Modern Love: Presa sob os corpos dos homens


Achei que ser sexualmente ousada era um jogo que eu poderia jogar. Eu não tinha ideia do castigo que me aguardava - ou da cura surpreendente que estava por vir.

Por Jerrine Tan

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Fiquei presa sob o corpo de um homem mais de uma vez.

Na segunda vez, eu tinha 23 anos, estava numa cama de albergue na Polônia, onde alimentei a raiva de um homem ao me recusar a tomar um drinque com ele. No meio da noite, ele me procurou no dormitório misto do albergue, se colocou em cima de mim e sussurrou: “Esperei por você”.

Eu estava preparada para arrancar seus olhos com minhas chaves se fosse necessário. Chame isso de perda da inocência. É por isso que comecei a praticar Krav Maga, depois Muay Thai, e é por isso que adoro aulas de autodefesa e artes marciais. Conto esta história com orgulho: “Um homem me imobilizou em minha cama. Ele poderia ter me estuprado. Eu comecei a praticar artes marciais”.

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'Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.' Foto: Brian Rea/The New York Times

Na primeira vez eu tinha 19 anos, com uma fratura no quadril por andar de patins. O verão da minha iniciação não escolhida no sexo. Ele era quatro anos mais velho que eu; nos conhecemos no feriado de Ação de Graças.

Eu sabia que ele estava encantado por mim - minha língua afiada e atrevimento descarado, o tipo de fogo que é um desafio para certos homens que veem isso como uma ameaça a ser combatida. Há homens que não suportam ver uma mulher livre - que ficam ao mesmo tempo encantados e enfurecidos com ela.

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Mas eu não sabia disso na época. Eu era tão jovem, virginal, mas precoce, o tipo de mulher sexualmente inexperiente que constantemente contava piadas sujas e falava sobre sexo. Achei que era um jogo que eu tinha permissão para jogar. Eu não sabia o castigo que me esperava.

Ele me visitava no hospital depois do expediente, suas mãos deslizando por baixo de minha camisola hospitalar. Eu enrijecia de medo e náusea, embora esse modo de ser tocada fosse ainda assim intrigante por sua novidade, fazendo meu corpo tremer de uma maneira que ele provavelmente considerou desejo. Ele tirou muitas coisas de mim naquele verão, muitas estreias.

Ficava lisonjeada e exausta com sua atenção opressiva e era muito inexperiente para reconhecê-la pela manipulação que era. Eu era jovem e curiosa, e ele insistiu, então continuei a vê-lo.

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Outra vez, na casa dele, lembro-me de olhar para minhas muletas - testemunhas desamparadas - apoiadas no canto do quarto quando ele me prendeu em sua cama, e como eu sussurrei para ele parar, me movendo para proteger meu quadril. No final, ele não me estuprou. Eu não tinha sido divertida, uma estraga-prazeres. Ele sorriu para meus pais quando eles foram me buscar.

Meu quadril ficou bom, mas esse contato com a agressão sexual me levou a um colapso que durante anos não consegui reconhecer como tal. Tornei-me estranha para mim mesma, sem vontade e incapaz de me tocar. Uma experiência de recuperação com Os Monólogos da Vagina e aulas de FemSex quando era estudante universitária me colocaram no caminho da cura. Mas eu estava ansiosa por não estar me curando rápido o suficiente (o que é exatamente a maneira errada de pensar sobre a cura).

Procurei experiências sexuais, tentando recuperar algum controle. Num clube de bondage, deixei me amarrarem e chicotearem. Fui seduzida pela confiança radical e pelo consentimento que esses espaços prometiam. Parte disso foi libertador, mas, pensando bem, eu também estava negligentemente iludida.

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Quando, num canto escuro de uma boate, sem nenhum aviso, um estranho rapidamente deslocou meu ombro do lugar e o recolocou (ou assim ele afirmou), finalmente não fiquei chocada, mas triste. Quão casualmente, quão calmamente a violência atinge os homens mais comuns.

Ao longo dos anos, desmoronei em diferentes momentos: quando Donald Trump se tornou presidente, mesmo depois de se gabar de agarrar mulheres sempre que queria; quando a Dra. Christine Blasey Ford deu seu testemunho; quando Brett Kavanaugh foi confirmado.

Cada vez, eu chorava e me enfurecia enquanto meu parceiro de 10 anos me abraçava, seu abraço permitindo a tempestade de minhas emoções. Eu me sentia tão desconsolada por ele ter que lidar comigo, essa pessoa quebrada que outra pessoa havia quebrado. Ele afastaria meu medo com amor, prometeu, daquela maneira ingênua e desesperada com que prometemos o impossível àqueles que amamos.

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Nas artes marciais, encontrei alguma vingança e controle. Eu estava me transformando em minha própria protetora, minha própria arma. E cumpriu outra função gratificante: permitiu-me alimentar a fantasia da retaliação. Agora eu era o árbitro da justiça caso o mal me seguisse para casa. Embora eu nunca espere que isso se torne realidade, a fantasia afasta os espíritos assustadores do trauma.

Meu marido e eu fomos amigos por anos antes de nos envolvermos romanticamente. Ele sabia tudo sobre o meu passado, cada caso, cada fantasma. Depois de três anos de namoro à distância, ele deixou seu emprego na área de finanças em Singapura para ficar comigo em Rhode Island e seguir sua paixão, o ciclismo competitivo, até que um terrível acidente encerrou sua carreira no ciclismo. Quando nos mudamos para Hong Kong durante a pandemia para meu trabalho atual, ele encontrou uma nova paixão: o jiu-jitsu brasileiro. Quanto a mim, voltei a treinar Muay Thai.

