Modern Love: Onde está a vida selvagem dos livros, papai?


Um pai teme que os livros infantis favoritos da sua infância prometam à sua filha um vibrante mundo natural que não existirá mais

Por Paul Bogard
Atualização:

Certa vez, no quarto que seria do meu primeiro filho, eu ficava imaginando o que falaria a ele do nosso mundo que está desaparecendo. Graças à generosidade de familiares e amigos, uma modesta biblioteca de livros infantis encheu as nossas prateleiras, incluindo quatro exemplares de The Very Hungry Caterpillar (Uma lagarta muito comilona) e três de Goodnight Moon (Boa Noite, Lua). Como tantos novos pais, não via a hora de ler para a nossa filha.

Mas naquele dia, há cerca de três anos, peguei os livros que tinham sido os meus favoritos na minha infância, dezenas de anos antes, e me perguntei se iria compartilhá-los com ela. Cada um deles agora se tornara um clássico: Onde Vivem os Monstros, Swimmy, A História de Babar, A Snowy Day, Make Way for Ducklings. Mas todos estes livros, lançados no começo e em meados do século 20, são de um tempo em que o mundo era um lugar diferente.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 
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Diferente, principalmente, era o mundo selvagem, oceanos, invernos e até mesmo pássaros comuns. Desde que o mais antigo desses livros, A História de Babar, foi publicado em 1931, a população de elefantes da África caiu de 10 milhões para cerca de 400 mil. Desde que Onde Vivem os Monstros foi publicado em 1963, o mundo perdeu, ao que se calcula, dois terços de sua vida selvagem. Teremos menos dias com neve daqui em diante e menos patinhos para abrir caminho? Nos últimos 50 anos, os céus da América do Norte perderam cerca de três bilhões de aves.

Enquanto folheava Swimmy, do autor Leo Leoni, em que um peixinho preto viaja no fundo por um oceano colorido de vida – os oceanos estão cada vez mais ameaçados – pensei na bióloga marinha Sylvia Earle. Quando alguém perguntou ondeela mergulharia se pudesse escolher o lugar, respondeu: “Em qualquer lugar, 50 anos atrás”.

Esta perda aconteceu durante a minha vida. O mundo selvagem que meus livros favoritos me levaram a amar foi devastado. Tomar consciência desta perda me provocou um imenso pesar e agora uma persistente corrente profunda de “solastalgia” – a tristeza causada pela mudança ambiental, um sentimento de saudade do lugar em que ainda vivemos.

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E assim, comecei a imaginar se a leitura destes livros para minha filha não seria uma mentira. Seria justo contar a ela histórias de ecossistemas saudáveis e de estações estáveis aos quais nos acostumamos?

Nunca tive pressa de me tornar pai. Entre a faculdade, meus primeiros empregos de professor e uma série de relacionamentos, gostei de ser solteiro, gostei de ficar perto dos meus pais, com um cão que muito amei e que me acompanhava praticamente em toda parte. Também estudava literatura ambiental – histórias de encantos e aventuras, mas também de perdas e de perdas futuras. Histórias sobre questões (poluição tóxica, derretimento do permafrost, acidificação dos oceanos) que, se refletindo honestamente, fariam qualquer um pensar duas vezes antes de pôr uma criança no mundo.

No entanto, imaginei que um dia eu me tornaria um pai, embora não previsse que demoraria até eu chegar perto dos 50 anos. Conheci uma mulher inteligente que me contou que, o fato de terem lido muito para ela quando criança, fez com que se apaixonasse pelos livros e por uma carreira universitária. Em dois anos, casamos, ficamos grávidos e então organizamos as prateleiras no quarto da criança.

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Eu havia lido um livro sobre o motivo pelo qual eu não via mais muitas das estrelas que os meus ancestrais viam porque há muita luz artificial no céu, um projeto inspirado pelas lembranças de quando ficava olhando as estrelas cadentes com meu pai quando eu tinha 5 anos.

“Como será”, perguntou minha esposa, “quando você levar a nossa filha para ver o céu noturno pela primeira vez?”

