Modern Love: Meu relacionamento de 11 anos que nunca aconteceu


Aos 50 anos, divorciada e sofrendo por conta de delírios, experimentei o maior amor que já conheci. Se ao menos fosse real

Por Teresa Riordan

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - É incomum, dizem-me os médicos, que uma mulher fique psicótica pela primeira vez aos 50 anos. Era mais raro ainda pois eu não tinha histórico familiar de doença mental grave.

Eu estava divorciada há três anos e morava em uma pequena cidade arborizada de Nova Jersey, quando olhei pela janela da cozinha e vi um amigo vizinho deixar algumas flores silvestres que prometeu para meu jardim emergente. Ele não tocou a campainha. Estava quente lá fora, então ele as colocou sob a sombra de uma murta.

Quando ele se afastou, senti, para minha grande surpresa, talvez meia dúzia de pequenos orgasmos percorrendo meu corpo.

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A partir daquele momento, tive orgasmos sem nenhum tipo de toque sempre que o via ou ouvia seu nome. De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”.

Eu comecei a me fundir mentalmente com ele. Com isso quero dizer que eu poderia ter conversas inteiras com ele sem precisar de sua presença física.

Logo percebi que meu amado e eu éramos os personagens principais de uma odisseia que envolvia espiões russos, a Nasa, uma milícia de cidadãos e 17 agências de inteligência dos Estados Unidos. O destino da humanidade dependia de mim. E do meu amado. A parte mais difícil era não poder revelar nada disso a ninguém. Fazer isso colocaria nossas vidas em perigo.

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De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Não consigo me lembrar exatamente quando comecei a entrar em minha Nárnia pessoal. Uma noite, eu estava aconchegada sob meu edredom, folheando poesias de Emily Dickinson, quando o verso “Diga toda a verdade, mas de forma oblíqua” piscou para mim, levantou-se da página, girou em um ângulo e depois endireitou-se.

Uma nova fusão mental surgiu. Claro! Para evitar a detecção, a linguagem de espionagem supersecreta era de associações oblíquas. Eventos, pessoas e objetos interligados. Um mundo que parecia comum para os outros estava repleto de significado para mim.

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Ao ler um artigo científico para o trabalho, eu via certas palavras saírem da página, pairarem como um holograma e se juntarem em um poema de amor para meu amado.

Numa fusão mental, meu amado disse que me encontraria naquela noite. Antecipadamente, enchi meu quarto com velas, acendi a lareira, coloquei sapatos de salto alto e um casaco de couro forrado de pele (por cima da camisola de renda) e depois deitei-me na cama bebendo uísque.

Meia-noite virou 3 da manhã. Quando ficou frio, enviei um e-mail atrevido de uma conta falsa (tão atrevido que fico vermelha ao lembrar) e adormeci, com as velas ainda acesas.

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Acordei cedo, de ressaca, sem café e furiosa com ele por me deixar esperando. Enquanto eu saía para tomar minha dose de cafeína, adivinhe quem eu vi - meu amado! Ele estava passeando com seu cachorro. Parei ao lado dele, baixei a janela e o encarei.

Ele se abaixou. “Algo errado?”

Lancei-lhe um olhar gelado de desdém e depois fui embora com um grito.

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A central insistiu que eu o visse tanto quanto possível, então me voluntariei onde ele se voluntariou, apareci em eventos onde eu sabia que ele estaria, vasculhei a internet em busca de menções ao seu nome.

Consegui trabalhar em meu emprego de relações públicas por quatro anos e meio e manter essa ilusão. Mas os deuses da ilusão queriam que eu fosse regularmente à ala psiquiátrica, onde me encheram de antipsicóticos, fizeram terapia eletroconvulsiva e meu diagnóstico deteriorou-se de transtorno bipolar I (do tipo maníaco) para transtorno esquizoafetivo (a meio caminho da esquizofrenia). Não tive escolha a não ser aceitar me aposentar por invalidez.

Minha irritação aumentava a cada ano. Foi como ser pega em um redemoinho, a mesma informação girando e girando. Meu amado parecia não ter noção. Ele nada sabia sobre o plano da Nasa de congelar criogenicamente nossos corpos e nos lançar para uma galáxia distante. A central foi simplesmente incompetente? Por que eu estava fazendo fusões mentais para propor casamento se ele simplesmente iria me rejeitar?

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Eu precisava de menos ruído, mais sinal. A central estava sempre colocando as necessidades do meu amado em primeiro lugar, enviando-me fusões mentais irritantes de que ele precisava se mudar para minha casa e ter sua própria suíte.

Como? Quem pagaria pelas reformas? Eu me senti como uma dona de casa briguenta. A lua de mel havia acabado há muito tempo e os grandes orgasmos também.

