Modern Love: Por favor, Deus, me ajude a parar de sentir a falta dela


Como uma judia ultraortodoxa, tentei orar para deixar de ser homossexual. Não funcionou.

Por Sara Glass

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava olhando memes de psicoterapia no Instagram há alguns anos quando Hannah apareceu em meus pedidos de amizade. Nós tínhamos novos sobrenomes e novos visuais. Eu tinha decidido que, já que eu tinha que usar perucas de qualquer jeito (como uma judia ultraortodoxa), elas poderiam ser loiras em vez do meu castanho opaco natural. Ela usava uma diversidade de perucas e outras coberturas criativas para a cabeça.

Nós “curtimos” as postagens uma da outra, não ousando quebrar nosso silêncio com palavras reais.

“Ela parece feliz,” eu disse a mim mesma, com os dedos pairando sobre suas fotos. “Não comece nada.”

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Ainda assim, eu me peguei imaginando-a como a garota que eu conhecia de aparelho e coque bagunçado, sem maquiagem ou rugas de expressão, que jogou sua mochila perto de mim no primeiro dia do décimo ano em Borough Park, Brooklyn. Enquanto nossos colegas desenhavam equações em um papel quadriculado, ela escreveu em seu braço com caneta gel neon: “Hannah”. Enrolei minha manga idêntica em xadrez azul marinho e escrevi com caneta esferográfica na minha própria pele pálida: “Malka”.

Ela sorriu. Eu queria saber tudo sobre ela.

Ela era de outra cidade, onde não havia escolas judias ortodoxas. “Eu não entendo este lugar”, ela disse.

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“Vou lhe dizer tudo o que você precisa saber”, eu disse.

Ela levantou uma sobrancelha e riu.

O que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? Foto: Brian Rea/The New York Times
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À noite, no vazio da minha casa, eu me preocupava com ela. Minha família estava se desfazendo, minha mãe vivendo atrás da porta fechada de seu quarto e meu pai praticamente dormindo em seu armazém. Hannah, porém, estava hospedada com uma família judia local durante o ano letivo. Ela não tinha família na cidade. Pareceu-me natural convidá-la para um jantar caseiro da minha mãe. Parecia óbvio que ela deveria passar a noite. Em nossas festas do pijama, apesar dos alarmes piscando em minha mente, meu corpo se sentia bem contra o dela.

Nós nos aproximamos, cuidadosas sob as luzes fluorescentes da nossa sala de aula. Ainda assim, as outras garotas notavam, sussurrando coisas sobre parecermos duas irmãs, tentando nomear algo que nenhuma de nós sabia como expressar. Estávamos nos preparando para nos formar no novo milênio, conhecer os meninos da Yeshivá e então cumprir nosso verdadeiro propósito ao nos casar e ter filhos.

Quando o silêncio em minha casa começou a ficar sufocante, mudei-me para Toronto e fiquei com alguns primos nos últimos dois anos do ensino médio. Fiquei aliviada por estar longe da tentação.

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Eu segui o precedente de nossos sábios e jejuei durante os dias da semana até que pudesse sentir meus ossos do quadril despontando nas saias do meu uniforme. Até isso me fazia lembrar Hannah, as saias longas que compartilhávamos e como elas se encaixavam em nossos corpos magros quase exatamente da mesma maneira. “Ajude-me a parar de sentir a falta dela”, eu pedi a Deus até que a dor em minha alma prevaleceu e meu bom senso desapareceu. “Por favor, me perdoe”, eu rezei, enquanto discava o número dela, de meu celular Nokia para o telefone fixo da família que a hospedava.

Após meses de distância, nos encontramos no Brooklyn em um show. Assistimos a Kineret, a superestrela da nossa comunidade com seu vestido longo e brilhante balançando enquanto ela enchia a sala com música. Eu apertei minhas omoplatas. Apertadas. Mais apertadas. Hannah estava tão perto que eu podia sentir os movimentos de seu corpo no ar entre nós. Mas eu também podia ouvir o som baixo quando dezenas de vozes piedosas se juntaram às de Kineret, cantando sobre o mundo vindouro. Não é exatamente a trilha sonora apropriada para atuar em meus desejos profanos. Quando a música terminou, vimos a multidão se dispersar pelas ruas, um fluxo de meninas e mulheres em trajes modestos.

“Quer dormir lá em casa?” Eu perguntei, tentando tirar a urgência das minhas palavras, tentando não prender a respiração.

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“Claro! Podemos comer pizza?” No brilho fraco das luzes da rua, eu vi seu sorriso.

Criamos nosso próprio show mais tarde naquela noite, uma orquestra silenciosa de pele com pele, a respiração dela no meu ouvido e as batidas de nossos corações um contra o outro no escuro. Nos abraçamos depois. Senti seu rosto contra o meu, seus dedos descendo pelas minhas costas.

Eu queria dizer: “Eu penso em você todos os dias.”

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Sua respiração desacelerou, mas eu podia senti-la, ainda acordada, tocando notas silenciosas comigo durante toda a noite. Enquanto a luz do sol passava pelas persianas da minha janela, tentei não notar a inclinação de seu ombro pálido, a forma como seu cabelo escuro se espalhava sobre meu travesseiro.

“Esta é a última vez”, prometi a mim mesma - e a Deus - enquanto deslizava minha perna entre as dela.

De manhã, nos separamos, ela de volta para a família que a acolhia e eu de avião para minha escola em Toronto. Eu voltei a rezar, escrevendo palavras para Deus nas margens de meus livros de orações.

Continuei ouvindo que Hannah estava descendo o caminho para o inferno. Toda vez que eu voltava para casa em Nova York e a via, parecia que havia um abismo entre nós aumentando. Quando nossos olhos se encontravam, eu desviava o olhar, para a nova argola de prata em seu nariz, sua calça boca de sino listrada. Eu sabia que devia parecer uma fanática religiosa para ela, com minhas saias pretas parecidas com tendas e rabo de cavalo apertado. Fiquei preocupada que fosse minha culpa, que meus pecados a tivessem desviado do caminho sagrado.