Na realidade, ela me perguntava como seria compartilhar a lua e as estrelas com minha filha pelo resto da minha vida.

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Quando ficava acordado à noite, eu imaginava o que mais iria compartilhar. O cão que eu adorava morrera alguns anos antes, e a vida que eu havia dado a ela era a melhor coisa que ainda havia feito com a minha. Mas ser o pai de uma criatura, apresentar a uma criança a chuva no deserto e as folhas do outono, Mozart e Led Zeppein, as ‘enchiladas’ de pimentão verde e ao verdadeiro xarope de bordo – com um sem fim de maravilhas entre uma e outra coisa – parecia emocionante.

Mas eu ficava acordado também por outras coisas.

Eu tinha um amigo cujo filho de cinco anos adorava as histórias que ele lia todas as noites para ela com elefantes, leões, pinguins e ursos. As mensagens contidas nestes livros eram as mesmas mensagens transmitidas pelas roupas e pelos brinquedos que o cercavam desde que nascera: os animais são sábios e carinhosos, preenchem o nosso mundo, são os nossos amigos. Por isso, sua mãe ficou pasma quando ele disse: “Chega de histórias de animais”.

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“Por que?”, ela perguntou.

“Porque fico triste em pensar que eles estão desaparecendo”.

Eu escolhera tornar-me um pai bem a par das terríveis previsões, da destruição que me deixa mudo. Agora, com uma criança de verdade a caminho, voltei a imaginar que histórias contaria para ela de um mundo diminuído.

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Quando vi minha filha pela primeira vez no ultrassom, no ventre da mãe, ela tinha oito semanas e me fez lembrar de um filhote de urso do tamanho de um amendoim. A sua cabeça era a metade dela, e ela tinha as mãos ao lado de sua cabeça, como se estivesse ouvindo atentamente sinais fracos vindos pelo seu fone de ouvido de alguma terra distante, ouvindo o que fora mesclado com o que poderia ser.

Ela nasceu meses mais tarde, à meia-noite, com cores vívidas e brilhantes: o cordão da cor do leite, o sangue marrom brilhante, a púrpura mais profunda da placenta. Quando a segurei nos braços pela primeira vez, era pequenina e tranquila, olhando para mim com um olhar que dizia: “E aí?”

Mas será que você irá sentir as emoções instantâneas de que falam? Essas vieram mais lentamente ao longo de meses, e com uma surpresa.

Começou com histórias de crianças perdidas ou doentes. Antes, é claro, eu sentia simpatia por elas, mas agora cada uma delas parecia em parte minha. Até as crianças de faz de conta – quando uma história da televisão incluía o brutal sequestro de uma adolescente, eu desligava e subia as escadas. Tirava minha filha do berço e a segurava com força.

Anos atrás, um amigo me contou que quando ouviu a notícia do ataque a tiros na escola Sandy Hook, percorreu a toda velocidade a cidade inteira para abraçar seu filho de 6 anos. Lembro de ter acenado com a cabeça aparentando compreender; mas agora eu sentia de fato a urgência. A inocência e a abertura da minha filha para o mundo haviam sido entregues aos meus cuidados. Amar alguma coisa a este ponto é assustador, mas também é maravilhoso um sentimento pelo qual sou grato por não ter passado pela vida desconhecendo.

E sabia que amaria a minha filha. Mas não poderia saber como seria este amor. E o meu amor pelo mundo natural, meu pesar por seu destino? Ter um filho me fez sentir estas emoções ainda mais profundamente.

Cerca de seis meses depois do nascimento de minha filha, vasculhando em uma livraria local, descobri um livro ilustrado, publicado recentemente: Life, de Cynthia Rylant. Depois de folheá-lo, chamei minha esposa. As ilustrações divertidas de Brendam Wenzel pintavam um mundo ainda feito de coisas selvagens e acompanhavam o texto simples de Rylant que dizia que “a vida começa pequena ... (e) nem sempre é fácil ... (mas) em cada canto do mundo, há alguma coisa para amar. E alguma coisa para proteger”.