Durante um ano de restrições severas por conta da Covid em Hong Kong, os nossos compromissos de treino físico mantiveram-nos sãos, embora os praticássemos separadamente. Este ano decidimos tirar férias, indo para um retiro que oferecia aulas de Muay Thai e jiu-jitsu brasileiro. Ele achou que seria divertido nos envolvermos no esporte um do outro. Ele queria me ensinar o que ele aprendeu a amar.

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Quando ele facilmente me imobilizou durante nossa primeira aula, tive uma revelação estúpida. Em todos os anos que passamos juntos, não consegui compreendê-lo como ele era - extremamente forte e em boa forma. Eu sabia disso em algum nível, é claro. Atleta de resistência ao longo da vida, ele foi ciclista nacional de Singapura, competindo no Campeonato Mundial de Ciclismo, e seus amigos do jiu-jitsu comentam frequentemente sobre sua resistência e força.

Nada disso foi registrado porque eu nunca tinha encontrado o corpo dele dessa forma. Ali estava o homem doce que compartilha minha cama e ajusta meus óculos quando eles escorregam pelo meu nariz, cuja destreza física eu observei melhor no uso hábil dos hashis, levantando a bochecha delicada do peixe cozido no vapor - aquela parte valiosa, que ele sempre guardava para mim.

No jiu-jitsu brasileiro, o primeiro objetivo geralmente é “passar a guarda”, passando pelos joelhos do oponente para estabelecer uma posição mais dominante, muitas vezes montando-o. No instante em que senti o peso dele sobre mim, senti meu corpo sendo empurrado contra minha vontade, voltei àqueles terríveis momentos de desamparo, senti o gosto ácido involuntário do medo em meu rosto.

Nunca me ocorreu que meu marido pudesse ser capaz de violência da mesma forma que esquecemos que os animais, por mais fofos ou domesticados que sejam, são animais. Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.

Então aquela memória estalou, como uma falha na matriz, um programa sendo substituído por outro.

Sobre mim havia um corpo assustadoramente forte, mas que eu conhecia intimamente, pertencente a um homem que me ama. Seu corpo, capaz de tanta força, só fez coisas boas com o meu. Meu corpo, vibrando de estresse e adrenalina, começou a tremer de desejo. Aqui era meu lugar de refúgio e consolo. Aqui, neste recanto, onde coloco a minha cabeça como se fosse uma pergunta, e ele responde com a constante batida do seu coração. Seu golpe avassalador de jiu-jitsu era algo que eu só havia experimentado como um abraço.

Aqui estava o homem que me disse que iria afastar meu medo com amor. Presa sob ele, enquanto o antigo pavor subia e depois diminuía em meu peito, percebi que ele realmente tinha conseguido. Como uma ostra, ele levou a dor dolorosa do meu passado para o santuário do seu abraço e transformou-a numa pérola que estava me apresentando.

Qualquer pessoa que tenha estremecido na sombra fria de uma agressão sabe que a paranoia duradoura reside no conhecimento da facilidade com que a violência pode explodir, de como a paixão descreve o amor, mas também a raiva, de como as pessoas mais próximas de nós podem nos prejudicar. No entanto, através da engenharia reversa deste encontro de violência em nossa sessão de jiu-jitsu, transformamos aquela fronteira suspeita no local da minha cura.

Sempre descartei as promessas de meu marido de me proteger em meus momentos de desespero porque presumi que ele queria dizer que estava preparado para fazer isso fisicamente, um envolvimento com a masculinidade que não gosto. Mas eu não tinha entendido o que ele queria dizer.

Sua promessa de proteção nunca implicou vingança ou violência, apenas sua convicção de que amar alguém inabalavelmente poderia ser transformador. Apenas aquela promessa impossível, de estar comigo nos meus piores dias e memórias - não para apagar a mancha escura do meu passado, mas para ir lá comigo e trazê-la para a luz. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Fiquei presa sob o corpo de um homem mais de uma vez.

Na segunda vez, eu tinha 23 anos, estava numa cama de albergue na Polônia, onde alimentei a raiva de um homem ao me recusar a tomar um drinque com ele. No meio da noite, ele me procurou no dormitório misto do albergue, se colocou em cima de mim e sussurrou: “Esperei por você”.

Eu estava preparada para arrancar seus olhos com minhas chaves se fosse necessário. Chame isso de perda da inocência. É por isso que comecei a praticar Krav Maga, depois Muay Thai, e é por isso que adoro aulas de autodefesa e artes marciais. Conto esta história com orgulho: “Um homem me imobilizou em minha cama. Ele poderia ter me estuprado. Eu comecei a praticar artes marciais”.

'Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.' Foto: Brian Rea/The New York Times

Na primeira vez eu tinha 19 anos, com uma fratura no quadril por andar de patins. O verão da minha iniciação não escolhida no sexo. Ele era quatro anos mais velho que eu; nos conhecemos no feriado de Ação de Graças.

Eu sabia que ele estava encantado por mim - minha língua afiada e atrevimento descarado, o tipo de fogo que é um desafio para certos homens que veem isso como uma ameaça a ser combatida. Há homens que não suportam ver uma mulher livre - que ficam ao mesmo tempo encantados e enfurecidos com ela.

Mas eu não sabia disso na época. Eu era tão jovem, virginal, mas precoce, o tipo de mulher sexualmente inexperiente que constantemente contava piadas sujas e falava sobre sexo. Achei que era um jogo que eu tinha permissão para jogar. Eu não sabia o castigo que me esperava.

Ele me visitava no hospital depois do expediente, suas mãos deslizando por baixo de minha camisola hospitalar. Eu enrijecia de medo e náusea, embora esse modo de ser tocada fosse ainda assim intrigante por sua novidade, fazendo meu corpo tremer de uma maneira que ele provavelmente considerou desejo. Ele tirou muitas coisas de mim naquele verão, muitas estreias.

Ficava lisonjeada e exausta com sua atenção opressiva e era muito inexperiente para reconhecê-la pela manipulação que era. Eu era jovem e curiosa, e ele insistiu, então continuei a vê-lo.

