THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Meu pai e eu estávamos no Starbucks cerca de um ano depois que ele soube que tinha Alzheimer, quando ele me olhou de cima a baixo com seu olhar de juiz e disse ao barista: “Esse jovem - hmm - rapaz vai tomar um latte”.
Eu ri, sem saber se ele estava brincando. Até aquele momento, eu sempre fui sua filha.
Na verdade, eu nunca fui uma filha típica. Enquanto crescia, era uma moleca - ou o que Larry David mais tarde chamaria de “pré-gay”. Eu tinha cabelo curto e desgrenhado e usava roupas de segunda mão do meu irmão mais velho; as pessoas muitas vezes pensavam que eu era seu irmão mais novo.
Já adulta, continuei sendo confundida com um homem cisgênero. Já fui chamada de “senhor” mais vezes do que posso contar e, francamente, nunca me importei. Em geral, fico contente com as pessoas que acham que sou homem, mesmo antes de minha recente cirurgia nos seios e das baixas doses de testosterona que comecei a tomar alguns anos atrás.
Logo ficou claro que meu pai não estava brincando, quatro anos atrás, quando se referiu a mim como um rapaz. Depois daquele momento no Starbucks, ele usou quase exclusivamente os pronomes “ele/dele” para mim e até começou a se referir coletivamente a mim e a meu irmão como seus filhos.
Claro, é ao mesmo tempo bom e ruim. Embora ele estivesse tecnicamente esquecendo quem eu sou, também havia algo afirmativo em sua avaliação honesta do meu gênero. É como se ele estivesse me estudando a cada vez com novos olhos e me conhecendo de novo. Paradoxalmente, sinto que ele me enxerga.
A verdade é que meu pai, Teddy, sempre me enxergou. Como diz a tradição familiar, ele estava convencido de que eu era um menino logo depois que nasci. Quando ele pegou todos os meus 4,5 Kg, ele imediatamente pensou: “Nosso pequeno jogador de futebol!” e gritou para todos na sala: “É um menino!” (O médico rapidamente o informou do contrário.)
Claro, provavelmente foi um pouco sexista ele ter presumido que seu novo bebê deveria ser um menino, mas gosto de pensar que ele estava captando minhas vibrações transmasculinas recém-saídas do útero.
Quando eu era pequena, meu pai e eu éramos melhores amigos. Como ele - e ao contrário do meu irmão - eu era uma atleta. Passávamos horas jogando bola no parque e ele me levava a todos os meus vários jogos esportivos. Quando, aos 7 anos, decidi ingressar na liga masculina de hóquei do bairro, ele me apoiou. Sendo juiz, ele às vezes até saía do tribunal mais cedo para me levar a um jogo a tempo.
Ele comprou Transformers e outros chamados “brinquedos de menino” que eu queria e nunca criticou os jeans rasgados e as camisetas que eu insistia em usar. Ambos os meus pais eram progressistas, mas considerando que eles não tinham nenhum entendimento real ou roteiro de como criar uma criança que não se conformava com seu gênero na década de 1980 (especialmente pelos padrões de hoje), eles fizeram um bom trabalho em não me forçar a fazer “coisas de menina”. E embora meu pai tenha ficado ansioso quando me assumi gay aos 19 anos, sempre me senti apoiada por ele. Quando finalmente contei a ele que tinha uma namorada, ele simplesmente perguntou: “Qual é o nome dela?”
Houve tantas partes dolorosas de perder meu pai para o Alzheimer no final de seus 70 anos e início dos 80. Vê-lo não ser mais capaz de fazer todas as coisas que ele tanto ama - andar de bicicleta, jogar tênis, dirigir, viajar com sua parceira, Barbara - e testemunhar sua total confusão e frustração quando seu mundo se tornava desconhecido foi devastador. Mas o único lado positivo era o susto que eu levava toda vez que ele se referia a mim como seu filho.
Foi um trabalho de adaptação para alguns amigos e familiares quando comecei a usar os pronomes neutros três anos atrás, mas não para ele. Talvez tenhamos ignorado as nuances do que significa viver no espectro genderqueer, mas ele foi inequívoco em seu abraço sincero e induzido pelo Alzheimer de minha presença cada vez mais masculina. Ele rapidamente se adaptou dizendo: “Ele isso...” “Ele aquilo...” “Do que ele está falando?”
No outono passado, perguntei diretamente ao meu pai: “Você me vê mais como homem ou como mulher?”
Ele me olhou longamente e fez um movimento circular com a mão. “Ambos,” ele disse, mantendo seu olhar em mim. “Principalmente, eu vejo você apenas como - alegre.”