“Você vai comprar este livro, não é?”, ela perguntou.

Sim. No livro de Rylant, eu havia encontrado a resposta contemporânea aos clássicos que amara. Este livro parecia dizer: Apesar de toda a perda, resta muito ainda. Os meus sentimentos em relação ao mundo se mesclaram com os de minha filha. Amar e proteger um era amar e proteger o outro.

A proteção paterna de outras épocas já não parece importante. Uma espingarda na varanda? Não. Protegê-la agora significa estimulá-la a amar com tudo o que ela tem – e deixar que ela aprenda que, quanto mais intensamente você ama alguma coisa, mais ela pode ferir. De que maneira ela poderá ganhar força e determinação se não souber como afastar-se do medo e do pesar e buscar a coragem e a alegria?

Com mais de dois anos, minha filha felizmente ignora a covid-19, não sabe nada da mudança climática, não tem noção do que foi perdido e ainda poderá se perder. Ao contrário, ela se espanta todos os dias, diante da janela exclamando: “caminhão grande!” “carteiro!”. Lá fora é “besouro!” e “lua!”

 No outro dia, de manhã, ela andou pela primeira vez sozinha por um caminho no bosque. Não é possível imaginar o que isto deve ser para uma criancinha. Talvez seja como entrar no livro com as ilustrações publicado tempos antes – ou entrar em uma nova história de um mundo que nós poderíamos criar. Ela se movia cautelosamente, mas com firmeza, como se um animal amigo de cores vivas pudesse estar virando logo ali. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Certa vez, no quarto que seria do meu primeiro filho, eu ficava imaginando o que falaria a ele do nosso mundo que está desaparecendo. Graças à generosidade de familiares e amigos, uma modesta biblioteca de livros infantis encheu as nossas prateleiras, incluindo quatro exemplares de The Very Hungry Caterpillar (Uma lagarta muito comilona) e três de Goodnight Moon (Boa Noite, Lua). Como tantos novos pais, não via a hora de ler para a nossa filha.

Mas naquele dia, há cerca de três anos, peguei os livros que tinham sido os meus favoritos na minha infância, dezenas de anos antes, e me perguntei se iria compartilhá-los com ela. Cada um deles agora se tornara um clássico: Onde Vivem os Monstros, Swimmy, A História de Babar, A Snowy Day, Make Way for Ducklings. Mas todos estes livros, lançados no começo e em meados do século 20, são de um tempo em que o mundo era um lugar diferente.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Diferente, principalmente, era o mundo selvagem, oceanos, invernos e até mesmo pássaros comuns. Desde que o mais antigo desses livros, A História de Babar, foi publicado em 1931, a população de elefantes da África caiu de 10 milhões para cerca de 400 mil. Desde que Onde Vivem os Monstros foi publicado em 1963, o mundo perdeu, ao que se calcula, dois terços de sua vida selvagem. Teremos menos dias com neve daqui em diante e menos patinhos para abrir caminho? Nos últimos 50 anos, os céus da América do Norte perderam cerca de três bilhões de aves.

Enquanto folheava Swimmy, do autor Leo Leoni, em que um peixinho preto viaja no fundo por um oceano colorido de vida – os oceanos estão cada vez mais ameaçados – pensei na bióloga marinha Sylvia Earle. Quando alguém perguntou ondeela mergulharia se pudesse escolher o lugar, respondeu: “Em qualquer lugar, 50 anos atrás”.

Esta perda aconteceu durante a minha vida. O mundo selvagem que meus livros favoritos me levaram a amar foi devastado. Tomar consciência desta perda me provocou um imenso pesar e agora uma persistente corrente profunda de “solastalgia” – a tristeza causada pela mudança ambiental, um sentimento de saudade do lugar em que ainda vivemos.

E assim, comecei a imaginar se a leitura destes livros para minha filha não seria uma mentira. Seria justo contar a ela histórias de ecossistemas saudáveis e de estações estáveis aos quais nos acostumamos?