Outra vez, na casa dele, lembro-me de olhar para minhas muletas - testemunhas desamparadas - apoiadas no canto do quarto quando ele me prendeu em sua cama, e como eu sussurrei para ele parar, me movendo para proteger meu quadril. No final, ele não me estuprou. Eu não tinha sido divertida, uma estraga-prazeres. Ele sorriu para meus pais quando eles foram me buscar.

Meu quadril ficou bom, mas esse contato com a agressão sexual me levou a um colapso que durante anos não consegui reconhecer como tal. Tornei-me estranha para mim mesma, sem vontade e incapaz de me tocar. Uma experiência de recuperação com Os Monólogos da Vagina e aulas de FemSex quando era estudante universitária me colocaram no caminho da cura. Mas eu estava ansiosa por não estar me curando rápido o suficiente (o que é exatamente a maneira errada de pensar sobre a cura).

Procurei experiências sexuais, tentando recuperar algum controle. Num clube de bondage, deixei me amarrarem e chicotearem. Fui seduzida pela confiança radical e pelo consentimento que esses espaços prometiam. Parte disso foi libertador, mas, pensando bem, eu também estava negligentemente iludida.

Quando, num canto escuro de uma boate, sem nenhum aviso, um estranho rapidamente deslocou meu ombro do lugar e o recolocou (ou assim ele afirmou), finalmente não fiquei chocada, mas triste. Quão casualmente, quão calmamente a violência atinge os homens mais comuns.

Ao longo dos anos, desmoronei em diferentes momentos: quando Donald Trump se tornou presidente, mesmo depois de se gabar de agarrar mulheres sempre que queria; quando a Dra. Christine Blasey Ford deu seu testemunho; quando Brett Kavanaugh foi confirmado.

Cada vez, eu chorava e me enfurecia enquanto meu parceiro de 10 anos me abraçava, seu abraço permitindo a tempestade de minhas emoções. Eu me sentia tão desconsolada por ele ter que lidar comigo, essa pessoa quebrada que outra pessoa havia quebrado. Ele afastaria meu medo com amor, prometeu, daquela maneira ingênua e desesperada com que prometemos o impossível àqueles que amamos.

Nas artes marciais, encontrei alguma vingança e controle. Eu estava me transformando em minha própria protetora, minha própria arma. E cumpriu outra função gratificante: permitiu-me alimentar a fantasia da retaliação. Agora eu era o árbitro da justiça caso o mal me seguisse para casa. Embora eu nunca espere que isso se torne realidade, a fantasia afasta os espíritos assustadores do trauma.

Meu marido e eu fomos amigos por anos antes de nos envolvermos romanticamente. Ele sabia tudo sobre o meu passado, cada caso, cada fantasma. Depois de três anos de namoro à distância, ele deixou seu emprego na área de finanças em Singapura para ficar comigo em Rhode Island e seguir sua paixão, o ciclismo competitivo, até que um terrível acidente encerrou sua carreira no ciclismo. Quando nos mudamos para Hong Kong durante a pandemia para meu trabalho atual, ele encontrou uma nova paixão: o jiu-jitsu brasileiro. Quanto a mim, voltei a treinar Muay Thai.

Durante um ano de restrições severas por conta da Covid em Hong Kong, os nossos compromissos de treino físico mantiveram-nos sãos, embora os praticássemos separadamente. Este ano decidimos tirar férias, indo para um retiro que oferecia aulas de Muay Thai e jiu-jitsu brasileiro. Ele achou que seria divertido nos envolvermos no esporte um do outro. Ele queria me ensinar o que ele aprendeu a amar.

Quando ele facilmente me imobilizou durante nossa primeira aula, tive uma revelação estúpida. Em todos os anos que passamos juntos, não consegui compreendê-lo como ele era - extremamente forte e em boa forma. Eu sabia disso em algum nível, é claro. Atleta de resistência ao longo da vida, ele foi ciclista nacional de Singapura, competindo no Campeonato Mundial de Ciclismo, e seus amigos do jiu-jitsu comentam frequentemente sobre sua resistência e força.

Nada disso foi registrado porque eu nunca tinha encontrado o corpo dele dessa forma. Ali estava o homem doce que compartilha minha cama e ajusta meus óculos quando eles escorregam pelo meu nariz, cuja destreza física eu observei melhor no uso hábil dos hashis, levantando a bochecha delicada do peixe cozido no vapor - aquela parte valiosa, que ele sempre guardava para mim.

No jiu-jitsu brasileiro, o primeiro objetivo geralmente é “passar a guarda”, passando pelos joelhos do oponente para estabelecer uma posição mais dominante, muitas vezes montando-o. No instante em que senti o peso dele sobre mim, senti meu corpo sendo empurrado contra minha vontade, voltei àqueles terríveis momentos de desamparo, senti o gosto ácido involuntário do medo em meu rosto.

Nunca me ocorreu que meu marido pudesse ser capaz de violência da mesma forma que esquecemos que os animais, por mais fofos ou domesticados que sejam, são animais. Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.

Então aquela memória estalou, como uma falha na matriz, um programa sendo substituído por outro.

Sobre mim havia um corpo assustadoramente forte, mas que eu conhecia intimamente, pertencente a um homem que me ama. Seu corpo, capaz de tanta força, só fez coisas boas com o meu. Meu corpo, vibrando de estresse e adrenalina, começou a tremer de desejo. Aqui era meu lugar de refúgio e consolo. Aqui, neste recanto, onde coloco a minha cabeça como se fosse uma pergunta, e ele responde com a constante batida do seu coração. Seu golpe avassalador de jiu-jitsu era algo que eu só havia experimentado como um abraço.