Seguimos em frente, cada uma de nós se casando com homens de chapéu preto, eu com 19 anos e ela alguns anos depois. Não tive notícias dela e não entrei em contato. A última coisa que eu queria era ser responsável por qualquer uma de nós pecar novamente. Eu obedientemente tive dois filhos. Eu indevidamente tenho um diploma universitário e um divórcio. Eu flertei com a ideia de namorar mulheres, mas depois fui avisada, por vários mentores religiosos, que se me desviasse da minha fé, poderia perder a guarda dos meus filhos.

Em vez disso, casei-me com outro judeu que amava meus filhos quase tanto quanto me amava. Eu estava tentando descobrir por que eu não conseguia amá-lo, não do jeito que ele merecia, quando o pedido de amizade de Hannah apareceu na tela do meu iPhone.

Eu já tinha palavras para isso naquela época, dos meus anos na faculdade e da prática clínica, palavras que eu não queria admitir que se aplicassem a mim. No entanto, eu estava começando a perceber que, apesar de meus melhores esforços, eu tinha falhado em tentar deixar de ser homossexual. Eu me divorciei novamente, quando se tornou muito doloroso continuar mentindo para mim mesma e ferindo as pessoas mais próximas a mim.

Hannah seguiu meus posts sobre a mudança do meu bairro ortodoxo para Manhattan, enviando pequenos emojis de polegar para cima. Então, vazaram fotos minhas beijando uma mulher com um corte de cabelo masculino impecável. Quase todo mundo que eu conhecia ficou chocado. Horrorizado. Quando Hannah as viu, ela enviou uma mensagem de voz parabenizando-me, parecendo totalmente surpresa. “Estou tão feliz por você”, ela disse. “Você parece bem.”

Ao longo da pandemia, notei que suas fotos começaram a mudar, a cobertura da cabeça desaparecendo lentamente. Houve um ciclo de novos nomes. Eu sabia como era: abandonar uma vida antiga e encontrar forças para recomeçar. Mandamos mensagens e finalmente marcamos um horário para nos encontrarmos.

Vinte anos depois de nossa formatura do ensino médio (e comigo casada novamente, desta vez com uma mulher), eu estava do lado de fora da Hummus Kitchen do Upper East Side, examinando cada pessoa na rua. Ela era a mulher de calça de moletom e capuz? Aquela de blazer e bolsa Chanel? Eu não deveria ter me estressado. Assim que vi Hannah, com franjas balançando em seus braços, sorriso brilhante sob as luzes da cidade, eu soube.

“Conte-me tudo”, ela disse, me abraçando.

Fomos das minhas histórias para as dela, para as nossas. Apesar de ser uma verdadeira adulta que fala sobre emoções complexas para ganhar a vida, eu gaguejei quando perguntei: “Você se lembra - a gente ficou?” Eram as únicas palavras que eu poderia conjurar para fazer uma pergunta muito maior do que isso. Se fizemos algo que parecia assustador, sem ninguém por perto para ver, isso de fato aconteceu?

Ela fez uma pausa, a mão em torno de seu copo de vinho rosé. “Sim”, ela disse, com sua pronúncia da Hannah de 15 anos.

Engoli meu próprio vinho com alívio. Aconteceu.

Quando as luzes do restaurante diminuíram e uma pequena vela apareceu em nossa mesa, começamos a fazer as perguntas que estávamos guardando há décadas.

Ela: “Por que você sempre ia embora sem se despedir?”

Eu: “Eu te prejudiquei?”

Nunca perguntamos a maior de todas: o que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava olhando memes de psicoterapia no Instagram há alguns anos quando Hannah apareceu em meus pedidos de amizade. Nós tínhamos novos sobrenomes e novos visuais. Eu tinha decidido que, já que eu tinha que usar perucas de qualquer jeito (como uma judia ultraortodoxa), elas poderiam ser loiras em vez do meu castanho opaco natural. Ela usava uma diversidade de perucas e outras coberturas criativas para a cabeça.

Nós “curtimos” as postagens uma da outra, não ousando quebrar nosso silêncio com palavras reais.

“Ela parece feliz,” eu disse a mim mesma, com os dedos pairando sobre suas fotos. “Não comece nada.”

Ainda assim, eu me peguei imaginando-a como a garota que eu conhecia de aparelho e coque bagunçado, sem maquiagem ou rugas de expressão, que jogou sua mochila perto de mim no primeiro dia do décimo ano em Borough Park, Brooklyn. Enquanto nossos colegas desenhavam equações em um papel quadriculado, ela escreveu em seu braço com caneta gel neon: “Hannah”. Enrolei minha manga idêntica em xadrez azul marinho e escrevi com caneta esferográfica na minha própria pele pálida: “Malka”.

Ela sorriu. Eu queria saber tudo sobre ela.

Ela era de outra cidade, onde não havia escolas judias ortodoxas. “Eu não entendo este lugar”, ela disse.

“Vou lhe dizer tudo o que você precisa saber”, eu disse.

Ela levantou uma sobrancelha e riu.

O que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? Foto: Brian Rea/The New York Times

À noite, no vazio da minha casa, eu me preocupava com ela. Minha família estava se desfazendo, minha mãe vivendo atrás da porta fechada de seu quarto e meu pai praticamente dormindo em seu armazém. Hannah, porém, estava hospedada com uma família judia local durante o ano letivo. Ela não tinha família na cidade. Pareceu-me natural convidá-la para um jantar caseiro da minha mãe. Parecia óbvio que ela deveria passar a noite. Em nossas festas do pijama, apesar dos alarmes piscando em minha mente, meu corpo se sentia bem contra o dela.

