Modern Love: Adeus, meu homem idealizado


Eu não queria nada menos do que kismet, o destino. Mas perseguir uma ilusão romântica quase impediu que eu encontrasse o amor

Por Lavinia Spalding
Atualização:

Na noite em que concordei em tentar encontros on-line, disse a minha colega de quarto, Meghan, que eu esperava não encontrar ninguém, porque aquilo não era o tipo de história que eu queria contar.

"Eu me conheço", falei. "Qualquer coisa que não seja kismet não vai funcionar".

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 
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Sempre gostei da palavra kismet. De origem árabe (de ‘qisma’, significa porção), é apenas um sinônimo nerd para destino. Mas desde a minha juventude, acreditei nele, procurei por ele e confiei que o encontraria.

Culpa dos meus pais.

Minha mãe e pai se conheceram em uma festa em Boston, quando ela tinha 22 anos e ele 17. Meu pai era alto e magro com uma barbicha pontuda, e quando ele entrou na festa carregando o seu violão clássico, minha mãe olhou para ele e disse a uma amiga: “Este é para mim. Vou casar com ele”.

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“Melhor apresentá-los, então,” ela disse, levando-a até ele. “Dolly, este é o Wally. Vocês foram feitos um para o outro”.

Meus pais foram para casa juntos naquela noite, e, seis semanas mais tarde, roubaram o carro da minha tia e atravessaram todo o país até São Francisco. Eram beatniks, por isso foram para City Lights Books, onde o proprietário, Lawrence Ferlinghetti, preparou espaguete e vinho e deixou que ficassem uma noite no subsolo da loja.

Mas depois de algum tempo na cidade, o dinheiro acabou, e eles ligaram para a minha avó e mentiram, dizendo que haviam fugido pra se casar. Ela mandou dinheiro e eles voltaram a Boston, onde fingiram ser recém-casados para morarem juntos.

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Cerca de um ano mais tarde, pegaram um carro de dois lugares, Triumph, emprestado de um amigo e foram para a Carolina do Norte, onde puderam casar sem o consentimento dos pais. Ficaram casados 43 anos, até que meu pai morreu em 2004.

Então, o pensamento “nós nos conhecemos on-line” não me deixa empolgada.

Não obstante, perto dos 40, eu nunca havia casado e estava ficando impaciente, por isso compus um longo perfil que incluía meus livros, músicas e filmes preferidos. Quando cheguei à pergunta: “O que você espera de uma relação?”, não me contive.

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“Kismet”, escrevi. “É pedir muito?”

Meghan havia me convencido a começar a ter encontros on-line prometendo que ela o faria comigo. Para me preparar para todas as possibilidades, nós nos registramos em dois lugares: OkCupid (que era grátis) e eHarmony (que definitivamente não era). Logo Meghan começou a ir a encontros, voltando ao nosso apartamento em São Francisco com histórias de falsas declarações e conversas sem graça.

Fiquei em casa. Constatei que os sinais de kismet eram zero (nem mesmo uma coincidência artística ou literária) e me recusei a aceitar menos do que isto.

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Às vezes, Meghan carregava o laptop para o meu quarto. Uma vez ela disse: “Encontrei alguém para você. É bonito e engraçado, mas muito baixinho para mim.” (Eu tenho 1,55m). Outra vez, recebemos a mesma mensagem do mesmo sujeito: “Com licença, mas preciso falar francamente e deixar claro, apesar de você ouvir isso o tempo todo, que você é inegavelmente e sem esforço uma pessoa extremamente atraente.”

Fiquei desencorajada. Pelo que me constava, a internet era o lugar onde o kismet iria morrer.

Então, um dia, notei um sujeito aparentemente bonito, aparentemente inteligente e que dizia fazer tortas. Quem não gosta de um homem bonito, inteligente que faz tortas?" Além disso, ele havia preenchido a resposta “Entrem em contato comigo se..." com "quiserem passear fora da cidade". Eu era uma pessoa que sempre gostava de viajar, sempre querendo sair da cidade - então eu o inclui nos "favoritos".