Aqui estava o homem que me disse que iria afastar meu medo com amor. Presa sob ele, enquanto o antigo pavor subia e depois diminuía em meu peito, percebi que ele realmente tinha conseguido. Como uma ostra, ele levou a dor dolorosa do meu passado para o santuário do seu abraço e transformou-a numa pérola que estava me apresentando.

Qualquer pessoa que tenha estremecido na sombra fria de uma agressão sabe que a paranoia duradoura reside no conhecimento da facilidade com que a violência pode explodir, de como a paixão descreve o amor, mas também a raiva, de como as pessoas mais próximas de nós podem nos prejudicar. No entanto, através da engenharia reversa deste encontro de violência em nossa sessão de jiu-jitsu, transformamos aquela fronteira suspeita no local da minha cura.

Sempre descartei as promessas de meu marido de me proteger em meus momentos de desespero porque presumi que ele queria dizer que estava preparado para fazer isso fisicamente, um envolvimento com a masculinidade que não gosto. Mas eu não tinha entendido o que ele queria dizer.

Sua promessa de proteção nunca implicou vingança ou violência, apenas sua convicção de que amar alguém inabalavelmente poderia ser transformador. Apenas aquela promessa impossível, de estar comigo nos meus piores dias e memórias - não para apagar a mancha escura do meu passado, mas para ir lá comigo e trazê-la para a luz. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Fiquei presa sob o corpo de um homem mais de uma vez.

Na segunda vez, eu tinha 23 anos, estava numa cama de albergue na Polônia, onde alimentei a raiva de um homem ao me recusar a tomar um drinque com ele. No meio da noite, ele me procurou no dormitório misto do albergue, se colocou em cima de mim e sussurrou: “Esperei por você”.

Eu estava preparada para arrancar seus olhos com minhas chaves se fosse necessário. Chame isso de perda da inocência. É por isso que comecei a praticar Krav Maga, depois Muay Thai, e é por isso que adoro aulas de autodefesa e artes marciais. Conto esta história com orgulho: “Um homem me imobilizou em minha cama. Ele poderia ter me estuprado. Eu comecei a praticar artes marciais”.

'Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.' Foto: Brian Rea/The New York Times

Na primeira vez eu tinha 19 anos, com uma fratura no quadril por andar de patins. O verão da minha iniciação não escolhida no sexo. Ele era quatro anos mais velho que eu; nos conhecemos no feriado de Ação de Graças.

Eu sabia que ele estava encantado por mim - minha língua afiada e atrevimento descarado, o tipo de fogo que é um desafio para certos homens que veem isso como uma ameaça a ser combatida. Há homens que não suportam ver uma mulher livre - que ficam ao mesmo tempo encantados e enfurecidos com ela.

Mas eu não sabia disso na época. Eu era tão jovem, virginal, mas precoce, o tipo de mulher sexualmente inexperiente que constantemente contava piadas sujas e falava sobre sexo. Achei que era um jogo que eu tinha permissão para jogar. Eu não sabia o castigo que me esperava.

Ele me visitava no hospital depois do expediente, suas mãos deslizando por baixo de minha camisola hospitalar. Eu enrijecia de medo e náusea, embora esse modo de ser tocada fosse ainda assim intrigante por sua novidade, fazendo meu corpo tremer de uma maneira que ele provavelmente considerou desejo. Ele tirou muitas coisas de mim naquele verão, muitas estreias.

Ficava lisonjeada e exausta com sua atenção opressiva e era muito inexperiente para reconhecê-la pela manipulação que era. Eu era jovem e curiosa, e ele insistiu, então continuei a vê-lo.

Outra vez, na casa dele, lembro-me de olhar para minhas muletas - testemunhas desamparadas - apoiadas no canto do quarto quando ele me prendeu em sua cama, e como eu sussurrei para ele parar, me movendo para proteger meu quadril. No final, ele não me estuprou. Eu não tinha sido divertida, uma estraga-prazeres. Ele sorriu para meus pais quando eles foram me buscar.

Meu quadril ficou bom, mas esse contato com a agressão sexual me levou a um colapso que durante anos não consegui reconhecer como tal. Tornei-me estranha para mim mesma, sem vontade e incapaz de me tocar. Uma experiência de recuperação com Os Monólogos da Vagina e aulas de FemSex quando era estudante universitária me colocaram no caminho da cura. Mas eu estava ansiosa por não estar me curando rápido o suficiente (o que é exatamente a maneira errada de pensar sobre a cura).

Procurei experiências sexuais, tentando recuperar algum controle. Num clube de bondage, deixei me amarrarem e chicotearem. Fui seduzida pela confiança radical e pelo consentimento que esses espaços prometiam. Parte disso foi libertador, mas, pensando bem, eu também estava negligentemente iludida.

Quando, num canto escuro de uma boate, sem nenhum aviso, um estranho rapidamente deslocou meu ombro do lugar e o recolocou (ou assim ele afirmou), finalmente não fiquei chocada, mas triste. Quão casualmente, quão calmamente a violência atinge os homens mais comuns.

Ao longo dos anos, desmoronei em diferentes momentos: quando Donald Trump se tornou presidente, mesmo depois de se gabar de agarrar mulheres sempre que queria; quando a Dra. Christine Blasey Ford deu seu testemunho; quando Brett Kavanaugh foi confirmado.

Cada vez, eu chorava e me enfurecia enquanto meu parceiro de 10 anos me abraçava, seu abraço permitindo a tempestade de minhas emoções. Eu me sentia tão desconsolada por ele ter que lidar comigo, essa pessoa quebrada que outra pessoa havia quebrado. Ele afastaria meu medo com amor, prometeu, daquela maneira ingênua e desesperada com que prometemos o impossível àqueles que amamos.