Nós nos aproximamos, cuidadosas sob as luzes fluorescentes da nossa sala de aula. Ainda assim, as outras garotas notavam, sussurrando coisas sobre parecermos duas irmãs, tentando nomear algo que nenhuma de nós sabia como expressar. Estávamos nos preparando para nos formar no novo milênio, conhecer os meninos da Yeshivá e então cumprir nosso verdadeiro propósito ao nos casar e ter filhos.

Quando o silêncio em minha casa começou a ficar sufocante, mudei-me para Toronto e fiquei com alguns primos nos últimos dois anos do ensino médio. Fiquei aliviada por estar longe da tentação.

Eu segui o precedente de nossos sábios e jejuei durante os dias da semana até que pudesse sentir meus ossos do quadril despontando nas saias do meu uniforme. Até isso me fazia lembrar Hannah, as saias longas que compartilhávamos e como elas se encaixavam em nossos corpos magros quase exatamente da mesma maneira. “Ajude-me a parar de sentir a falta dela”, eu pedi a Deus até que a dor em minha alma prevaleceu e meu bom senso desapareceu. “Por favor, me perdoe”, eu rezei, enquanto discava o número dela, de meu celular Nokia para o telefone fixo da família que a hospedava.

Após meses de distância, nos encontramos no Brooklyn em um show. Assistimos a Kineret, a superestrela da nossa comunidade com seu vestido longo e brilhante balançando enquanto ela enchia a sala com música. Eu apertei minhas omoplatas. Apertadas. Mais apertadas. Hannah estava tão perto que eu podia sentir os movimentos de seu corpo no ar entre nós. Mas eu também podia ouvir o som baixo quando dezenas de vozes piedosas se juntaram às de Kineret, cantando sobre o mundo vindouro. Não é exatamente a trilha sonora apropriada para atuar em meus desejos profanos. Quando a música terminou, vimos a multidão se dispersar pelas ruas, um fluxo de meninas e mulheres em trajes modestos.

“Quer dormir lá em casa?” Eu perguntei, tentando tirar a urgência das minhas palavras, tentando não prender a respiração.

“Claro! Podemos comer pizza?” No brilho fraco das luzes da rua, eu vi seu sorriso.

Criamos nosso próprio show mais tarde naquela noite, uma orquestra silenciosa de pele com pele, a respiração dela no meu ouvido e as batidas de nossos corações um contra o outro no escuro. Nos abraçamos depois. Senti seu rosto contra o meu, seus dedos descendo pelas minhas costas.

Eu queria dizer: “Eu penso em você todos os dias.”

Sua respiração desacelerou, mas eu podia senti-la, ainda acordada, tocando notas silenciosas comigo durante toda a noite. Enquanto a luz do sol passava pelas persianas da minha janela, tentei não notar a inclinação de seu ombro pálido, a forma como seu cabelo escuro se espalhava sobre meu travesseiro.

“Esta é a última vez”, prometi a mim mesma - e a Deus - enquanto deslizava minha perna entre as dela.

De manhã, nos separamos, ela de volta para a família que a acolhia e eu de avião para minha escola em Toronto. Eu voltei a rezar, escrevendo palavras para Deus nas margens de meus livros de orações.

Continuei ouvindo que Hannah estava descendo o caminho para o inferno. Toda vez que eu voltava para casa em Nova York e a via, parecia que havia um abismo entre nós aumentando. Quando nossos olhos se encontravam, eu desviava o olhar, para a nova argola de prata em seu nariz, sua calça boca de sino listrada. Eu sabia que devia parecer uma fanática religiosa para ela, com minhas saias pretas parecidas com tendas e rabo de cavalo apertado. Fiquei preocupada que fosse minha culpa, que meus pecados a tivessem desviado do caminho sagrado.

Seguimos em frente, cada uma de nós se casando com homens de chapéu preto, eu com 19 anos e ela alguns anos depois. Não tive notícias dela e não entrei em contato. A última coisa que eu queria era ser responsável por qualquer uma de nós pecar novamente. Eu obedientemente tive dois filhos. Eu indevidamente tenho um diploma universitário e um divórcio. Eu flertei com a ideia de namorar mulheres, mas depois fui avisada, por vários mentores religiosos, que se me desviasse da minha fé, poderia perder a guarda dos meus filhos.

Em vez disso, casei-me com outro judeu que amava meus filhos quase tanto quanto me amava. Eu estava tentando descobrir por que eu não conseguia amá-lo, não do jeito que ele merecia, quando o pedido de amizade de Hannah apareceu na tela do meu iPhone.

Eu já tinha palavras para isso naquela época, dos meus anos na faculdade e da prática clínica, palavras que eu não queria admitir que se aplicassem a mim. No entanto, eu estava começando a perceber que, apesar de meus melhores esforços, eu tinha falhado em tentar deixar de ser homossexual. Eu me divorciei novamente, quando se tornou muito doloroso continuar mentindo para mim mesma e ferindo as pessoas mais próximas a mim.

Hannah seguiu meus posts sobre a mudança do meu bairro ortodoxo para Manhattan, enviando pequenos emojis de polegar para cima. Então, vazaram fotos minhas beijando uma mulher com um corte de cabelo masculino impecável. Quase todo mundo que eu conhecia ficou chocado. Horrorizado. Quando Hannah as viu, ela enviou uma mensagem de voz parabenizando-me, parecendo totalmente surpresa. “Estou tão feliz por você”, ela disse. “Você parece bem.”

Ao longo da pandemia, notei que suas fotos começaram a mudar, a cobertura da cabeça desaparecendo lentamente. Houve um ciclo de novos nomes. Eu sabia como era: abandonar uma vida antiga e encontrar forças para recomeçar. Mandamos mensagens e finalmente marcamos um horário para nos encontrarmos.