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Depois de brincarmos de flertar por dois dias, finalmente fiz a pergunta que estava me incomodando: "Você fez uma lista das suas músicas e filmes favoritos, mas nenhum livro. Foi um descuido ou você não lê?"

“A música gravada sempre me emocionou assim como a palavra escrita fala para a maioria”, respondeu.

Fechei o computador. Eu era a filha de proprietários de livraria, uma colecionadora de longa data de primeiras edições assinadas e uma autora. Discutir sobre literatura era o máximo do estímulo. Ler era fundamental para a minha identidade.

Dias mais tarde, ele escreveu: “Parece que você está procurando um leitor ávido, o que é legal. No entanto, você deveria saber que eu sou um nerd da palavra. Sugiro que este assunto seja resolvido com uma partida de Scrabble”.

E começou a introduzir termos de pontuação máxima como "zootaxy" (zootaxia, ciência da classificação dos animais) nas mensagens. O estratagema funcionou; fizemos tênues planos de nos encontrarmos para o Scrabble na semana seguinte.

Duas noites mais tarde, indo para casa depois do meu trabalho de garçonete peguei um ônibus e sentei ao lado de um homem atraente, muito semelhante à imagem do perfil do nerd da palavra. Não tinha certeza, fiquei muito nervosa e não arrisquei uma olhada para confirmar. Além disso, passava da meia-noite em um ônibus público - não era o momento nem o lugar para estudar o rosto de estranhos.

Em vez disso, olhei para o meu celular e não disse nada. Quais são as chances, fiquei pensando, em uma cidade de cerca de 800 mil pessoas? Mas depois de três paradas, quando ele desceu nas proximidades do lugar onde ele me disse que morava, tive certeza.

Pela manhã, mandei uma mensagem para ele pelo OkCupid: “Você estava no ônibus 71 ontem à noite, já bem tarde? Sentei perto de alguém que se parecia curiosamente com a sua foto”.

“Opa”, ele respondeu.

“Caramba”, escrevi.

O nosso primeiro encontro durou 12 horas. Fomos até uma galeria de arte, ao mercado dos produtores rurais e a um café onde jogamos Scrabble. Pareceu feliz quando ganhei por 100 pontos. Naquela noite, jantamos comida etíope com as mãos, depois atravessamos a rua até uma sala de concertos onde ele me levou ao andar superior na seção VIP para ver Meshell Ndegeocello cantar no escuro.

 Todo o nosso caso não constava em um roteiro kismet. Por isso, quando ele continou a não ler romances e, nas semanas seguintes, quando descobrimos mais incompatibilidades - ele não gostava de café, odiava voar, e só me preparou um tipo de torta (de abóbora,a que menos aprecio) -pensei: mas o universo nos aproximou. Então eu lhe daria outra chance.

A chance valeu a pena. Embora ele nunca tomasse café, pesquisou técnicas de preparo e aprendeu a fazer um cafezinho à francesa impecável, que me levava na cama todas as manhãs. Uma vez, quando eu estava prestes a tomar meu primeiro gole, ele entrou correndo: "Ainda não", disse, e deixou cair uma pitada de sal na minha xícara. “Ok, agora”.

Também viajou comigo, pálido e calado, puxando o botão de chamada repetidas vezes para perguntar quanto tempo iria durar a turbulência. Tentou Xanax e Ambien. Nada funcionou, mas ele jurou que a sua ansiedade de avião não interferiria em aventuras futuras.

Eu estava apaixonada e feliz, mas as dúvidas começaram a se manifestar. Ocasionalmente, eu ainda fantasiava a respeito de um homem que tomaria café comigo e lesse romances na cama nas nossas viagens frequentes para a Índia.