Nas artes marciais, encontrei alguma vingança e controle. Eu estava me transformando em minha própria protetora, minha própria arma. E cumpriu outra função gratificante: permitiu-me alimentar a fantasia da retaliação. Agora eu era o árbitro da justiça caso o mal me seguisse para casa. Embora eu nunca espere que isso se torne realidade, a fantasia afasta os espíritos assustadores do trauma.

Meu marido e eu fomos amigos por anos antes de nos envolvermos romanticamente. Ele sabia tudo sobre o meu passado, cada caso, cada fantasma. Depois de três anos de namoro à distância, ele deixou seu emprego na área de finanças em Singapura para ficar comigo em Rhode Island e seguir sua paixão, o ciclismo competitivo, até que um terrível acidente encerrou sua carreira no ciclismo. Quando nos mudamos para Hong Kong durante a pandemia para meu trabalho atual, ele encontrou uma nova paixão: o jiu-jitsu brasileiro. Quanto a mim, voltei a treinar Muay Thai.

Durante um ano de restrições severas por conta da Covid em Hong Kong, os nossos compromissos de treino físico mantiveram-nos sãos, embora os praticássemos separadamente. Este ano decidimos tirar férias, indo para um retiro que oferecia aulas de Muay Thai e jiu-jitsu brasileiro. Ele achou que seria divertido nos envolvermos no esporte um do outro. Ele queria me ensinar o que ele aprendeu a amar.

Quando ele facilmente me imobilizou durante nossa primeira aula, tive uma revelação estúpida. Em todos os anos que passamos juntos, não consegui compreendê-lo como ele era - extremamente forte e em boa forma. Eu sabia disso em algum nível, é claro. Atleta de resistência ao longo da vida, ele foi ciclista nacional de Singapura, competindo no Campeonato Mundial de Ciclismo, e seus amigos do jiu-jitsu comentam frequentemente sobre sua resistência e força.

Nada disso foi registrado porque eu nunca tinha encontrado o corpo dele dessa forma. Ali estava o homem doce que compartilha minha cama e ajusta meus óculos quando eles escorregam pelo meu nariz, cuja destreza física eu observei melhor no uso hábil dos hashis, levantando a bochecha delicada do peixe cozido no vapor - aquela parte valiosa, que ele sempre guardava para mim.

No jiu-jitsu brasileiro, o primeiro objetivo geralmente é “passar a guarda”, passando pelos joelhos do oponente para estabelecer uma posição mais dominante, muitas vezes montando-o. No instante em que senti o peso dele sobre mim, senti meu corpo sendo empurrado contra minha vontade, voltei àqueles terríveis momentos de desamparo, senti o gosto ácido involuntário do medo em meu rosto.

Nunca me ocorreu que meu marido pudesse ser capaz de violência da mesma forma que esquecemos que os animais, por mais fofos ou domesticados que sejam, são animais. Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.

Então aquela memória estalou, como uma falha na matriz, um programa sendo substituído por outro.

Sobre mim havia um corpo assustadoramente forte, mas que eu conhecia intimamente, pertencente a um homem que me ama. Seu corpo, capaz de tanta força, só fez coisas boas com o meu. Meu corpo, vibrando de estresse e adrenalina, começou a tremer de desejo. Aqui era meu lugar de refúgio e consolo. Aqui, neste recanto, onde coloco a minha cabeça como se fosse uma pergunta, e ele responde com a constante batida do seu coração. Seu golpe avassalador de jiu-jitsu era algo que eu só havia experimentado como um abraço.

Aqui estava o homem que me disse que iria afastar meu medo com amor. Presa sob ele, enquanto o antigo pavor subia e depois diminuía em meu peito, percebi que ele realmente tinha conseguido. Como uma ostra, ele levou a dor dolorosa do meu passado para o santuário do seu abraço e transformou-a numa pérola que estava me apresentando.

Qualquer pessoa que tenha estremecido na sombra fria de uma agressão sabe que a paranoia duradoura reside no conhecimento da facilidade com que a violência pode explodir, de como a paixão descreve o amor, mas também a raiva, de como as pessoas mais próximas de nós podem nos prejudicar. No entanto, através da engenharia reversa deste encontro de violência em nossa sessão de jiu-jitsu, transformamos aquela fronteira suspeita no local da minha cura.

Sempre descartei as promessas de meu marido de me proteger em meus momentos de desespero porque presumi que ele queria dizer que estava preparado para fazer isso fisicamente, um envolvimento com a masculinidade que não gosto. Mas eu não tinha entendido o que ele queria dizer.

Sua promessa de proteção nunca implicou vingança ou violência, apenas sua convicção de que amar alguém inabalavelmente poderia ser transformador. Apenas aquela promessa impossível, de estar comigo nos meus piores dias e memórias - não para apagar a mancha escura do meu passado, mas para ir lá comigo e trazê-la para a luz. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Fiquei presa sob o corpo de um homem mais de uma vez.

Na segunda vez, eu tinha 23 anos, estava numa cama de albergue na Polônia, onde alimentei a raiva de um homem ao me recusar a tomar um drinque com ele. No meio da noite, ele me procurou no dormitório misto do albergue, se colocou em cima de mim e sussurrou: “Esperei por você”.

Eu estava preparada para arrancar seus olhos com minhas chaves se fosse necessário. Chame isso de perda da inocência. É por isso que comecei a praticar Krav Maga, depois Muay Thai, e é por isso que adoro aulas de autodefesa e artes marciais. Conto esta história com orgulho: “Um homem me imobilizou em minha cama. Ele poderia ter me estuprado. Eu comecei a praticar artes marciais”.

'Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.' Foto: Brian Rea/The New York Times

Na primeira vez eu tinha 19 anos, com uma fratura no quadril por andar de patins. O verão da minha iniciação não escolhida no sexo. Ele era quatro anos mais velho que eu; nos conhecemos no feriado de Ação de Graças.