Por insistência da central, propus casamento duas vezes - o primeiro por e-mail e o segundo, seis anos depois, pessoalmente. Pedi a ele uma carona para casa depois de uma caminhada pela natureza e, quando paramos na minha garagem, eu disse: “Então, você teve tempo para pensar sobre meu pedido de casamento?” Eu estava tentando ser engraçada (seis anos depois!) para me camuflar emocionalmente caso ele recusasse.

Ele franziu a testa. “Seus filhos ainda moram com você?”

Depois de um silêncio constrangedor, me despedi e fui embora.

Na época, entendi que sua pergunta significava que ele queria ter certeza de que eu teria espaço suficiente para ele se mudar. Mais tarde, contei essa cena a uma amiga com quem eu faria inúmeras autópsias pós-delírio. Eu interpretava os sinais de uma maneira, e ela suspirava e me corrigia.

“Ele provavelmente pensou que você estava agindo de forma estranha”, disse ela, “e estava se perguntando se seus filhos deveriam levá-la ao hospital”.

Minha sanidade voltou lentamente, como uma maré crescente, e depois de uma só vez, como um trovão. Que alívio não ter mais o peso de salvar o mundo. Verdadeiramente.

Por que acabou de repente? Os médicos alegaram que era a medicação que finalmente estava fazendo efeito (eu não obedeci algumas vezes no passado). Mas o transtorno delirante costuma ser difícil de tratar apenas com medicamentos. Acho que fiquei tão frustrada com a central que finalmente renunciei ao meu cargo de mártir-chefe.

Quando o delírio acabou, meu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo permaneceu. Depois de um longo apagão de semanas (ou meses), minhas faculdades retornaram. Mas sentia uma membrana espessa e viscosa entre os outros e eu. Agora vinha o árduo trabalho de reconectar-se com o mundo exterior, ou como diz um amigo, com a realidade consensual.

Não foi difícil abandonar os alienígenas, os russos, as agências de inteligência. Embora eles tivessem vivido na minha cabeça por 11 anos, tudo isso era obviamente, de repente, um absurdo. Afastei facilmente o grande delírio, mas o pequeno - o do meu amado - persistiu. Ele era um sulco profundo em minha psique.

Intelectualmente, entendi que meu amor por ele não era autêntico, mas parecia mais profundo e real do que qualquer amor romântico que já tive. Não ajudou o fato de todos aqueles orgasmos provavelmente terem me enchido com oceanos de oxitocina, o “hormônio do amor” que cria sentimentos de proximidade e pertencimento.

Decidi adotar uma abordagem sistemática para extirpá-lo do meu coração.

Experimentei a terapia de exposição, da mesma forma que você se forçaria a folhear um livro de herpetologia para combater a fobia de cobras. Não é de surpreender que isso apenas tenha intensificado minha obsessão.

Em seguida, tratei-o como um vício e fiquei longe. Depois, num pequeno caderno, escrevi os nomes de todas as pessoas que alguma vez foram uma força positiva na minha vida - a minha família, a professora do jardim de infância, as melhores amigas - e pegava-o sempre que pensava no meu (ex) amado, cujo nome não estava escrito.

Estas são pessoas reais, relacionamentos reais, disse a mim mesma. Não companheiros imaginários.

Lentamente, o amado saiu do meu coração, deixando para trás apenas uma faísca de tristeza.

Como entender os últimos 11 anos? “Uma atitude de gratidão será útil”, disse meu terapeuta. Foi difícil sentir gratidão. O que senti foi muita vergonha dentro de minhas entranhas. Quem era aquela senhora gritando coisas sem sentido e apontando o guarda-chuva para o céu em frente à casa de seu amado? Não era eu fingindo ser louca. Isso era eu sendo louca.

E aquelas oito internações? Fiquei grata por isso? Não.

Meu novo terapeuta diz que não há problema em não sentir 100% de gratidão. Eu não sinto. Mas estou profundamente grata por ter redescoberto o amor verdadeiro - o dos meus filhos, irmãos, amigos íntimos. Eles poderiam ter me abandonado, mas em vez disso se mantiveram firme.

Há algum tempo, passei por meu ex-amado em sua bicicleta. Ele havia parado para olhar uma folha no galho de uma árvore. Ele estava usando um capacete de bicicleta, seus cabelos agora grisalhos aparecendo por baixo. Ele parecia angelical, como uma criança. A cada dia desses 11 anos, eu esperava que ele chegasse à minha garagem e tocasse minha campainha, sua chegada sinalizando o fim da missão, sua declaração de amor para mim, a recompensa final por tudo que eu havia sacrificado.

