri a velha mala que estava no canto. O governo inglês a entregara ao meu avô em 1945, depois de ele ter passado três anos num campo de prisioneiros. Anos mais tarde, meu pai me deu a mala quando saí de casa, aos 16 anos. Desde então, é onde guardo meus tesouros.

Como os ferrolhos de latão não funcionam mais, um velho cinto de couro a mantém fechada. Fiz força para abrir a fivela e comecei a chorar. Meu cachorro de pelúcia laranja estava em cima de tudo. Ele tinha perdido um dos olhos quando eu era pequena, mas minha avó costurou um novo com linha branca e escura. Eu não o amo menos porque seus olhos não combinam.

Por baixo dele estavam o minúsculo macacão de algodão que a nossa filha mais velha usou na noite do seu nascimento, envelopes cheios de cartas que meus avós me escreveram e álbuns de fotografias tiradas nas ruas inglesas, que agora me parecem estrangeiras.

Meus sapatos de casamento estavam embrulhados na camisa floral azul que o homem que se tornaria meu melhor amigo, depois meu amante, depois meu marido e depois meu ex-marido estava usando na noite em que nos conhecemos. Ainda me lembro do toque de sua mão nas minhas costas, da luz das velas lançando sombras sobre o oceano verde de seus olhos e do tremor branco na sua garganta quando ele engolia vinho tinto.

Não sei onde o método da limpeza sueca recomendaria que uma mulher de 50 anos colocasse uma camisa como esta. É muito velha para usar, muito gasta para ser doada a um brechó. Embora eu a tenha levado até a lata de lixo, não consegui jogá-la fora.

Depois de tirar os sapatos da maleta, guardei a camisa de volta e afivelei o cinto o máximo que pude. Perder a memória de como as coisas um dia foram preciosas está entre meus maiores medos: mesmo cercada de tantas coisas que compartilhamos, não consigo estancar o esquecimento.

Mas os sapatos! Eu os entreguei à minha filha mais nova no café da manhã do dia seguinte e ela gritou de alegria. Ela está planejando usá-los neste verão. Já posso imaginá-la dançando até tarde da noite e depois caminhando até o lago no crepúsculo do verão. Ela vai ficar na beira da água com os vaga-lumes piscando e meus sapatos de casamento soltos numa das mãos, evocando uma vida cheia de todas as coisas que ela vai levar anos para entender que na verdade não precisa carregar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Três anos depois do meu divórcio, dei os sapatos do casamento à minha filha mais nova. Eles serviam perfeitamente, as tiras de couro azul claro realçando o arco de seu pé, os saltos de sete centímetros elevando sua graça élfica. Certa vez, eu tinha tirado esses sapatos e mergulhado os dedos dos pés no tapete de pele de carneiro do carro antigo que me levava a um cartório na Inglaterra.

Era julho e as rosas estavam magníficas.

Esses sapatos ficaram anos guardados num depósito e provavelmente ainda estariam lá se eu não tivesse ouvido um programa de rádio sobre a “limpeza sueca da morte” que dizia que seria possível viver com mais leveza se eu me desfizesse das coisas materiais.

É isso que eu quero, uma vida mais leve. Tem dias em que o peso da minha tristeza curva minhas costas e quase quebra meus ombros.

Quando minha filha mais velha, que estava de folga do serviço militar, visitou nossa casa em Vermont, anunciei que esvaziaríamos o depósito juntas. Achei que seria um sinal visível da minha cura, uma demonstração de que estava seguindo com minha vida. Imaginei um ato de precisão militar. Mas não consegui encontrar a chave.

“Acontece o tempo todo”, disse a mulher do depósito que atendeu o telefone. “Meu marido cobra 25 dólares para quebrar as fechaduras. Só dinheiro vivo”.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida. Foto: Brian Rea/The New York Times

Vinte e cinco dólares não é muito, mas era mais do que eu estava disposta a pagar. Meu casamento já tinha me custado bastante.

Vasculhei cada gaveta, desenterrei pacotes de sementes que nunca tinha plantado, revirei vouchers de itens que nunca tinha comprado, folheei receitas que nunca tinha feito. A chave finalmente apareceu numa pilha de recibos de cartão de crédito na gaveta de cima da minha escrivaninha.

Dirigimos por estradas vicinais até o depósito, minha filha e eu, numa daquelas manhãs perfeitas de primavera na Nova Inglaterra, quando parece que dá para esquecer a monotonia nebulosa do inverno. Eu estava sorrindo quando abri a porta do depósito, mas aí a tristeza se assentou como poeira.

Três anos e meio antes, depois de um período ruim na reabilitação, meu ex-marido decidiu que preferia morar sozinho a voltar para a família. Sem conseguir pagar sozinha pela nossa imensa casa na montanha, doei o que pude, guardei o que precisávamos, encontrei uma casa menor e enchi este depósito.

Foram necessárias quatro viagens na caminhonete da minha filha para transportar 25 anos da minha vida.

Meu ex-marido e eu nos conhecemos no início da década de 1990, quando éramos estudantes de filosofia no norte da Inglaterra. Líamos a ética aristotélica, a metafísica cartesiana e as sombrias visões existenciais de Nietzsche. Se você abrisse qualquer um desses livros, veria as anotações que ele fizera a lápis, o formato de sua caligrafia tão familiar para mim quanto seu corpo.