Eu sabia que ele estava encantado por mim - minha língua afiada e atrevimento descarado, o tipo de fogo que é um desafio para certos homens que veem isso como uma ameaça a ser combatida. Há homens que não suportam ver uma mulher livre - que ficam ao mesmo tempo encantados e enfurecidos com ela.

Mas eu não sabia disso na época. Eu era tão jovem, virginal, mas precoce, o tipo de mulher sexualmente inexperiente que constantemente contava piadas sujas e falava sobre sexo. Achei que era um jogo que eu tinha permissão para jogar. Eu não sabia o castigo que me esperava.

Ele me visitava no hospital depois do expediente, suas mãos deslizando por baixo de minha camisola hospitalar. Eu enrijecia de medo e náusea, embora esse modo de ser tocada fosse ainda assim intrigante por sua novidade, fazendo meu corpo tremer de uma maneira que ele provavelmente considerou desejo. Ele tirou muitas coisas de mim naquele verão, muitas estreias.

Ficava lisonjeada e exausta com sua atenção opressiva e era muito inexperiente para reconhecê-la pela manipulação que era. Eu era jovem e curiosa, e ele insistiu, então continuei a vê-lo.

Outra vez, na casa dele, lembro-me de olhar para minhas muletas - testemunhas desamparadas - apoiadas no canto do quarto quando ele me prendeu em sua cama, e como eu sussurrei para ele parar, me movendo para proteger meu quadril. No final, ele não me estuprou. Eu não tinha sido divertida, uma estraga-prazeres. Ele sorriu para meus pais quando eles foram me buscar.

Meu quadril ficou bom, mas esse contato com a agressão sexual me levou a um colapso que durante anos não consegui reconhecer como tal. Tornei-me estranha para mim mesma, sem vontade e incapaz de me tocar. Uma experiência de recuperação com Os Monólogos da Vagina e aulas de FemSex quando era estudante universitária me colocaram no caminho da cura. Mas eu estava ansiosa por não estar me curando rápido o suficiente (o que é exatamente a maneira errada de pensar sobre a cura).

Procurei experiências sexuais, tentando recuperar algum controle. Num clube de bondage, deixei me amarrarem e chicotearem. Fui seduzida pela confiança radical e pelo consentimento que esses espaços prometiam. Parte disso foi libertador, mas, pensando bem, eu também estava negligentemente iludida.

Quando, num canto escuro de uma boate, sem nenhum aviso, um estranho rapidamente deslocou meu ombro do lugar e o recolocou (ou assim ele afirmou), finalmente não fiquei chocada, mas triste. Quão casualmente, quão calmamente a violência atinge os homens mais comuns.

Ao longo dos anos, desmoronei em diferentes momentos: quando Donald Trump se tornou presidente, mesmo depois de se gabar de agarrar mulheres sempre que queria; quando a Dra. Christine Blasey Ford deu seu testemunho; quando Brett Kavanaugh foi confirmado.

Cada vez, eu chorava e me enfurecia enquanto meu parceiro de 10 anos me abraçava, seu abraço permitindo a tempestade de minhas emoções. Eu me sentia tão desconsolada por ele ter que lidar comigo, essa pessoa quebrada que outra pessoa havia quebrado. Ele afastaria meu medo com amor, prometeu, daquela maneira ingênua e desesperada com que prometemos o impossível àqueles que amamos.

Nas artes marciais, encontrei alguma vingança e controle. Eu estava me transformando em minha própria protetora, minha própria arma. E cumpriu outra função gratificante: permitiu-me alimentar a fantasia da retaliação. Agora eu era o árbitro da justiça caso o mal me seguisse para casa. Embora eu nunca espere que isso se torne realidade, a fantasia afasta os espíritos assustadores do trauma.

Meu marido e eu fomos amigos por anos antes de nos envolvermos romanticamente. Ele sabia tudo sobre o meu passado, cada caso, cada fantasma. Depois de três anos de namoro à distância, ele deixou seu emprego na área de finanças em Singapura para ficar comigo em Rhode Island e seguir sua paixão, o ciclismo competitivo, até que um terrível acidente encerrou sua carreira no ciclismo. Quando nos mudamos para Hong Kong durante a pandemia para meu trabalho atual, ele encontrou uma nova paixão: o jiu-jitsu brasileiro. Quanto a mim, voltei a treinar Muay Thai.

Durante um ano de restrições severas por conta da Covid em Hong Kong, os nossos compromissos de treino físico mantiveram-nos sãos, embora os praticássemos separadamente. Este ano decidimos tirar férias, indo para um retiro que oferecia aulas de Muay Thai e jiu-jitsu brasileiro. Ele achou que seria divertido nos envolvermos no esporte um do outro. Ele queria me ensinar o que ele aprendeu a amar.

Quando ele facilmente me imobilizou durante nossa primeira aula, tive uma revelação estúpida. Em todos os anos que passamos juntos, não consegui compreendê-lo como ele era - extremamente forte e em boa forma. Eu sabia disso em algum nível, é claro. Atleta de resistência ao longo da vida, ele foi ciclista nacional de Singapura, competindo no Campeonato Mundial de Ciclismo, e seus amigos do jiu-jitsu comentam frequentemente sobre sua resistência e força.

Nada disso foi registrado porque eu nunca tinha encontrado o corpo dele dessa forma. Ali estava o homem doce que compartilha minha cama e ajusta meus óculos quando eles escorregam pelo meu nariz, cuja destreza física eu observei melhor no uso hábil dos hashis, levantando a bochecha delicada do peixe cozido no vapor - aquela parte valiosa, que ele sempre guardava para mim.

No jiu-jitsu brasileiro, o primeiro objetivo geralmente é “passar a guarda”, passando pelos joelhos do oponente para estabelecer uma posição mais dominante, muitas vezes montando-o. No instante em que senti o peso dele sobre mim, senti meu corpo sendo empurrado contra minha vontade, voltei àqueles terríveis momentos de desamparo, senti o gosto ácido involuntário do medo em meu rosto.