 Quando contei isso à terapeuta, ela me disse para fazer "um funeral pela morte da ilusão romântica”.

Numa tarde de fevereiro, ele e eu estávamos jogando Scrabble no parque, procurando no saco das peças a letra Q, puxei um anel. Eu o deixei cair no tabuleiro como se tivesse sido eletrocutada. “O que é isto?”

“É um anel,” ele respondeu.

“E o que está fazendo aqui?”

“Você quer me tornar o homem mais feliz do mundo?” perguntou.

Já fazem oito anos desde que eu me acalmei e consegui ter a presença de espírito de escrever “sim” com as peças do Scrabble.

Meu marido ainda não toma café, mas continua preparando um café francês sublime e ocasionalmente até me leva uma xícara na cama, ligeiramente salgada. Continua não gostando de romances, mas leu seguramente mil livros para o nosso filho de 6 anos, que compartilha da minha paixão pela literatura.

E embora não tenha vencido o medo de voar, nós criamos um sistema: tomamos voos diretos de dia voando com o tempo calmo, e se encontramos uma turbulência, ele engole rapidamente dois copos de vinho tinto e adormece. Ainda não conseguimos ir até a Índia, mas fomos à Itália, Tunísia, Portugal, França, Espanha e Marrocos. Eu até consegui aprender, devagar, a apreciar a torta de abóbora. A sua até é melhor.

Dois anos atrás, comemoramos o aniversário dos 10 anos da noite em que compartilhamos um banco no ônibus 71. Com reservas no nosso restaurante favorito,nos vestimos a caráter e antecipamos o nosso jantar de quatro pratos, vinho fino e conversa ininterrupta. Mas cinco minutos antes da chegada da babá, nosso filhocomeçou a vomitar, então comemoramos em casacom o menino doente aninhado entre nós dois, assistindo a um filme da Disney no sofá.

Adeus ilusão romântica. E boa viagem. Levei muito tempo para compreender que a compatibilidade desafia os algoritmos, e que o kismet tem menos a ver com encontros predestinados e livros favoritos do que com encontrar alguém que não tem medo de enfrentar os próprios medos - e fazer café que ele nem sequer bebe - só para ficar comigo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Na noite em que concordei em tentar encontros on-line, disse a minha colega de quarto, Meghan, que eu esperava não encontrar ninguém, porque aquilo não era o tipo de história que eu queria contar.

"Eu me conheço", falei. "Qualquer coisa que não seja kismet não vai funcionar".

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Sempre gostei da palavra kismet. De origem árabe (de ‘qisma’, significa porção), é apenas um sinônimo nerd para destino. Mas desde a minha juventude, acreditei nele, procurei por ele e confiei que o encontraria.

Culpa dos meus pais.

Minha mãe e pai se conheceram em uma festa em Boston, quando ela tinha 22 anos e ele 17. Meu pai era alto e magro com uma barbicha pontuda, e quando ele entrou na festa carregando o seu violão clássico, minha mãe olhou para ele e disse a uma amiga: “Este é para mim. Vou casar com ele”.

“Melhor apresentá-los, então,” ela disse, levando-a até ele. “Dolly, este é o Wally. Vocês foram feitos um para o outro”.

Meus pais foram para casa juntos naquela noite, e, seis semanas mais tarde, roubaram o carro da minha tia e atravessaram todo o país até São Francisco. Eram beatniks, por isso foram para City Lights Books, onde o proprietário, Lawrence Ferlinghetti, preparou espaguete e vinho e deixou que ficassem uma noite no subsolo da loja.

Mas depois de algum tempo na cidade, o dinheiro acabou, e eles ligaram para a minha avó e mentiram, dizendo que haviam fugido pra se casar. Ela mandou dinheiro e eles voltaram a Boston, onde fingiram ser recém-casados para morarem juntos.