Nunca tive pressa de me tornar pai. Entre a faculdade, meus primeiros empregos de professor e uma série de relacionamentos, gostei de ser solteiro, gostei de ficar perto dos meus pais, com um cão que muito amei e que me acompanhava praticamente em toda parte. Também estudava literatura ambiental – histórias de encantos e aventuras, mas também de perdas e de perdas futuras. Histórias sobre questões (poluição tóxica, derretimento do permafrost, acidificação dos oceanos) que, se refletindo honestamente, fariam qualquer um pensar duas vezes antes de pôr uma criança no mundo.

No entanto, imaginei que um dia eu me tornaria um pai, embora não previsse que demoraria até eu chegar perto dos 50 anos. Conheci uma mulher inteligente que me contou que, o fato de terem lido muito para ela quando criança, fez com que se apaixonasse pelos livros e por uma carreira universitária. Em dois anos, casamos, ficamos grávidos e então organizamos as prateleiras no quarto da criança.

Eu havia lido um livro sobre o motivo pelo qual eu não via mais muitas das estrelas que os meus ancestrais viam porque há muita luz artificial no céu, um projeto inspirado pelas lembranças de quando ficava olhando as estrelas cadentes com meu pai quando eu tinha 5 anos.

“Como será”, perguntou minha esposa, “quando você levar a nossa filha para ver o céu noturno pela primeira vez?”

Na realidade, ela me perguntava como seria compartilhar a lua e as estrelas com minha filha pelo resto da minha vida.

Quando ficava acordado à noite, eu imaginava o que mais iria compartilhar. O cão que eu adorava morrera alguns anos antes, e a vida que eu havia dado a ela era a melhor coisa que ainda havia feito com a minha. Mas ser o pai de uma criatura, apresentar a uma criança a chuva no deserto e as folhas do outono, Mozart e Led Zeppein, as ‘enchiladas’ de pimentão verde e ao verdadeiro xarope de bordo – com um sem fim de maravilhas entre uma e outra coisa – parecia emocionante.

Mas eu ficava acordado também por outras coisas.

Eu tinha um amigo cujo filho de cinco anos adorava as histórias que ele lia todas as noites para ela com elefantes, leões, pinguins e ursos. As mensagens contidas nestes livros eram as mesmas mensagens transmitidas pelas roupas e pelos brinquedos que o cercavam desde que nascera: os animais são sábios e carinhosos, preenchem o nosso mundo, são os nossos amigos. Por isso, sua mãe ficou pasma quando ele disse: “Chega de histórias de animais”.

“Por que?”, ela perguntou.

“Porque fico triste em pensar que eles estão desaparecendo”.

Eu escolhera tornar-me um pai bem a par das terríveis previsões, da destruição que me deixa mudo. Agora, com uma criança de verdade a caminho, voltei a imaginar que histórias contaria para ela de um mundo diminuído.

Quando vi minha filha pela primeira vez no ultrassom, no ventre da mãe, ela tinha oito semanas e me fez lembrar de um filhote de urso do tamanho de um amendoim. A sua cabeça era a metade dela, e ela tinha as mãos ao lado de sua cabeça, como se estivesse ouvindo atentamente sinais fracos vindos pelo seu fone de ouvido de alguma terra distante, ouvindo o que fora mesclado com o que poderia ser.

Ela nasceu meses mais tarde, à meia-noite, com cores vívidas e brilhantes: o cordão da cor do leite, o sangue marrom brilhante, a púrpura mais profunda da placenta. Quando a segurei nos braços pela primeira vez, era pequenina e tranquila, olhando para mim com um olhar que dizia: “E aí?”

Mas será que você irá sentir as emoções instantâneas de que falam? Essas vieram mais lentamente ao longo de meses, e com uma surpresa.

Começou com histórias de crianças perdidas ou doentes. Antes, é claro, eu sentia simpatia por elas, mas agora cada uma delas parecia em parte minha. Até as crianças de faz de conta – quando uma história da televisão incluía o brutal sequestro de uma adolescente, eu desligava e subia as escadas. Tirava minha filha do berço e a segurava com força.