Nunca me ocorreu que meu marido pudesse ser capaz de violência da mesma forma que esquecemos que os animais, por mais fofos ou domesticados que sejam, são animais. Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.

Então aquela memória estalou, como uma falha na matriz, um programa sendo substituído por outro.

Sobre mim havia um corpo assustadoramente forte, mas que eu conhecia intimamente, pertencente a um homem que me ama. Seu corpo, capaz de tanta força, só fez coisas boas com o meu. Meu corpo, vibrando de estresse e adrenalina, começou a tremer de desejo. Aqui era meu lugar de refúgio e consolo. Aqui, neste recanto, onde coloco a minha cabeça como se fosse uma pergunta, e ele responde com a constante batida do seu coração. Seu golpe avassalador de jiu-jitsu era algo que eu só havia experimentado como um abraço.

Aqui estava o homem que me disse que iria afastar meu medo com amor. Presa sob ele, enquanto o antigo pavor subia e depois diminuía em meu peito, percebi que ele realmente tinha conseguido. Como uma ostra, ele levou a dor dolorosa do meu passado para o santuário do seu abraço e transformou-a numa pérola que estava me apresentando.

Qualquer pessoa que tenha estremecido na sombra fria de uma agressão sabe que a paranoia duradoura reside no conhecimento da facilidade com que a violência pode explodir, de como a paixão descreve o amor, mas também a raiva, de como as pessoas mais próximas de nós podem nos prejudicar. No entanto, através da engenharia reversa deste encontro de violência em nossa sessão de jiu-jitsu, transformamos aquela fronteira suspeita no local da minha cura.

Sempre descartei as promessas de meu marido de me proteger em meus momentos de desespero porque presumi que ele queria dizer que estava preparado para fazer isso fisicamente, um envolvimento com a masculinidade que não gosto. Mas eu não tinha entendido o que ele queria dizer.

Sua promessa de proteção nunca implicou vingança ou violência, apenas sua convicção de que amar alguém inabalavelmente poderia ser transformador. Apenas aquela promessa impossível, de estar comigo nos meus piores dias e memórias - não para apagar a mancha escura do meu passado, mas para ir lá comigo e trazê-la para a luz. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Fiquei presa sob o corpo de um homem mais de uma vez.

Na segunda vez, eu tinha 23 anos, estava numa cama de albergue na Polônia, onde alimentei a raiva de um homem ao me recusar a tomar um drinque com ele. No meio da noite, ele me procurou no dormitório misto do albergue, se colocou em cima de mim e sussurrou: “Esperei por você”.

Eu estava preparada para arrancar seus olhos com minhas chaves se fosse necessário. Chame isso de perda da inocência. É por isso que comecei a praticar Krav Maga, depois Muay Thai, e é por isso que adoro aulas de autodefesa e artes marciais. Conto esta história com orgulho: “Um homem me imobilizou em minha cama. Ele poderia ter me estuprado. Eu comecei a praticar artes marciais”.

'Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.' Foto: Brian Rea/The New York Times

Na primeira vez eu tinha 19 anos, com uma fratura no quadril por andar de patins. O verão da minha iniciação não escolhida no sexo. Ele era quatro anos mais velho que eu; nos conhecemos no feriado de Ação de Graças.

Eu sabia que ele estava encantado por mim - minha língua afiada e atrevimento descarado, o tipo de fogo que é um desafio para certos homens que veem isso como uma ameaça a ser combatida. Há homens que não suportam ver uma mulher livre - que ficam ao mesmo tempo encantados e enfurecidos com ela.

Mas eu não sabia disso na época. Eu era tão jovem, virginal, mas precoce, o tipo de mulher sexualmente inexperiente que constantemente contava piadas sujas e falava sobre sexo. Achei que era um jogo que eu tinha permissão para jogar. Eu não sabia o castigo que me esperava.

Ele me visitava no hospital depois do expediente, suas mãos deslizando por baixo de minha camisola hospitalar. Eu enrijecia de medo e náusea, embora esse modo de ser tocada fosse ainda assim intrigante por sua novidade, fazendo meu corpo tremer de uma maneira que ele provavelmente considerou desejo. Ele tirou muitas coisas de mim naquele verão, muitas estreias.

Ficava lisonjeada e exausta com sua atenção opressiva e era muito inexperiente para reconhecê-la pela manipulação que era. Eu era jovem e curiosa, e ele insistiu, então continuei a vê-lo.

Outra vez, na casa dele, lembro-me de olhar para minhas muletas - testemunhas desamparadas - apoiadas no canto do quarto quando ele me prendeu em sua cama, e como eu sussurrei para ele parar, me movendo para proteger meu quadril. No final, ele não me estuprou. Eu não tinha sido divertida, uma estraga-prazeres. Ele sorriu para meus pais quando eles foram me buscar.

Meu quadril ficou bom, mas esse contato com a agressão sexual me levou a um colapso que durante anos não consegui reconhecer como tal. Tornei-me estranha para mim mesma, sem vontade e incapaz de me tocar. Uma experiência de recuperação com Os Monólogos da Vagina e aulas de FemSex quando era estudante universitária me colocaram no caminho da cura. Mas eu estava ansiosa por não estar me curando rápido o suficiente (o que é exatamente a maneira errada de pensar sobre a cura).

Procurei experiências sexuais, tentando recuperar algum controle. Num clube de bondage, deixei me amarrarem e chicotearem. Fui seduzida pela confiança radical e pelo consentimento que esses espaços prometiam. Parte disso foi libertador, mas, pensando bem, eu também estava negligentemente iludida.