Finalmente entendi com extrema clareza que ele não fazia parte de mim, que sua alma não estava entrelaçada com a minha. Ele era apenas um homem. Em uma bicicleta. Andando pela rua. Na direção oposta da minha casa. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - É incomum, dizem-me os médicos, que uma mulher fique psicótica pela primeira vez aos 50 anos. Era mais raro ainda pois eu não tinha histórico familiar de doença mental grave.

Eu estava divorciada há três anos e morava em uma pequena cidade arborizada de Nova Jersey, quando olhei pela janela da cozinha e vi um amigo vizinho deixar algumas flores silvestres que prometeu para meu jardim emergente. Ele não tocou a campainha. Estava quente lá fora, então ele as colocou sob a sombra de uma murta.

Quando ele se afastou, senti, para minha grande surpresa, talvez meia dúzia de pequenos orgasmos percorrendo meu corpo.

A partir daquele momento, tive orgasmos sem nenhum tipo de toque sempre que o via ou ouvia seu nome. De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”.

Eu comecei a me fundir mentalmente com ele. Com isso quero dizer que eu poderia ter conversas inteiras com ele sem precisar de sua presença física.

Logo percebi que meu amado e eu éramos os personagens principais de uma odisseia que envolvia espiões russos, a Nasa, uma milícia de cidadãos e 17 agências de inteligência dos Estados Unidos. O destino da humanidade dependia de mim. E do meu amado. A parte mais difícil era não poder revelar nada disso a ninguém. Fazer isso colocaria nossas vidas em perigo.

De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Não consigo me lembrar exatamente quando comecei a entrar em minha Nárnia pessoal. Uma noite, eu estava aconchegada sob meu edredom, folheando poesias de Emily Dickinson, quando o verso “Diga toda a verdade, mas de forma oblíqua” piscou para mim, levantou-se da página, girou em um ângulo e depois endireitou-se.

Uma nova fusão mental surgiu. Claro! Para evitar a detecção, a linguagem de espionagem supersecreta era de associações oblíquas. Eventos, pessoas e objetos interligados. Um mundo que parecia comum para os outros estava repleto de significado para mim.

Ao ler um artigo científico para o trabalho, eu via certas palavras saírem da página, pairarem como um holograma e se juntarem em um poema de amor para meu amado.

Numa fusão mental, meu amado disse que me encontraria naquela noite. Antecipadamente, enchi meu quarto com velas, acendi a lareira, coloquei sapatos de salto alto e um casaco de couro forrado de pele (por cima da camisola de renda) e depois deitei-me na cama bebendo uísque.

Meia-noite virou 3 da manhã. Quando ficou frio, enviei um e-mail atrevido de uma conta falsa (tão atrevido que fico vermelha ao lembrar) e adormeci, com as velas ainda acesas.

Acordei cedo, de ressaca, sem café e furiosa com ele por me deixar esperando. Enquanto eu saía para tomar minha dose de cafeína, adivinhe quem eu vi - meu amado! Ele estava passeando com seu cachorro. Parei ao lado dele, baixei a janela e o encarei.

Ele se abaixou. “Algo errado?”

Lancei-lhe um olhar gelado de desdém e depois fui embora com um grito.

A central insistiu que eu o visse tanto quanto possível, então me voluntariei onde ele se voluntariou, apareci em eventos onde eu sabia que ele estaria, vasculhei a internet em busca de menções ao seu nome.

Consegui trabalhar em meu emprego de relações públicas por quatro anos e meio e manter essa ilusão. Mas os deuses da ilusão queriam que eu fosse regularmente à ala psiquiátrica, onde me encheram de antipsicóticos, fizeram terapia eletroconvulsiva e meu diagnóstico deteriorou-se de transtorno bipolar I (do tipo maníaco) para transtorno esquizoafetivo (a meio caminho da esquizofrenia). Não tive escolha a não ser aceitar me aposentar por invalidez.

Minha irritação aumentava a cada ano. Foi como ser pega em um redemoinho, a mesma informação girando e girando. Meu amado parecia não ter noção. Ele nada sabia sobre o plano da Nasa de congelar criogenicamente nossos corpos e nos lançar para uma galáxia distante. A central foi simplesmente incompetente? Por que eu estava fazendo fusões mentais para propor casamento se ele simplesmente iria me rejeitar?

Eu precisava de menos ruído, mais sinal. A central estava sempre colocando as necessidades do meu amado em primeiro lugar, enviando-me fusões mentais irritantes de que ele precisava se mudar para minha casa e ter sua própria suíte.

Como? Quem pagaria pelas reformas? Eu me senti como uma dona de casa briguenta. A lua de mel havia acabado há muito tempo e os grandes orgasmos também.