Anos atrás, um amigo me contou que quando ouviu a notícia do ataque a tiros na escola Sandy Hook, percorreu a toda velocidade a cidade inteira para abraçar seu filho de 6 anos. Lembro de ter acenado com a cabeça aparentando compreender; mas agora eu sentia de fato a urgência. A inocência e a abertura da minha filha para o mundo haviam sido entregues aos meus cuidados. Amar alguma coisa a este ponto é assustador, mas também é maravilhoso um sentimento pelo qual sou grato por não ter passado pela vida desconhecendo.

E sabia que amaria a minha filha. Mas não poderia saber como seria este amor. E o meu amor pelo mundo natural, meu pesar por seu destino? Ter um filho me fez sentir estas emoções ainda mais profundamente.

Cerca de seis meses depois do nascimento de minha filha, vasculhando em uma livraria local, descobri um livro ilustrado, publicado recentemente: Life, de Cynthia Rylant. Depois de folheá-lo, chamei minha esposa. As ilustrações divertidas de Brendam Wenzel pintavam um mundo ainda feito de coisas selvagens e acompanhavam o texto simples de Rylant que dizia que “a vida começa pequena ... (e) nem sempre é fácil ... (mas) em cada canto do mundo, há alguma coisa para amar. E alguma coisa para proteger”.

“Você vai comprar este livro, não é?”, ela perguntou.

Sim. No livro de Rylant, eu havia encontrado a resposta contemporânea aos clássicos que amara. Este livro parecia dizer: Apesar de toda a perda, resta muito ainda. Os meus sentimentos em relação ao mundo se mesclaram com os de minha filha. Amar e proteger um era amar e proteger o outro.

A proteção paterna de outras épocas já não parece importante. Uma espingarda na varanda? Não. Protegê-la agora significa estimulá-la a amar com tudo o que ela tem – e deixar que ela aprenda que, quanto mais intensamente você ama alguma coisa, mais ela pode ferir. De que maneira ela poderá ganhar força e determinação se não souber como afastar-se do medo e do pesar e buscar a coragem e a alegria?

Com mais de dois anos, minha filha felizmente ignora a covid-19, não sabe nada da mudança climática, não tem noção do que foi perdido e ainda poderá se perder. Ao contrário, ela se espanta todos os dias, diante da janela exclamando: “caminhão grande!” “carteiro!”. Lá fora é “besouro!” e “lua!”

 No outro dia, de manhã, ela andou pela primeira vez sozinha por um caminho no bosque. Não é possível imaginar o que isto deve ser para uma criancinha. Talvez seja como entrar no livro com as ilustrações publicado tempos antes – ou entrar em uma nova história de um mundo que nós poderíamos criar. Ela se movia cautelosamente, mas com firmeza, como se um animal amigo de cores vivas pudesse estar virando logo ali. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Certa vez, no quarto que seria do meu primeiro filho, eu ficava imaginando o que falaria a ele do nosso mundo que está desaparecendo. Graças à generosidade de familiares e amigos, uma modesta biblioteca de livros infantis encheu as nossas prateleiras, incluindo quatro exemplares de The Very Hungry Caterpillar (Uma lagarta muito comilona) e três de Goodnight Moon (Boa Noite, Lua). Como tantos novos pais, não via a hora de ler para a nossa filha.

Mas naquele dia, há cerca de três anos, peguei os livros que tinham sido os meus favoritos na minha infância, dezenas de anos antes, e me perguntei se iria compartilhá-los com ela. Cada um deles agora se tornara um clássico: Onde Vivem os Monstros, Swimmy, A História de Babar, A Snowy Day, Make Way for Ducklings. Mas todos estes livros, lançados no começo e em meados do século 20, são de um tempo em que o mundo era um lugar diferente.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Diferente, principalmente, era o mundo selvagem, oceanos, invernos e até mesmo pássaros comuns. Desde que o mais antigo desses livros, A História de Babar, foi publicado em 1931, a população de elefantes da África caiu de 10 milhões para cerca de 400 mil. Desde que Onde Vivem os Monstros foi publicado em 1963, o mundo perdeu, ao que se calcula, dois terços de sua vida selvagem. Teremos menos dias com neve daqui em diante e menos patinhos para abrir caminho? Nos últimos 50 anos, os céus da América do Norte perderam cerca de três bilhões de aves.