Vinte anos depois de nossa formatura do ensino médio (e comigo casada novamente, desta vez com uma mulher), eu estava do lado de fora da Hummus Kitchen do Upper East Side, examinando cada pessoa na rua. Ela era a mulher de calça de moletom e capuz? Aquela de blazer e bolsa Chanel? Eu não deveria ter me estressado. Assim que vi Hannah, com franjas balançando em seus braços, sorriso brilhante sob as luzes da cidade, eu soube.

“Conte-me tudo”, ela disse, me abraçando.

Fomos das minhas histórias para as dela, para as nossas. Apesar de ser uma verdadeira adulta que fala sobre emoções complexas para ganhar a vida, eu gaguejei quando perguntei: “Você se lembra - a gente ficou?” Eram as únicas palavras que eu poderia conjurar para fazer uma pergunta muito maior do que isso. Se fizemos algo que parecia assustador, sem ninguém por perto para ver, isso de fato aconteceu?

Ela fez uma pausa, a mão em torno de seu copo de vinho rosé. “Sim”, ela disse, com sua pronúncia da Hannah de 15 anos.

Engoli meu próprio vinho com alívio. Aconteceu.

Quando as luzes do restaurante diminuíram e uma pequena vela apareceu em nossa mesa, começamos a fazer as perguntas que estávamos guardando há décadas.

Ela: “Por que você sempre ia embora sem se despedir?”

Eu: “Eu te prejudiquei?”

Nunca perguntamos a maior de todas: o que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava olhando memes de psicoterapia no Instagram há alguns anos quando Hannah apareceu em meus pedidos de amizade. Nós tínhamos novos sobrenomes e novos visuais. Eu tinha decidido que, já que eu tinha que usar perucas de qualquer jeito (como uma judia ultraortodoxa), elas poderiam ser loiras em vez do meu castanho opaco natural. Ela usava uma diversidade de perucas e outras coberturas criativas para a cabeça.

Nós “curtimos” as postagens uma da outra, não ousando quebrar nosso silêncio com palavras reais.

“Ela parece feliz,” eu disse a mim mesma, com os dedos pairando sobre suas fotos. “Não comece nada.”

Ainda assim, eu me peguei imaginando-a como a garota que eu conhecia de aparelho e coque bagunçado, sem maquiagem ou rugas de expressão, que jogou sua mochila perto de mim no primeiro dia do décimo ano em Borough Park, Brooklyn. Enquanto nossos colegas desenhavam equações em um papel quadriculado, ela escreveu em seu braço com caneta gel neon: “Hannah”. Enrolei minha manga idêntica em xadrez azul marinho e escrevi com caneta esferográfica na minha própria pele pálida: “Malka”.

Ela sorriu. Eu queria saber tudo sobre ela.

Ela era de outra cidade, onde não havia escolas judias ortodoxas. “Eu não entendo este lugar”, ela disse.

“Vou lhe dizer tudo o que você precisa saber”, eu disse.

Ela levantou uma sobrancelha e riu.

O que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? Foto: Brian Rea/The New York Times

À noite, no vazio da minha casa, eu me preocupava com ela. Minha família estava se desfazendo, minha mãe vivendo atrás da porta fechada de seu quarto e meu pai praticamente dormindo em seu armazém. Hannah, porém, estava hospedada com uma família judia local durante o ano letivo. Ela não tinha família na cidade. Pareceu-me natural convidá-la para um jantar caseiro da minha mãe. Parecia óbvio que ela deveria passar a noite. Em nossas festas do pijama, apesar dos alarmes piscando em minha mente, meu corpo se sentia bem contra o dela.

Nós nos aproximamos, cuidadosas sob as luzes fluorescentes da nossa sala de aula. Ainda assim, as outras garotas notavam, sussurrando coisas sobre parecermos duas irmãs, tentando nomear algo que nenhuma de nós sabia como expressar. Estávamos nos preparando para nos formar no novo milênio, conhecer os meninos da Yeshivá e então cumprir nosso verdadeiro propósito ao nos casar e ter filhos.

Quando o silêncio em minha casa começou a ficar sufocante, mudei-me para Toronto e fiquei com alguns primos nos últimos dois anos do ensino médio. Fiquei aliviada por estar longe da tentação.

Eu segui o precedente de nossos sábios e jejuei durante os dias da semana até que pudesse sentir meus ossos do quadril despontando nas saias do meu uniforme. Até isso me fazia lembrar Hannah, as saias longas que compartilhávamos e como elas se encaixavam em nossos corpos magros quase exatamente da mesma maneira. “Ajude-me a parar de sentir a falta dela”, eu pedi a Deus até que a dor em minha alma prevaleceu e meu bom senso desapareceu. “Por favor, me perdoe”, eu rezei, enquanto discava o número dela, de meu celular Nokia para o telefone fixo da família que a hospedava.

Após meses de distância, nos encontramos no Brooklyn em um show. Assistimos a Kineret, a superestrela da nossa comunidade com seu vestido longo e brilhante balançando enquanto ela enchia a sala com música. Eu apertei minhas omoplatas. Apertadas. Mais apertadas. Hannah estava tão perto que eu podia sentir os movimentos de seu corpo no ar entre nós. Mas eu também podia ouvir o som baixo quando dezenas de vozes piedosas se juntaram às de Kineret, cantando sobre o mundo vindouro. Não é exatamente a trilha sonora apropriada para atuar em meus desejos profanos. Quando a música terminou, vimos a multidão se dispersar pelas ruas, um fluxo de meninas e mulheres em trajes modestos.

“Quer dormir lá em casa?” Eu perguntei, tentando tirar a urgência das minhas palavras, tentando não prender a respiração.

“Claro! Podemos comer pizza?” No brilho fraco das luzes da rua, eu vi seu sorriso.

Criamos nosso próprio show mais tarde naquela noite, uma orquestra silenciosa de pele com pele, a respiração dela no meu ouvido e as batidas de nossos corações um contra o outro no escuro. Nos abraçamos depois. Senti seu rosto contra o meu, seus dedos descendo pelas minhas costas.