Por insistência da central, propus casamento duas vezes - o primeiro por e-mail e o segundo, seis anos depois, pessoalmente. Pedi a ele uma carona para casa depois de uma caminhada pela natureza e, quando paramos na minha garagem, eu disse: “Então, você teve tempo para pensar sobre meu pedido de casamento?” Eu estava tentando ser engraçada (seis anos depois!) para me camuflar emocionalmente caso ele recusasse.

Ele franziu a testa. “Seus filhos ainda moram com você?”

Depois de um silêncio constrangedor, me despedi e fui embora.

Na época, entendi que sua pergunta significava que ele queria ter certeza de que eu teria espaço suficiente para ele se mudar. Mais tarde, contei essa cena a uma amiga com quem eu faria inúmeras autópsias pós-delírio. Eu interpretava os sinais de uma maneira, e ela suspirava e me corrigia.

“Ele provavelmente pensou que você estava agindo de forma estranha”, disse ela, “e estava se perguntando se seus filhos deveriam levá-la ao hospital”.

Minha sanidade voltou lentamente, como uma maré crescente, e depois de uma só vez, como um trovão. Que alívio não ter mais o peso de salvar o mundo. Verdadeiramente.

Por que acabou de repente? Os médicos alegaram que era a medicação que finalmente estava fazendo efeito (eu não obedeci algumas vezes no passado). Mas o transtorno delirante costuma ser difícil de tratar apenas com medicamentos. Acho que fiquei tão frustrada com a central que finalmente renunciei ao meu cargo de mártir-chefe.

Quando o delírio acabou, meu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo permaneceu. Depois de um longo apagão de semanas (ou meses), minhas faculdades retornaram. Mas sentia uma membrana espessa e viscosa entre os outros e eu. Agora vinha o árduo trabalho de reconectar-se com o mundo exterior, ou como diz um amigo, com a realidade consensual.

Não foi difícil abandonar os alienígenas, os russos, as agências de inteligência. Embora eles tivessem vivido na minha cabeça por 11 anos, tudo isso era obviamente, de repente, um absurdo. Afastei facilmente o grande delírio, mas o pequeno - o do meu amado - persistiu. Ele era um sulco profundo em minha psique.

Intelectualmente, entendi que meu amor por ele não era autêntico, mas parecia mais profundo e real do que qualquer amor romântico que já tive. Não ajudou o fato de todos aqueles orgasmos provavelmente terem me enchido com oceanos de oxitocina, o “hormônio do amor” que cria sentimentos de proximidade e pertencimento.

Decidi adotar uma abordagem sistemática para extirpá-lo do meu coração.

Experimentei a terapia de exposição, da mesma forma que você se forçaria a folhear um livro de herpetologia para combater a fobia de cobras. Não é de surpreender que isso apenas tenha intensificado minha obsessão.

Em seguida, tratei-o como um vício e fiquei longe. Depois, num pequeno caderno, escrevi os nomes de todas as pessoas que alguma vez foram uma força positiva na minha vida - a minha família, a professora do jardim de infância, as melhores amigas - e pegava-o sempre que pensava no meu (ex) amado, cujo nome não estava escrito.

Estas são pessoas reais, relacionamentos reais, disse a mim mesma. Não companheiros imaginários.

Lentamente, o amado saiu do meu coração, deixando para trás apenas uma faísca de tristeza.

Como entender os últimos 11 anos? “Uma atitude de gratidão será útil”, disse meu terapeuta. Foi difícil sentir gratidão. O que senti foi muita vergonha dentro de minhas entranhas. Quem era aquela senhora gritando coisas sem sentido e apontando o guarda-chuva para o céu em frente à casa de seu amado? Não era eu fingindo ser louca. Isso era eu sendo louca.

E aquelas oito internações? Fiquei grata por isso? Não.

Meu novo terapeuta diz que não há problema em não sentir 100% de gratidão. Eu não sinto. Mas estou profundamente grata por ter redescoberto o amor verdadeiro - o dos meus filhos, irmãos, amigos íntimos. Eles poderiam ter me abandonado, mas em vez disso se mantiveram firme.

Há algum tempo, passei por meu ex-amado em sua bicicleta. Ele havia parado para olhar uma folha no galho de uma árvore. Ele estava usando um capacete de bicicleta, seus cabelos agora grisalhos aparecendo por baixo. Ele parecia angelical, como uma criança. A cada dia desses 11 anos, eu esperava que ele chegasse à minha garagem e tocasse minha campainha, sua chegada sinalizando o fim da missão, sua declaração de amor para mim, a recompensa final por tudo que eu havia sacrificado.

Finalmente entendi com extrema clareza que ele não fazia parte de mim, que sua alma não estava entrelaçada com a minha. Ele era apenas um homem. Em uma bicicleta. Andando pela rua. Na direção oposta da minha casa. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - É incomum, dizem-me os médicos, que uma mulher fique psicótica pela primeira vez aos 50 anos. Era mais raro ainda pois eu não tinha histórico familiar de doença mental grave.