Enquanto folheava Swimmy, do autor Leo Leoni, em que um peixinho preto viaja no fundo por um oceano colorido de vida – os oceanos estão cada vez mais ameaçados – pensei na bióloga marinha Sylvia Earle. Quando alguém perguntou ondeela mergulharia se pudesse escolher o lugar, respondeu: “Em qualquer lugar, 50 anos atrás”.

Esta perda aconteceu durante a minha vida. O mundo selvagem que meus livros favoritos me levaram a amar foi devastado. Tomar consciência desta perda me provocou um imenso pesar e agora uma persistente corrente profunda de “solastalgia” – a tristeza causada pela mudança ambiental, um sentimento de saudade do lugar em que ainda vivemos.

E assim, comecei a imaginar se a leitura destes livros para minha filha não seria uma mentira. Seria justo contar a ela histórias de ecossistemas saudáveis e de estações estáveis aos quais nos acostumamos?

Nunca tive pressa de me tornar pai. Entre a faculdade, meus primeiros empregos de professor e uma série de relacionamentos, gostei de ser solteiro, gostei de ficar perto dos meus pais, com um cão que muito amei e que me acompanhava praticamente em toda parte. Também estudava literatura ambiental – histórias de encantos e aventuras, mas também de perdas e de perdas futuras. Histórias sobre questões (poluição tóxica, derretimento do permafrost, acidificação dos oceanos) que, se refletindo honestamente, fariam qualquer um pensar duas vezes antes de pôr uma criança no mundo.

No entanto, imaginei que um dia eu me tornaria um pai, embora não previsse que demoraria até eu chegar perto dos 50 anos. Conheci uma mulher inteligente que me contou que, o fato de terem lido muito para ela quando criança, fez com que se apaixonasse pelos livros e por uma carreira universitária. Em dois anos, casamos, ficamos grávidos e então organizamos as prateleiras no quarto da criança.

Eu havia lido um livro sobre o motivo pelo qual eu não via mais muitas das estrelas que os meus ancestrais viam porque há muita luz artificial no céu, um projeto inspirado pelas lembranças de quando ficava olhando as estrelas cadentes com meu pai quando eu tinha 5 anos.

“Como será”, perguntou minha esposa, “quando você levar a nossa filha para ver o céu noturno pela primeira vez?”

Na realidade, ela me perguntava como seria compartilhar a lua e as estrelas com minha filha pelo resto da minha vida.

Quando ficava acordado à noite, eu imaginava o que mais iria compartilhar. O cão que eu adorava morrera alguns anos antes, e a vida que eu havia dado a ela era a melhor coisa que ainda havia feito com a minha. Mas ser o pai de uma criatura, apresentar a uma criança a chuva no deserto e as folhas do outono, Mozart e Led Zeppein, as ‘enchiladas’ de pimentão verde e ao verdadeiro xarope de bordo – com um sem fim de maravilhas entre uma e outra coisa – parecia emocionante.

Mas eu ficava acordado também por outras coisas.

Eu tinha um amigo cujo filho de cinco anos adorava as histórias que ele lia todas as noites para ela com elefantes, leões, pinguins e ursos. As mensagens contidas nestes livros eram as mesmas mensagens transmitidas pelas roupas e pelos brinquedos que o cercavam desde que nascera: os animais são sábios e carinhosos, preenchem o nosso mundo, são os nossos amigos. Por isso, sua mãe ficou pasma quando ele disse: “Chega de histórias de animais”.

“Por que?”, ela perguntou.

“Porque fico triste em pensar que eles estão desaparecendo”.

Eu escolhera tornar-me um pai bem a par das terríveis previsões, da destruição que me deixa mudo. Agora, com uma criança de verdade a caminho, voltei a imaginar que histórias contaria para ela de um mundo diminuído.