Quando, num canto escuro de uma boate, sem nenhum aviso, um estranho rapidamente deslocou meu ombro do lugar e o recolocou (ou assim ele afirmou), finalmente não fiquei chocada, mas triste. Quão casualmente, quão calmamente a violência atinge os homens mais comuns.

Ao longo dos anos, desmoronei em diferentes momentos: quando Donald Trump se tornou presidente, mesmo depois de se gabar de agarrar mulheres sempre que queria; quando a Dra. Christine Blasey Ford deu seu testemunho; quando Brett Kavanaugh foi confirmado.

Cada vez, eu chorava e me enfurecia enquanto meu parceiro de 10 anos me abraçava, seu abraço permitindo a tempestade de minhas emoções. Eu me sentia tão desconsolada por ele ter que lidar comigo, essa pessoa quebrada que outra pessoa havia quebrado. Ele afastaria meu medo com amor, prometeu, daquela maneira ingênua e desesperada com que prometemos o impossível àqueles que amamos.

Nas artes marciais, encontrei alguma vingança e controle. Eu estava me transformando em minha própria protetora, minha própria arma. E cumpriu outra função gratificante: permitiu-me alimentar a fantasia da retaliação. Agora eu era o árbitro da justiça caso o mal me seguisse para casa. Embora eu nunca espere que isso se torne realidade, a fantasia afasta os espíritos assustadores do trauma.

Meu marido e eu fomos amigos por anos antes de nos envolvermos romanticamente. Ele sabia tudo sobre o meu passado, cada caso, cada fantasma. Depois de três anos de namoro à distância, ele deixou seu emprego na área de finanças em Singapura para ficar comigo em Rhode Island e seguir sua paixão, o ciclismo competitivo, até que um terrível acidente encerrou sua carreira no ciclismo. Quando nos mudamos para Hong Kong durante a pandemia para meu trabalho atual, ele encontrou uma nova paixão: o jiu-jitsu brasileiro. Quanto a mim, voltei a treinar Muay Thai.

Durante um ano de restrições severas por conta da Covid em Hong Kong, os nossos compromissos de treino físico mantiveram-nos sãos, embora os praticássemos separadamente. Este ano decidimos tirar férias, indo para um retiro que oferecia aulas de Muay Thai e jiu-jitsu brasileiro. Ele achou que seria divertido nos envolvermos no esporte um do outro. Ele queria me ensinar o que ele aprendeu a amar.

Quando ele facilmente me imobilizou durante nossa primeira aula, tive uma revelação estúpida. Em todos os anos que passamos juntos, não consegui compreendê-lo como ele era - extremamente forte e em boa forma. Eu sabia disso em algum nível, é claro. Atleta de resistência ao longo da vida, ele foi ciclista nacional de Singapura, competindo no Campeonato Mundial de Ciclismo, e seus amigos do jiu-jitsu comentam frequentemente sobre sua resistência e força.

Nada disso foi registrado porque eu nunca tinha encontrado o corpo dele dessa forma. Ali estava o homem doce que compartilha minha cama e ajusta meus óculos quando eles escorregam pelo meu nariz, cuja destreza física eu observei melhor no uso hábil dos hashis, levantando a bochecha delicada do peixe cozido no vapor - aquela parte valiosa, que ele sempre guardava para mim.

No jiu-jitsu brasileiro, o primeiro objetivo geralmente é “passar a guarda”, passando pelos joelhos do oponente para estabelecer uma posição mais dominante, muitas vezes montando-o. No instante em que senti o peso dele sobre mim, senti meu corpo sendo empurrado contra minha vontade, voltei àqueles terríveis momentos de desamparo, senti o gosto ácido involuntário do medo em meu rosto.

Nunca me ocorreu que meu marido pudesse ser capaz de violência da mesma forma que esquecemos que os animais, por mais fofos ou domesticados que sejam, são animais. Quando ele dominou meu corpo e me prendeu, senti o medo que conhecia muito bem e que não queria sentir novamente.

Então aquela memória estalou, como uma falha na matriz, um programa sendo substituído por outro.

Sobre mim havia um corpo assustadoramente forte, mas que eu conhecia intimamente, pertencente a um homem que me ama. Seu corpo, capaz de tanta força, só fez coisas boas com o meu. Meu corpo, vibrando de estresse e adrenalina, começou a tremer de desejo. Aqui era meu lugar de refúgio e consolo. Aqui, neste recanto, onde coloco a minha cabeça como se fosse uma pergunta, e ele responde com a constante batida do seu coração. Seu golpe avassalador de jiu-jitsu era algo que eu só havia experimentado como um abraço.

Aqui estava o homem que me disse que iria afastar meu medo com amor. Presa sob ele, enquanto o antigo pavor subia e depois diminuía em meu peito, percebi que ele realmente tinha conseguido. Como uma ostra, ele levou a dor dolorosa do meu passado para o santuário do seu abraço e transformou-a numa pérola que estava me apresentando.

Qualquer pessoa que tenha estremecido na sombra fria de uma agressão sabe que a paranoia duradoura reside no conhecimento da facilidade com que a violência pode explodir, de como a paixão descreve o amor, mas também a raiva, de como as pessoas mais próximas de nós podem nos prejudicar. No entanto, através da engenharia reversa deste encontro de violência em nossa sessão de jiu-jitsu, transformamos aquela fronteira suspeita no local da minha cura.

Sempre descartei as promessas de meu marido de me proteger em meus momentos de desespero porque presumi que ele queria dizer que estava preparado para fazer isso fisicamente, um envolvimento com a masculinidade que não gosto. Mas eu não tinha entendido o que ele queria dizer.

Sua promessa de proteção nunca implicou vingança ou violência, apenas sua convicção de que amar alguém inabalavelmente poderia ser transformador. Apenas aquela promessa impossível, de estar comigo nos meus piores dias e memórias - não para apagar a mancha escura do meu passado, mas para ir lá comigo e trazê-la para a luz. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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