Eu queria dizer: “Eu penso em você todos os dias.”

Sua respiração desacelerou, mas eu podia senti-la, ainda acordada, tocando notas silenciosas comigo durante toda a noite. Enquanto a luz do sol passava pelas persianas da minha janela, tentei não notar a inclinação de seu ombro pálido, a forma como seu cabelo escuro se espalhava sobre meu travesseiro.

“Esta é a última vez”, prometi a mim mesma - e a Deus - enquanto deslizava minha perna entre as dela.

De manhã, nos separamos, ela de volta para a família que a acolhia e eu de avião para minha escola em Toronto. Eu voltei a rezar, escrevendo palavras para Deus nas margens de meus livros de orações.

Continuei ouvindo que Hannah estava descendo o caminho para o inferno. Toda vez que eu voltava para casa em Nova York e a via, parecia que havia um abismo entre nós aumentando. Quando nossos olhos se encontravam, eu desviava o olhar, para a nova argola de prata em seu nariz, sua calça boca de sino listrada. Eu sabia que devia parecer uma fanática religiosa para ela, com minhas saias pretas parecidas com tendas e rabo de cavalo apertado. Fiquei preocupada que fosse minha culpa, que meus pecados a tivessem desviado do caminho sagrado.

Seguimos em frente, cada uma de nós se casando com homens de chapéu preto, eu com 19 anos e ela alguns anos depois. Não tive notícias dela e não entrei em contato. A última coisa que eu queria era ser responsável por qualquer uma de nós pecar novamente. Eu obedientemente tive dois filhos. Eu indevidamente tenho um diploma universitário e um divórcio. Eu flertei com a ideia de namorar mulheres, mas depois fui avisada, por vários mentores religiosos, que se me desviasse da minha fé, poderia perder a guarda dos meus filhos.

Em vez disso, casei-me com outro judeu que amava meus filhos quase tanto quanto me amava. Eu estava tentando descobrir por que eu não conseguia amá-lo, não do jeito que ele merecia, quando o pedido de amizade de Hannah apareceu na tela do meu iPhone.

Eu já tinha palavras para isso naquela época, dos meus anos na faculdade e da prática clínica, palavras que eu não queria admitir que se aplicassem a mim. No entanto, eu estava começando a perceber que, apesar de meus melhores esforços, eu tinha falhado em tentar deixar de ser homossexual. Eu me divorciei novamente, quando se tornou muito doloroso continuar mentindo para mim mesma e ferindo as pessoas mais próximas a mim.

Hannah seguiu meus posts sobre a mudança do meu bairro ortodoxo para Manhattan, enviando pequenos emojis de polegar para cima. Então, vazaram fotos minhas beijando uma mulher com um corte de cabelo masculino impecável. Quase todo mundo que eu conhecia ficou chocado. Horrorizado. Quando Hannah as viu, ela enviou uma mensagem de voz parabenizando-me, parecendo totalmente surpresa. “Estou tão feliz por você”, ela disse. “Você parece bem.”

Ao longo da pandemia, notei que suas fotos começaram a mudar, a cobertura da cabeça desaparecendo lentamente. Houve um ciclo de novos nomes. Eu sabia como era: abandonar uma vida antiga e encontrar forças para recomeçar. Mandamos mensagens e finalmente marcamos um horário para nos encontrarmos.

Vinte anos depois de nossa formatura do ensino médio (e comigo casada novamente, desta vez com uma mulher), eu estava do lado de fora da Hummus Kitchen do Upper East Side, examinando cada pessoa na rua. Ela era a mulher de calça de moletom e capuz? Aquela de blazer e bolsa Chanel? Eu não deveria ter me estressado. Assim que vi Hannah, com franjas balançando em seus braços, sorriso brilhante sob as luzes da cidade, eu soube.

“Conte-me tudo”, ela disse, me abraçando.

Fomos das minhas histórias para as dela, para as nossas. Apesar de ser uma verdadeira adulta que fala sobre emoções complexas para ganhar a vida, eu gaguejei quando perguntei: “Você se lembra - a gente ficou?” Eram as únicas palavras que eu poderia conjurar para fazer uma pergunta muito maior do que isso. Se fizemos algo que parecia assustador, sem ninguém por perto para ver, isso de fato aconteceu?

Ela fez uma pausa, a mão em torno de seu copo de vinho rosé. “Sim”, ela disse, com sua pronúncia da Hannah de 15 anos.

Engoli meu próprio vinho com alívio. Aconteceu.

Quando as luzes do restaurante diminuíram e uma pequena vela apareceu em nossa mesa, começamos a fazer as perguntas que estávamos guardando há décadas.

Ela: “Por que você sempre ia embora sem se despedir?”

Eu: “Eu te prejudiquei?”

Nunca perguntamos a maior de todas: o que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava olhando memes de psicoterapia no Instagram há alguns anos quando Hannah apareceu em meus pedidos de amizade. Nós tínhamos novos sobrenomes e novos visuais. Eu tinha decidido que, já que eu tinha que usar perucas de qualquer jeito (como uma judia ultraortodoxa), elas poderiam ser loiras em vez do meu castanho opaco natural. Ela usava uma diversidade de perucas e outras coberturas criativas para a cabeça.

Nós “curtimos” as postagens uma da outra, não ousando quebrar nosso silêncio com palavras reais.

“Ela parece feliz,” eu disse a mim mesma, com os dedos pairando sobre suas fotos. “Não comece nada.”

Ainda assim, eu me peguei imaginando-a como a garota que eu conhecia de aparelho e coque bagunçado, sem maquiagem ou rugas de expressão, que jogou sua mochila perto de mim no primeiro dia do décimo ano em Borough Park, Brooklyn. Enquanto nossos colegas desenhavam equações em um papel quadriculado, ela escreveu em seu braço com caneta gel neon: “Hannah”. Enrolei minha manga idêntica em xadrez azul marinho e escrevi com caneta esferográfica na minha própria pele pálida: “Malka”.