Quando vi minha filha pela primeira vez no ultrassom, no ventre da mãe, ela tinha oito semanas e me fez lembrar de um filhote de urso do tamanho de um amendoim. A sua cabeça era a metade dela, e ela tinha as mãos ao lado de sua cabeça, como se estivesse ouvindo atentamente sinais fracos vindos pelo seu fone de ouvido de alguma terra distante, ouvindo o que fora mesclado com o que poderia ser.

Ela nasceu meses mais tarde, à meia-noite, com cores vívidas e brilhantes: o cordão da cor do leite, o sangue marrom brilhante, a púrpura mais profunda da placenta. Quando a segurei nos braços pela primeira vez, era pequenina e tranquila, olhando para mim com um olhar que dizia: “E aí?”

Mas será que você irá sentir as emoções instantâneas de que falam? Essas vieram mais lentamente ao longo de meses, e com uma surpresa.

Começou com histórias de crianças perdidas ou doentes. Antes, é claro, eu sentia simpatia por elas, mas agora cada uma delas parecia em parte minha. Até as crianças de faz de conta – quando uma história da televisão incluía o brutal sequestro de uma adolescente, eu desligava e subia as escadas. Tirava minha filha do berço e a segurava com força.

Anos atrás, um amigo me contou que quando ouviu a notícia do ataque a tiros na escola Sandy Hook, percorreu a toda velocidade a cidade inteira para abraçar seu filho de 6 anos. Lembro de ter acenado com a cabeça aparentando compreender; mas agora eu sentia de fato a urgência. A inocência e a abertura da minha filha para o mundo haviam sido entregues aos meus cuidados. Amar alguma coisa a este ponto é assustador, mas também é maravilhoso um sentimento pelo qual sou grato por não ter passado pela vida desconhecendo.

E sabia que amaria a minha filha. Mas não poderia saber como seria este amor. E o meu amor pelo mundo natural, meu pesar por seu destino? Ter um filho me fez sentir estas emoções ainda mais profundamente.

Cerca de seis meses depois do nascimento de minha filha, vasculhando em uma livraria local, descobri um livro ilustrado, publicado recentemente: Life, de Cynthia Rylant. Depois de folheá-lo, chamei minha esposa. As ilustrações divertidas de Brendam Wenzel pintavam um mundo ainda feito de coisas selvagens e acompanhavam o texto simples de Rylant que dizia que “a vida começa pequena ... (e) nem sempre é fácil ... (mas) em cada canto do mundo, há alguma coisa para amar. E alguma coisa para proteger”.

“Você vai comprar este livro, não é?”, ela perguntou.

Sim. No livro de Rylant, eu havia encontrado a resposta contemporânea aos clássicos que amara. Este livro parecia dizer: Apesar de toda a perda, resta muito ainda. Os meus sentimentos em relação ao mundo se mesclaram com os de minha filha. Amar e proteger um era amar e proteger o outro.

A proteção paterna de outras épocas já não parece importante. Uma espingarda na varanda? Não. Protegê-la agora significa estimulá-la a amar com tudo o que ela tem – e deixar que ela aprenda que, quanto mais intensamente você ama alguma coisa, mais ela pode ferir. De que maneira ela poderá ganhar força e determinação se não souber como afastar-se do medo e do pesar e buscar a coragem e a alegria?

Com mais de dois anos, minha filha felizmente ignora a covid-19, não sabe nada da mudança climática, não tem noção do que foi perdido e ainda poderá se perder. Ao contrário, ela se espanta todos os dias, diante da janela exclamando: “caminhão grande!” “carteiro!”. Lá fora é “besouro!” e “lua!”

 No outro dia, de manhã, ela andou pela primeira vez sozinha por um caminho no bosque. Não é possível imaginar o que isto deve ser para uma criancinha. Talvez seja como entrar no livro com as ilustrações publicado tempos antes – ou entrar em uma nova história de um mundo que nós poderíamos criar. Ela se movia cautelosamente, mas com firmeza, como se um animal amigo de cores vivas pudesse estar virando logo ali. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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