Eu ri. Ele acertou na mosca. Além de masculino ou feminino, gostaria que todos pudéssemos ver o gênero dessa maneira - como dinâmico, espirituoso, vibrante, vivo.
Em novembro passado, meu pai finalmente foi aceito em uma casa de repouso - e finalmente consegui meu financiamento para uma cirurgia de afirmação de gênero em Ontário. Marquei meu procedimento de masculinização dos seios algumas semanas depois que planejamos sua mudança. No entanto, um surto de covid em seu andar atrasou sua data de mudança para o mesmo dia em que a cirurgia estava marcada. Agora brinco que meu pai e eu fizemos a transição ao mesmo tempo.
Mais do que engraçado, seu reconhecimento do meu gênero teve um poder de cura. Meu pai e eu nunca conseguimos ter uma conversa real sobre minha atual jornada de gênero - como comecei a tomar testosterona logo depois que ele me viu como homem; como agora me identifico como “queer/não-binário” e “transmasculino”; como ainda me chamo “Rachel”, mas às vezes uso “Noah”, o nome que meus pais me dariam se eu fosse menino.
Mas brinco que ele é o pai mais afirmador de gênero que eu poderia desejar. Talvez a capacidade de esquecer o gênero atribuído seja uma lição positiva que podemos aprender com os estragos que o Alzheimer causa no cérebro e nas famílias das pessoas.
Quando recentemente ele conheceu minha nova namorada, ele perguntou a ela: “Como você conheceu ele, ela, isso?”
Na boca de outra pessoa, “isso” soaria repugnantemente preconceituoso. E, no entanto, vindo deste homem carinhoso de 83 anos com demência que nunca aprendeu as novas regras dos pronomes contemporâneos, eu só pude ouvir de uma maneira - como sua tentativa sincera de reconhecer com amor (e graça) quem eu sou.
Não muito tempo atrás, meu pai me apresentou a um de seus cuidadores assim: “Este é meu primo, meu sobrinho, minha sobrinha, meu - tudo.” Ele não tinha mais certeza de nosso parentesco. Mais recentemente, ele também me disse que me ama “como um irmão”. Mas ele me reconheceu, ou pelo menos intuitivamente sabia que eu era alguém que ele estava feliz em ver - seu humano “bagel de tudo”. Ele costumava me chamar de “rosto sorridente”, comentando sobre o grande sorriso que eu tenho. Principalmente, seu rosto se iluminava quando ele me via: “É você!” ele dizia.
O choque da morte ainda vem mesmo quando você está se preparando para isso. Semanas atrás, em 6 de julho, meu pai foi levado para os cuidados paliativos, onde morreu três dias depois.
Mal consegui processar sua morte, mas a ironia comovente de ver meu pai lentamente perder seu senso de identidade exatamente ao mesmo tempo em que eu estava assumindo quem eu sou não passou despercebida por mim, mesmo enquanto isso estava se desenrolando.
Eu era extremamente próxima de minha mãe, que morreu em julho de 2015 por causa de um câncer retal que não foi tratado (é uma longa história, sobre a qual escrevi um livro). Na adolescência, comecei a desenvolver mais os interesses dela por arte e cultura, feminismo, boa comida, caminhadas e humor ácido. Mas, de muitas maneiras, sempre me identifiquei mais com meu pai. Nós éramos os mais parecidos de todos em nossa família (embora eu tivesse mais cabelo), e eu herdei seu cérebro superlógico e sua abordagem de vida de velho judeu.
Ao vê-lo se deteriorar e morrer, senti como se uma extensão de mim também estivesse morrendo. Em seu funeral, falei sobre ele ser a coisa mais próxima que já tive de um gêmeo. Mas sinto algum conforto em saber que levarei uma parte dele comigo. Entre suas muitas características admiráveis - integridade, bondade, generosidade, sagacidade - ele tem sido um modelo para o tipo de masculinidade que quero incorporar: forte e suave, autoconfiante e autodepreciativo, duro e afetuoso, confiável e atencioso, nerd e fofo.
Ao visitá-lo no mês passado, senti uma ansiedade familiar: haverá apenas um pouco mais de tempo até que não haja nenhuma lembrança. Ele sorriu quando me viu - uma centelha de reconhecimento! - mas depois pareceu confuso e disse: “Lembre-me, como nos conhecemos?”
“Eu sou Rachel,” eu disse, sorrindo de volta. “Sua filha.”
E por mais que eu continue crescendo e buscando minha identidade, sempre serei. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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