Folhear as páginas dos livros era como vê-lo conversando profundamente com ideias que esqueci. Costumávamos levar esses livros ao parque com uma garrafa de vinho, cada um em comunhão com as palavras da página, nossos pés se tocando silenciosamente.

“O que você quer fazer com esses livros todos?”, minha filha mais velha perguntou.

“Bote tudo numa caixa e escreva ‘Doação’”, eu disse.

A caixa seguinte não estava cheia de livros.

Na festa de aniversário de 21 anos do meu ex-marido, sua mãe o presenteou com uma estátua de bronze do Pensador de Rodin, um presente adequado para o filho filósofo. Eu fiquei ao lado dele, observando maravilhada enquanto ele colocava distraidamente a estátua entre castiçais de prata, talheres polidos e taças de cristal. Venho de uma família operária do norte, de uma cidade onde a siderúrgica fechou quando eu era pequena. Meu ex-marido cresceu com um tipo de riqueza sobre a qual eu só tinha lido nos romances.

Depois que ele me deixou, enrolei a estátua no edredom tirado da nossa cama e a coloquei numa caixa só dela. Enquanto minha filha arrumava as coisas do depósito, fiquei cheirando o embrulho da estátua. Queria encontrar um cheiro que me lembrasse dele, mas, quando passei o edredom no rosto, ele cheirava a hinários antigos e orações nas quais não acreditava mais.

Coloquei o Pensador sobre a lareira e virei seu rosto para a parede.

“Ele pode ficar aí esperando até seu pai pedir de volta”, falei para a minha filha, depois enfiei o edredom num saco de lixo e pedi que ela que o deixasse no abrigo de animais local.

Eu tinha 25 anos quando nos casamos. Como presente de casamento, minha avó nos deu um lindo armário de banheiro feito de carvalho inglês. Meu ex e eu devemos ter trocado mil olhares no espelho enquanto escovávamos os dentes, penteávamos o cabelo ou nos preparávamos para sair à noite. Ele abria um sorriso quando me via olhando para ele.

Já faz muito tempo que não vejo um sorriso no rosto do meu ex. Já faz muito tempo que olho meu reflexo e só vejo tristeza nos meus olhos. Não quero ver a pessoa que me tornei no espelho onde me via, então mandei uma mensagem para um amigo, que disse que adoraria ficar com o armário do banheiro.

Quando minha filha mais nova chegou da escola, mostrei as laterais do berço de madeira que elas mastigavam quando seus dentinhos estavam crescendo.

“Você não pode jogar isso fora”, disse minha filha mais nova. “Quero esse berço para quando eu tiver filhos”.

Nós o levamos para o sótão e o cobrimos com um cobertor.

Ainda não sei como meu ex e eu vamos encarar o futuro das nossas filhas, como nos sentaremos perto um do outro para as cerimônias de casamento, como seremos avós juntos. Machucamos tanto um ao outro que não sei se ainda resta alguma coisa para curar.

Enquanto minhas filhas levavam as caixas para a doação, abri a velha mala que estava no canto. O governo inglês a entregara ao meu avô em 1945, depois de ele ter passado três anos num campo de prisioneiros. Anos mais tarde, meu pai me deu a mala quando saí de casa, aos 16 anos. Desde então, é onde guardo meus tesouros.

Como os ferrolhos de latão não funcionam mais, um velho cinto de couro a mantém fechada. Fiz força para abrir a fivela e comecei a chorar. Meu cachorro de pelúcia laranja estava em cima de tudo. Ele tinha perdido um dos olhos quando eu era pequena, mas minha avó costurou um novo com linha branca e escura. Eu não o amo menos porque seus olhos não combinam.

Por baixo dele estavam o minúsculo macacão de algodão que a nossa filha mais velha usou na noite do seu nascimento, envelopes cheios de cartas que meus avós me escreveram e álbuns de fotografias tiradas nas ruas inglesas, que agora me parecem estrangeiras.

Meus sapatos de casamento estavam embrulhados na camisa floral azul que o homem que se tornaria meu melhor amigo, depois meu amante, depois meu marido e depois meu ex-marido estava usando na noite em que nos conhecemos. Ainda me lembro do toque de sua mão nas minhas costas, da luz das velas lançando sombras sobre o oceano verde de seus olhos e do tremor branco na sua garganta quando ele engolia vinho tinto.

Não sei onde o método da limpeza sueca recomendaria que uma mulher de 50 anos colocasse uma camisa como esta. É muito velha para usar, muito gasta para ser doada a um brechó. Embora eu a tenha levado até a lata de lixo, não consegui jogá-la fora.

Depois de tirar os sapatos da maleta, guardei a camisa de volta e afivelei o cinto o máximo que pude. Perder a memória de como as coisas um dia foram preciosas está entre meus maiores medos: mesmo cercada de tantas coisas que compartilhamos, não consigo estancar o esquecimento.

Mas os sapatos! Eu os entreguei à minha filha mais nova no café da manhã do dia seguinte e ela gritou de alegria. Ela está planejando usá-los neste verão. Já posso imaginá-la dançando até tarde da noite e depois caminhando até o lago no crepúsculo do verão. Ela vai ficar na beira da água com os vaga-lumes piscando e meus sapatos de casamento soltos numa das mãos, evocando uma vida cheia de todas as coisas que ela vai levar anos para entender que na verdade não precisa carregar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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