Eu estava divorciada há três anos e morava em uma pequena cidade arborizada de Nova Jersey, quando olhei pela janela da cozinha e vi um amigo vizinho deixar algumas flores silvestres que prometeu para meu jardim emergente. Ele não tocou a campainha. Estava quente lá fora, então ele as colocou sob a sombra de uma murta.

Quando ele se afastou, senti, para minha grande surpresa, talvez meia dúzia de pequenos orgasmos percorrendo meu corpo.

A partir daquele momento, tive orgasmos sem nenhum tipo de toque sempre que o via ou ouvia seu nome. De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”.

Eu comecei a me fundir mentalmente com ele. Com isso quero dizer que eu poderia ter conversas inteiras com ele sem precisar de sua presença física.

Logo percebi que meu amado e eu éramos os personagens principais de uma odisseia que envolvia espiões russos, a Nasa, uma milícia de cidadãos e 17 agências de inteligência dos Estados Unidos. O destino da humanidade dependia de mim. E do meu amado. A parte mais difícil era não poder revelar nada disso a ninguém. Fazer isso colocaria nossas vidas em perigo.

De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Não consigo me lembrar exatamente quando comecei a entrar em minha Nárnia pessoal. Uma noite, eu estava aconchegada sob meu edredom, folheando poesias de Emily Dickinson, quando o verso “Diga toda a verdade, mas de forma oblíqua” piscou para mim, levantou-se da página, girou em um ângulo e depois endireitou-se.

Uma nova fusão mental surgiu. Claro! Para evitar a detecção, a linguagem de espionagem supersecreta era de associações oblíquas. Eventos, pessoas e objetos interligados. Um mundo que parecia comum para os outros estava repleto de significado para mim.

Ao ler um artigo científico para o trabalho, eu via certas palavras saírem da página, pairarem como um holograma e se juntarem em um poema de amor para meu amado.

Numa fusão mental, meu amado disse que me encontraria naquela noite. Antecipadamente, enchi meu quarto com velas, acendi a lareira, coloquei sapatos de salto alto e um casaco de couro forrado de pele (por cima da camisola de renda) e depois deitei-me na cama bebendo uísque.

Meia-noite virou 3 da manhã. Quando ficou frio, enviei um e-mail atrevido de uma conta falsa (tão atrevido que fico vermelha ao lembrar) e adormeci, com as velas ainda acesas.

Acordei cedo, de ressaca, sem café e furiosa com ele por me deixar esperando. Enquanto eu saía para tomar minha dose de cafeína, adivinhe quem eu vi - meu amado! Ele estava passeando com seu cachorro. Parei ao lado dele, baixei a janela e o encarei.

Ele se abaixou. “Algo errado?”

Lancei-lhe um olhar gelado de desdém e depois fui embora com um grito.

A central insistiu que eu o visse tanto quanto possível, então me voluntariei onde ele se voluntariou, apareci em eventos onde eu sabia que ele estaria, vasculhei a internet em busca de menções ao seu nome.

Consegui trabalhar em meu emprego de relações públicas por quatro anos e meio e manter essa ilusão. Mas os deuses da ilusão queriam que eu fosse regularmente à ala psiquiátrica, onde me encheram de antipsicóticos, fizeram terapia eletroconvulsiva e meu diagnóstico deteriorou-se de transtorno bipolar I (do tipo maníaco) para transtorno esquizoafetivo (a meio caminho da esquizofrenia). Não tive escolha a não ser aceitar me aposentar por invalidez.

Minha irritação aumentava a cada ano. Foi como ser pega em um redemoinho, a mesma informação girando e girando. Meu amado parecia não ter noção. Ele nada sabia sobre o plano da Nasa de congelar criogenicamente nossos corpos e nos lançar para uma galáxia distante. A central foi simplesmente incompetente? Por que eu estava fazendo fusões mentais para propor casamento se ele simplesmente iria me rejeitar?

Eu precisava de menos ruído, mais sinal. A central estava sempre colocando as necessidades do meu amado em primeiro lugar, enviando-me fusões mentais irritantes de que ele precisava se mudar para minha casa e ter sua própria suíte.

Como? Quem pagaria pelas reformas? Eu me senti como uma dona de casa briguenta. A lua de mel havia acabado há muito tempo e os grandes orgasmos também.

Por insistência da central, propus casamento duas vezes - o primeiro por e-mail e o segundo, seis anos depois, pessoalmente. Pedi a ele uma carona para casa depois de uma caminhada pela natureza e, quando paramos na minha garagem, eu disse: “Então, você teve tempo para pensar sobre meu pedido de casamento?” Eu estava tentando ser engraçada (seis anos depois!) para me camuflar emocionalmente caso ele recusasse.