Ela sorriu. Eu queria saber tudo sobre ela.

Ela era de outra cidade, onde não havia escolas judias ortodoxas. “Eu não entendo este lugar”, ela disse.

“Vou lhe dizer tudo o que você precisa saber”, eu disse.

Ela levantou uma sobrancelha e riu.

O que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? Foto: Brian Rea/The New York Times

À noite, no vazio da minha casa, eu me preocupava com ela. Minha família estava se desfazendo, minha mãe vivendo atrás da porta fechada de seu quarto e meu pai praticamente dormindo em seu armazém. Hannah, porém, estava hospedada com uma família judia local durante o ano letivo. Ela não tinha família na cidade. Pareceu-me natural convidá-la para um jantar caseiro da minha mãe. Parecia óbvio que ela deveria passar a noite. Em nossas festas do pijama, apesar dos alarmes piscando em minha mente, meu corpo se sentia bem contra o dela.

Nós nos aproximamos, cuidadosas sob as luzes fluorescentes da nossa sala de aula. Ainda assim, as outras garotas notavam, sussurrando coisas sobre parecermos duas irmãs, tentando nomear algo que nenhuma de nós sabia como expressar. Estávamos nos preparando para nos formar no novo milênio, conhecer os meninos da Yeshivá e então cumprir nosso verdadeiro propósito ao nos casar e ter filhos.

Quando o silêncio em minha casa começou a ficar sufocante, mudei-me para Toronto e fiquei com alguns primos nos últimos dois anos do ensino médio. Fiquei aliviada por estar longe da tentação.

Eu segui o precedente de nossos sábios e jejuei durante os dias da semana até que pudesse sentir meus ossos do quadril despontando nas saias do meu uniforme. Até isso me fazia lembrar Hannah, as saias longas que compartilhávamos e como elas se encaixavam em nossos corpos magros quase exatamente da mesma maneira. “Ajude-me a parar de sentir a falta dela”, eu pedi a Deus até que a dor em minha alma prevaleceu e meu bom senso desapareceu. “Por favor, me perdoe”, eu rezei, enquanto discava o número dela, de meu celular Nokia para o telefone fixo da família que a hospedava.

Após meses de distância, nos encontramos no Brooklyn em um show. Assistimos a Kineret, a superestrela da nossa comunidade com seu vestido longo e brilhante balançando enquanto ela enchia a sala com música. Eu apertei minhas omoplatas. Apertadas. Mais apertadas. Hannah estava tão perto que eu podia sentir os movimentos de seu corpo no ar entre nós. Mas eu também podia ouvir o som baixo quando dezenas de vozes piedosas se juntaram às de Kineret, cantando sobre o mundo vindouro. Não é exatamente a trilha sonora apropriada para atuar em meus desejos profanos. Quando a música terminou, vimos a multidão se dispersar pelas ruas, um fluxo de meninas e mulheres em trajes modestos.

“Quer dormir lá em casa?” Eu perguntei, tentando tirar a urgência das minhas palavras, tentando não prender a respiração.

“Claro! Podemos comer pizza?” No brilho fraco das luzes da rua, eu vi seu sorriso.

Criamos nosso próprio show mais tarde naquela noite, uma orquestra silenciosa de pele com pele, a respiração dela no meu ouvido e as batidas de nossos corações um contra o outro no escuro. Nos abraçamos depois. Senti seu rosto contra o meu, seus dedos descendo pelas minhas costas.

Eu queria dizer: “Eu penso em você todos os dias.”

Sua respiração desacelerou, mas eu podia senti-la, ainda acordada, tocando notas silenciosas comigo durante toda a noite. Enquanto a luz do sol passava pelas persianas da minha janela, tentei não notar a inclinação de seu ombro pálido, a forma como seu cabelo escuro se espalhava sobre meu travesseiro.

“Esta é a última vez”, prometi a mim mesma - e a Deus - enquanto deslizava minha perna entre as dela.

De manhã, nos separamos, ela de volta para a família que a acolhia e eu de avião para minha escola em Toronto. Eu voltei a rezar, escrevendo palavras para Deus nas margens de meus livros de orações.

Continuei ouvindo que Hannah estava descendo o caminho para o inferno. Toda vez que eu voltava para casa em Nova York e a via, parecia que havia um abismo entre nós aumentando. Quando nossos olhos se encontravam, eu desviava o olhar, para a nova argola de prata em seu nariz, sua calça boca de sino listrada. Eu sabia que devia parecer uma fanática religiosa para ela, com minhas saias pretas parecidas com tendas e rabo de cavalo apertado. Fiquei preocupada que fosse minha culpa, que meus pecados a tivessem desviado do caminho sagrado.

Seguimos em frente, cada uma de nós se casando com homens de chapéu preto, eu com 19 anos e ela alguns anos depois. Não tive notícias dela e não entrei em contato. A última coisa que eu queria era ser responsável por qualquer uma de nós pecar novamente. Eu obedientemente tive dois filhos. Eu indevidamente tenho um diploma universitário e um divórcio. Eu flertei com a ideia de namorar mulheres, mas depois fui avisada, por vários mentores religiosos, que se me desviasse da minha fé, poderia perder a guarda dos meus filhos.

Em vez disso, casei-me com outro judeu que amava meus filhos quase tanto quanto me amava. Eu estava tentando descobrir por que eu não conseguia amá-lo, não do jeito que ele merecia, quando o pedido de amizade de Hannah apareceu na tela do meu iPhone.

Eu já tinha palavras para isso naquela época, dos meus anos na faculdade e da prática clínica, palavras que eu não queria admitir que se aplicassem a mim. No entanto, eu estava começando a perceber que, apesar de meus melhores esforços, eu tinha falhado em tentar deixar de ser homossexual. Eu me divorciei novamente, quando se tornou muito doloroso continuar mentindo para mim mesma e ferindo as pessoas mais próximas a mim.