Ele franziu a testa. “Seus filhos ainda moram com você?”

Depois de um silêncio constrangedor, me despedi e fui embora.

Na época, entendi que sua pergunta significava que ele queria ter certeza de que eu teria espaço suficiente para ele se mudar. Mais tarde, contei essa cena a uma amiga com quem eu faria inúmeras autópsias pós-delírio. Eu interpretava os sinais de uma maneira, e ela suspirava e me corrigia.

“Ele provavelmente pensou que você estava agindo de forma estranha”, disse ela, “e estava se perguntando se seus filhos deveriam levá-la ao hospital”.

Minha sanidade voltou lentamente, como uma maré crescente, e depois de uma só vez, como um trovão. Que alívio não ter mais o peso de salvar o mundo. Verdadeiramente.

Por que acabou de repente? Os médicos alegaram que era a medicação que finalmente estava fazendo efeito (eu não obedeci algumas vezes no passado). Mas o transtorno delirante costuma ser difícil de tratar apenas com medicamentos. Acho que fiquei tão frustrada com a central que finalmente renunciei ao meu cargo de mártir-chefe.

Quando o delírio acabou, meu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo permaneceu. Depois de um longo apagão de semanas (ou meses), minhas faculdades retornaram. Mas sentia uma membrana espessa e viscosa entre os outros e eu. Agora vinha o árduo trabalho de reconectar-se com o mundo exterior, ou como diz um amigo, com a realidade consensual.

Não foi difícil abandonar os alienígenas, os russos, as agências de inteligência. Embora eles tivessem vivido na minha cabeça por 11 anos, tudo isso era obviamente, de repente, um absurdo. Afastei facilmente o grande delírio, mas o pequeno - o do meu amado - persistiu. Ele era um sulco profundo em minha psique.

Intelectualmente, entendi que meu amor por ele não era autêntico, mas parecia mais profundo e real do que qualquer amor romântico que já tive. Não ajudou o fato de todos aqueles orgasmos provavelmente terem me enchido com oceanos de oxitocina, o “hormônio do amor” que cria sentimentos de proximidade e pertencimento.

Decidi adotar uma abordagem sistemática para extirpá-lo do meu coração.

Experimentei a terapia de exposição, da mesma forma que você se forçaria a folhear um livro de herpetologia para combater a fobia de cobras. Não é de surpreender que isso apenas tenha intensificado minha obsessão.

Em seguida, tratei-o como um vício e fiquei longe. Depois, num pequeno caderno, escrevi os nomes de todas as pessoas que alguma vez foram uma força positiva na minha vida - a minha família, a professora do jardim de infância, as melhores amigas - e pegava-o sempre que pensava no meu (ex) amado, cujo nome não estava escrito.

Estas são pessoas reais, relacionamentos reais, disse a mim mesma. Não companheiros imaginários.

Lentamente, o amado saiu do meu coração, deixando para trás apenas uma faísca de tristeza.

Como entender os últimos 11 anos? “Uma atitude de gratidão será útil”, disse meu terapeuta. Foi difícil sentir gratidão. O que senti foi muita vergonha dentro de minhas entranhas. Quem era aquela senhora gritando coisas sem sentido e apontando o guarda-chuva para o céu em frente à casa de seu amado? Não era eu fingindo ser louca. Isso era eu sendo louca.

E aquelas oito internações? Fiquei grata por isso? Não.

Meu novo terapeuta diz que não há problema em não sentir 100% de gratidão. Eu não sinto. Mas estou profundamente grata por ter redescoberto o amor verdadeiro - o dos meus filhos, irmãos, amigos íntimos. Eles poderiam ter me abandonado, mas em vez disso se mantiveram firme.

Há algum tempo, passei por meu ex-amado em sua bicicleta. Ele havia parado para olhar uma folha no galho de uma árvore. Ele estava usando um capacete de bicicleta, seus cabelos agora grisalhos aparecendo por baixo. Ele parecia angelical, como uma criança. A cada dia desses 11 anos, eu esperava que ele chegasse à minha garagem e tocasse minha campainha, sua chegada sinalizando o fim da missão, sua declaração de amor para mim, a recompensa final por tudo que eu havia sacrificado.

Finalmente entendi com extrema clareza que ele não fazia parte de mim, que sua alma não estava entrelaçada com a minha. Ele era apenas um homem. Em uma bicicleta. Andando pela rua. Na direção oposta da minha casa. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - É incomum, dizem-me os médicos, que uma mulher fique psicótica pela primeira vez aos 50 anos. Era mais raro ainda pois eu não tinha histórico familiar de doença mental grave.