Hannah seguiu meus posts sobre a mudança do meu bairro ortodoxo para Manhattan, enviando pequenos emojis de polegar para cima. Então, vazaram fotos minhas beijando uma mulher com um corte de cabelo masculino impecável. Quase todo mundo que eu conhecia ficou chocado. Horrorizado. Quando Hannah as viu, ela enviou uma mensagem de voz parabenizando-me, parecendo totalmente surpresa. “Estou tão feliz por você”, ela disse. “Você parece bem.”

Ao longo da pandemia, notei que suas fotos começaram a mudar, a cobertura da cabeça desaparecendo lentamente. Houve um ciclo de novos nomes. Eu sabia como era: abandonar uma vida antiga e encontrar forças para recomeçar. Mandamos mensagens e finalmente marcamos um horário para nos encontrarmos.

Vinte anos depois de nossa formatura do ensino médio (e comigo casada novamente, desta vez com uma mulher), eu estava do lado de fora da Hummus Kitchen do Upper East Side, examinando cada pessoa na rua. Ela era a mulher de calça de moletom e capuz? Aquela de blazer e bolsa Chanel? Eu não deveria ter me estressado. Assim que vi Hannah, com franjas balançando em seus braços, sorriso brilhante sob as luzes da cidade, eu soube.

“Conte-me tudo”, ela disse, me abraçando.

Fomos das minhas histórias para as dela, para as nossas. Apesar de ser uma verdadeira adulta que fala sobre emoções complexas para ganhar a vida, eu gaguejei quando perguntei: “Você se lembra - a gente ficou?” Eram as únicas palavras que eu poderia conjurar para fazer uma pergunta muito maior do que isso. Se fizemos algo que parecia assustador, sem ninguém por perto para ver, isso de fato aconteceu?

Ela fez uma pausa, a mão em torno de seu copo de vinho rosé. “Sim”, ela disse, com sua pronúncia da Hannah de 15 anos.

Engoli meu próprio vinho com alívio. Aconteceu.

Quando as luzes do restaurante diminuíram e uma pequena vela apareceu em nossa mesa, começamos a fazer as perguntas que estávamos guardando há décadas.

Ela: “Por que você sempre ia embora sem se despedir?”

Eu: “Eu te prejudiquei?”

Nunca perguntamos a maior de todas: o que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu estava olhando memes de psicoterapia no Instagram há alguns anos quando Hannah apareceu em meus pedidos de amizade. Nós tínhamos novos sobrenomes e novos visuais. Eu tinha decidido que, já que eu tinha que usar perucas de qualquer jeito (como uma judia ultraortodoxa), elas poderiam ser loiras em vez do meu castanho opaco natural. Ela usava uma diversidade de perucas e outras coberturas criativas para a cabeça.

Nós “curtimos” as postagens uma da outra, não ousando quebrar nosso silêncio com palavras reais.

“Ela parece feliz,” eu disse a mim mesma, com os dedos pairando sobre suas fotos. “Não comece nada.”

Ainda assim, eu me peguei imaginando-a como a garota que eu conhecia de aparelho e coque bagunçado, sem maquiagem ou rugas de expressão, que jogou sua mochila perto de mim no primeiro dia do décimo ano em Borough Park, Brooklyn. Enquanto nossos colegas desenhavam equações em um papel quadriculado, ela escreveu em seu braço com caneta gel neon: “Hannah”. Enrolei minha manga idêntica em xadrez azul marinho e escrevi com caneta esferográfica na minha própria pele pálida: “Malka”.

Ela sorriu. Eu queria saber tudo sobre ela.

Ela era de outra cidade, onde não havia escolas judias ortodoxas. “Eu não entendo este lugar”, ela disse.

“Vou lhe dizer tudo o que você precisa saber”, eu disse.

Ela levantou uma sobrancelha e riu.

O que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? Foto: Brian Rea/The New York Times

À noite, no vazio da minha casa, eu me preocupava com ela. Minha família estava se desfazendo, minha mãe vivendo atrás da porta fechada de seu quarto e meu pai praticamente dormindo em seu armazém. Hannah, porém, estava hospedada com uma família judia local durante o ano letivo. Ela não tinha família na cidade. Pareceu-me natural convidá-la para um jantar caseiro da minha mãe. Parecia óbvio que ela deveria passar a noite. Em nossas festas do pijama, apesar dos alarmes piscando em minha mente, meu corpo se sentia bem contra o dela.

Nós nos aproximamos, cuidadosas sob as luzes fluorescentes da nossa sala de aula. Ainda assim, as outras garotas notavam, sussurrando coisas sobre parecermos duas irmãs, tentando nomear algo que nenhuma de nós sabia como expressar. Estávamos nos preparando para nos formar no novo milênio, conhecer os meninos da Yeshivá e então cumprir nosso verdadeiro propósito ao nos casar e ter filhos.

Quando o silêncio em minha casa começou a ficar sufocante, mudei-me para Toronto e fiquei com alguns primos nos últimos dois anos do ensino médio. Fiquei aliviada por estar longe da tentação.

Eu segui o precedente de nossos sábios e jejuei durante os dias da semana até que pudesse sentir meus ossos do quadril despontando nas saias do meu uniforme. Até isso me fazia lembrar Hannah, as saias longas que compartilhávamos e como elas se encaixavam em nossos corpos magros quase exatamente da mesma maneira. “Ajude-me a parar de sentir a falta dela”, eu pedi a Deus até que a dor em minha alma prevaleceu e meu bom senso desapareceu. “Por favor, me perdoe”, eu rezei, enquanto discava o número dela, de meu celular Nokia para o telefone fixo da família que a hospedava.