Eu estava divorciada há três anos e morava em uma pequena cidade arborizada de Nova Jersey, quando olhei pela janela da cozinha e vi um amigo vizinho deixar algumas flores silvestres que prometeu para meu jardim emergente. Ele não tocou a campainha. Estava quente lá fora, então ele as colocou sob a sombra de uma murta.

Quando ele se afastou, senti, para minha grande surpresa, talvez meia dúzia de pequenos orgasmos percorrendo meu corpo.

A partir daquele momento, tive orgasmos sem nenhum tipo de toque sempre que o via ou ouvia seu nome. De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”.

Eu comecei a me fundir mentalmente com ele. Com isso quero dizer que eu poderia ter conversas inteiras com ele sem precisar de sua presença física.

Logo percebi que meu amado e eu éramos os personagens principais de uma odisseia que envolvia espiões russos, a Nasa, uma milícia de cidadãos e 17 agências de inteligência dos Estados Unidos. O destino da humanidade dependia de mim. E do meu amado. A parte mais difícil era não poder revelar nada disso a ninguém. Fazer isso colocaria nossas vidas em perigo.

De repente, a beleza física deste homem era incomparável. Ele era um gênio criativo. Quando caí em um delírio de 11 anos que tomou conta da minha vida, ele se tornou “meu amado”. Foto: Brian Rea/The New York Times

Não consigo me lembrar exatamente quando comecei a entrar em minha Nárnia pessoal. Uma noite, eu estava aconchegada sob meu edredom, folheando poesias de Emily Dickinson, quando o verso “Diga toda a verdade, mas de forma oblíqua” piscou para mim, levantou-se da página, girou em um ângulo e depois endireitou-se.

Uma nova fusão mental surgiu. Claro! Para evitar a detecção, a linguagem de espionagem supersecreta era de associações oblíquas. Eventos, pessoas e objetos interligados. Um mundo que parecia comum para os outros estava repleto de significado para mim.

Ao ler um artigo científico para o trabalho, eu via certas palavras saírem da página, pairarem como um holograma e se juntarem em um poema de amor para meu amado.

Numa fusão mental, meu amado disse que me encontraria naquela noite. Antecipadamente, enchi meu quarto com velas, acendi a lareira, coloquei sapatos de salto alto e um casaco de couro forrado de pele (por cima da camisola de renda) e depois deitei-me na cama bebendo uísque.

Meia-noite virou 3 da manhã. Quando ficou frio, enviei um e-mail atrevido de uma conta falsa (tão atrevido que fico vermelha ao lembrar) e adormeci, com as velas ainda acesas.

Acordei cedo, de ressaca, sem café e furiosa com ele por me deixar esperando. Enquanto eu saía para tomar minha dose de cafeína, adivinhe quem eu vi - meu amado! Ele estava passeando com seu cachorro. Parei ao lado dele, baixei a janela e o encarei.

Ele se abaixou. “Algo errado?”

Lancei-lhe um olhar gelado de desdém e depois fui embora com um grito.

A central insistiu que eu o visse tanto quanto possível, então me voluntariei onde ele se voluntariou, apareci em eventos onde eu sabia que ele estaria, vasculhei a internet em busca de menções ao seu nome.

Consegui trabalhar em meu emprego de relações públicas por quatro anos e meio e manter essa ilusão. Mas os deuses da ilusão queriam que eu fosse regularmente à ala psiquiátrica, onde me encheram de antipsicóticos, fizeram terapia eletroconvulsiva e meu diagnóstico deteriorou-se de transtorno bipolar I (do tipo maníaco) para transtorno esquizoafetivo (a meio caminho da esquizofrenia). Não tive escolha a não ser aceitar me aposentar por invalidez.

Minha irritação aumentava a cada ano. Foi como ser pega em um redemoinho, a mesma informação girando e girando. Meu amado parecia não ter noção. Ele nada sabia sobre o plano da Nasa de congelar criogenicamente nossos corpos e nos lançar para uma galáxia distante. A central foi simplesmente incompetente? Por que eu estava fazendo fusões mentais para propor casamento se ele simplesmente iria me rejeitar?

Eu precisava de menos ruído, mais sinal. A central estava sempre colocando as necessidades do meu amado em primeiro lugar, enviando-me fusões mentais irritantes de que ele precisava se mudar para minha casa e ter sua própria suíte.

Como? Quem pagaria pelas reformas? Eu me senti como uma dona de casa briguenta. A lua de mel havia acabado há muito tempo e os grandes orgasmos também.