Após meses de distância, nos encontramos no Brooklyn em um show. Assistimos a Kineret, a superestrela da nossa comunidade com seu vestido longo e brilhante balançando enquanto ela enchia a sala com música. Eu apertei minhas omoplatas. Apertadas. Mais apertadas. Hannah estava tão perto que eu podia sentir os movimentos de seu corpo no ar entre nós. Mas eu também podia ouvir o som baixo quando dezenas de vozes piedosas se juntaram às de Kineret, cantando sobre o mundo vindouro. Não é exatamente a trilha sonora apropriada para atuar em meus desejos profanos. Quando a música terminou, vimos a multidão se dispersar pelas ruas, um fluxo de meninas e mulheres em trajes modestos.

“Quer dormir lá em casa?” Eu perguntei, tentando tirar a urgência das minhas palavras, tentando não prender a respiração.

“Claro! Podemos comer pizza?” No brilho fraco das luzes da rua, eu vi seu sorriso.

Criamos nosso próprio show mais tarde naquela noite, uma orquestra silenciosa de pele com pele, a respiração dela no meu ouvido e as batidas de nossos corações um contra o outro no escuro. Nos abraçamos depois. Senti seu rosto contra o meu, seus dedos descendo pelas minhas costas.

Eu queria dizer: “Eu penso em você todos os dias.”

Sua respiração desacelerou, mas eu podia senti-la, ainda acordada, tocando notas silenciosas comigo durante toda a noite. Enquanto a luz do sol passava pelas persianas da minha janela, tentei não notar a inclinação de seu ombro pálido, a forma como seu cabelo escuro se espalhava sobre meu travesseiro.

“Esta é a última vez”, prometi a mim mesma - e a Deus - enquanto deslizava minha perna entre as dela.

De manhã, nos separamos, ela de volta para a família que a acolhia e eu de avião para minha escola em Toronto. Eu voltei a rezar, escrevendo palavras para Deus nas margens de meus livros de orações.

Continuei ouvindo que Hannah estava descendo o caminho para o inferno. Toda vez que eu voltava para casa em Nova York e a via, parecia que havia um abismo entre nós aumentando. Quando nossos olhos se encontravam, eu desviava o olhar, para a nova argola de prata em seu nariz, sua calça boca de sino listrada. Eu sabia que devia parecer uma fanática religiosa para ela, com minhas saias pretas parecidas com tendas e rabo de cavalo apertado. Fiquei preocupada que fosse minha culpa, que meus pecados a tivessem desviado do caminho sagrado.

Seguimos em frente, cada uma de nós se casando com homens de chapéu preto, eu com 19 anos e ela alguns anos depois. Não tive notícias dela e não entrei em contato. A última coisa que eu queria era ser responsável por qualquer uma de nós pecar novamente. Eu obedientemente tive dois filhos. Eu indevidamente tenho um diploma universitário e um divórcio. Eu flertei com a ideia de namorar mulheres, mas depois fui avisada, por vários mentores religiosos, que se me desviasse da minha fé, poderia perder a guarda dos meus filhos.

Em vez disso, casei-me com outro judeu que amava meus filhos quase tanto quanto me amava. Eu estava tentando descobrir por que eu não conseguia amá-lo, não do jeito que ele merecia, quando o pedido de amizade de Hannah apareceu na tela do meu iPhone.

Eu já tinha palavras para isso naquela época, dos meus anos na faculdade e da prática clínica, palavras que eu não queria admitir que se aplicassem a mim. No entanto, eu estava começando a perceber que, apesar de meus melhores esforços, eu tinha falhado em tentar deixar de ser homossexual. Eu me divorciei novamente, quando se tornou muito doloroso continuar mentindo para mim mesma e ferindo as pessoas mais próximas a mim.

Hannah seguiu meus posts sobre a mudança do meu bairro ortodoxo para Manhattan, enviando pequenos emojis de polegar para cima. Então, vazaram fotos minhas beijando uma mulher com um corte de cabelo masculino impecável. Quase todo mundo que eu conhecia ficou chocado. Horrorizado. Quando Hannah as viu, ela enviou uma mensagem de voz parabenizando-me, parecendo totalmente surpresa. “Estou tão feliz por você”, ela disse. “Você parece bem.”

Ao longo da pandemia, notei que suas fotos começaram a mudar, a cobertura da cabeça desaparecendo lentamente. Houve um ciclo de novos nomes. Eu sabia como era: abandonar uma vida antiga e encontrar forças para recomeçar. Mandamos mensagens e finalmente marcamos um horário para nos encontrarmos.

Vinte anos depois de nossa formatura do ensino médio (e comigo casada novamente, desta vez com uma mulher), eu estava do lado de fora da Hummus Kitchen do Upper East Side, examinando cada pessoa na rua. Ela era a mulher de calça de moletom e capuz? Aquela de blazer e bolsa Chanel? Eu não deveria ter me estressado. Assim que vi Hannah, com franjas balançando em seus braços, sorriso brilhante sob as luzes da cidade, eu soube.

“Conte-me tudo”, ela disse, me abraçando.

Fomos das minhas histórias para as dela, para as nossas. Apesar de ser uma verdadeira adulta que fala sobre emoções complexas para ganhar a vida, eu gaguejei quando perguntei: “Você se lembra - a gente ficou?” Eram as únicas palavras que eu poderia conjurar para fazer uma pergunta muito maior do que isso. Se fizemos algo que parecia assustador, sem ninguém por perto para ver, isso de fato aconteceu?

Ela fez uma pausa, a mão em torno de seu copo de vinho rosé. “Sim”, ela disse, com sua pronúncia da Hannah de 15 anos.

Engoli meu próprio vinho com alívio. Aconteceu.

Quando as luzes do restaurante diminuíram e uma pequena vela apareceu em nossa mesa, começamos a fazer as perguntas que estávamos guardando há décadas.

Ela: “Por que você sempre ia embora sem se despedir?”

Eu: “Eu te prejudiquei?”

Nunca perguntamos a maior de todas: o que poderíamos ter sido, se tivéssemos sido criadas para acreditar que o amor nunca é pecado? /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

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