Por insistência da central, propus casamento duas vezes - o primeiro por e-mail e o segundo, seis anos depois, pessoalmente. Pedi a ele uma carona para casa depois de uma caminhada pela natureza e, quando paramos na minha garagem, eu disse: “Então, você teve tempo para pensar sobre meu pedido de casamento?” Eu estava tentando ser engraçada (seis anos depois!) para me camuflar emocionalmente caso ele recusasse.

Ele franziu a testa. “Seus filhos ainda moram com você?”

Depois de um silêncio constrangedor, me despedi e fui embora.

Na época, entendi que sua pergunta significava que ele queria ter certeza de que eu teria espaço suficiente para ele se mudar. Mais tarde, contei essa cena a uma amiga com quem eu faria inúmeras autópsias pós-delírio. Eu interpretava os sinais de uma maneira, e ela suspirava e me corrigia.

“Ele provavelmente pensou que você estava agindo de forma estranha”, disse ela, “e estava se perguntando se seus filhos deveriam levá-la ao hospital”.

Minha sanidade voltou lentamente, como uma maré crescente, e depois de uma só vez, como um trovão. Que alívio não ter mais o peso de salvar o mundo. Verdadeiramente.

Por que acabou de repente? Os médicos alegaram que era a medicação que finalmente estava fazendo efeito (eu não obedeci algumas vezes no passado). Mas o transtorno delirante costuma ser difícil de tratar apenas com medicamentos. Acho que fiquei tão frustrada com a central que finalmente renunciei ao meu cargo de mártir-chefe.

Quando o delírio acabou, meu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo permaneceu. Depois de um longo apagão de semanas (ou meses), minhas faculdades retornaram. Mas sentia uma membrana espessa e viscosa entre os outros e eu. Agora vinha o árduo trabalho de reconectar-se com o mundo exterior, ou como diz um amigo, com a realidade consensual.

Não foi difícil abandonar os alienígenas, os russos, as agências de inteligência. Embora eles tivessem vivido na minha cabeça por 11 anos, tudo isso era obviamente, de repente, um absurdo. Afastei facilmente o grande delírio, mas o pequeno - o do meu amado - persistiu. Ele era um sulco profundo em minha psique.

Intelectualmente, entendi que meu amor por ele não era autêntico, mas parecia mais profundo e real do que qualquer amor romântico que já tive. Não ajudou o fato de todos aqueles orgasmos provavelmente terem me enchido com oceanos de oxitocina, o “hormônio do amor” que cria sentimentos de proximidade e pertencimento.

Decidi adotar uma abordagem sistemática para extirpá-lo do meu coração.

Experimentei a terapia de exposição, da mesma forma que você se forçaria a folhear um livro de herpetologia para combater a fobia de cobras. Não é de surpreender que isso apenas tenha intensificado minha obsessão.

Em seguida, tratei-o como um vício e fiquei longe. Depois, num pequeno caderno, escrevi os nomes de todas as pessoas que alguma vez foram uma força positiva na minha vida - a minha família, a professora do jardim de infância, as melhores amigas - e pegava-o sempre que pensava no meu (ex) amado, cujo nome não estava escrito.

Estas são pessoas reais, relacionamentos reais, disse a mim mesma. Não companheiros imaginários.

Lentamente, o amado saiu do meu coração, deixando para trás apenas uma faísca de tristeza.

Como entender os últimos 11 anos? “Uma atitude de gratidão será útil”, disse meu terapeuta. Foi difícil sentir gratidão. O que senti foi muita vergonha dentro de minhas entranhas. Quem era aquela senhora gritando coisas sem sentido e apontando o guarda-chuva para o céu em frente à casa de seu amado? Não era eu fingindo ser louca. Isso era eu sendo louca.

E aquelas oito internações? Fiquei grata por isso? Não.

Meu novo terapeuta diz que não há problema em não sentir 100% de gratidão. Eu não sinto. Mas estou profundamente grata por ter redescoberto o amor verdadeiro - o dos meus filhos, irmãos, amigos íntimos. Eles poderiam ter me abandonado, mas em vez disso se mantiveram firme.

Há algum tempo, passei por meu ex-amado em sua bicicleta. Ele havia parado para olhar uma folha no galho de uma árvore. Ele estava usando um capacete de bicicleta, seus cabelos agora grisalhos aparecendo por baixo. Ele parecia angelical, como uma criança. A cada dia desses 11 anos, eu esperava que ele chegasse à minha garagem e tocasse minha campainha, sua chegada sinalizando o fim da missão, sua declaração de amor para mim, a recompensa final por tudo que eu havia sacrificado.

Finalmente entendi com extrema clareza que ele não fazia parte de mim, que sua alma não estava entrelaçada com a minha. Ele era apenas um homem. Em uma bicicleta. Andando pela rua. Na direção oposta da minha casa. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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