Cerca de um ano mais tarde, pegaram um carro de dois lugares, Triumph, emprestado de um amigo e foram para a Carolina do Norte, onde puderam casar sem o consentimento dos pais. Ficaram casados 43 anos, até que meu pai morreu em 2004.

Então, o pensamento “nós nos conhecemos on-line” não me deixa empolgada.

Não obstante, perto dos 40, eu nunca havia casado e estava ficando impaciente, por isso compus um longo perfil que incluía meus livros, músicas e filmes preferidos. Quando cheguei à pergunta: “O que você espera de uma relação?”, não me contive.

“Kismet”, escrevi. “É pedir muito?”

Meghan havia me convencido a começar a ter encontros on-line prometendo que ela o faria comigo. Para me preparar para todas as possibilidades, nós nos registramos em dois lugares: OkCupid (que era grátis) e eHarmony (que definitivamente não era). Logo Meghan começou a ir a encontros, voltando ao nosso apartamento em São Francisco com histórias de falsas declarações e conversas sem graça.

Fiquei em casa. Constatei que os sinais de kismet eram zero (nem mesmo uma coincidência artística ou literária) e me recusei a aceitar menos do que isto.

Às vezes, Meghan carregava o laptop para o meu quarto. Uma vez ela disse: “Encontrei alguém para você. É bonito e engraçado, mas muito baixinho para mim.” (Eu tenho 1,55m). Outra vez, recebemos a mesma mensagem do mesmo sujeito: “Com licença, mas preciso falar francamente e deixar claro, apesar de você ouvir isso o tempo todo, que você é inegavelmente e sem esforço uma pessoa extremamente atraente.”

Fiquei desencorajada. Pelo que me constava, a internet era o lugar onde o kismet iria morrer.

Então, um dia, notei um sujeito aparentemente bonito, aparentemente inteligente e que dizia fazer tortas. Quem não gosta de um homem bonito, inteligente que faz tortas?" Além disso, ele havia preenchido a resposta “Entrem em contato comigo se..." com "quiserem passear fora da cidade". Eu era uma pessoa que sempre gostava de viajar, sempre querendo sair da cidade - então eu o inclui nos "favoritos".

Depois de brincarmos de flertar por dois dias, finalmente fiz a pergunta que estava me incomodando: "Você fez uma lista das suas músicas e filmes favoritos, mas nenhum livro. Foi um descuido ou você não lê?"

“A música gravada sempre me emocionou assim como a palavra escrita fala para a maioria”, respondeu.

Fechei o computador. Eu era a filha de proprietários de livraria, uma colecionadora de longa data de primeiras edições assinadas e uma autora. Discutir sobre literatura era o máximo do estímulo. Ler era fundamental para a minha identidade.

Dias mais tarde, ele escreveu: “Parece que você está procurando um leitor ávido, o que é legal. No entanto, você deveria saber que eu sou um nerd da palavra. Sugiro que este assunto seja resolvido com uma partida de Scrabble”.

E começou a introduzir termos de pontuação máxima como "zootaxy" (zootaxia, ciência da classificação dos animais) nas mensagens. O estratagema funcionou; fizemos tênues planos de nos encontrarmos para o Scrabble na semana seguinte.

Duas noites mais tarde, indo para casa depois do meu trabalho de garçonete peguei um ônibus e sentei ao lado de um homem atraente, muito semelhante à imagem do perfil do nerd da palavra. Não tinha certeza, fiquei muito nervosa e não arrisquei uma olhada para confirmar. Além disso, passava da meia-noite em um ônibus público - não era o momento nem o lugar para estudar o rosto de estranhos.

Em vez disso, olhei para o meu celular e não disse nada. Quais são as chances, fiquei pensando, em uma cidade de cerca de 800 mil pessoas? Mas depois de três paradas, quando ele desceu nas proximidades do lugar onde ele me disse que morava, tive certeza.

Pela manhã, mandei uma mensagem para ele pelo OkCupid: “Você estava no ônibus 71 ontem à noite, já bem tarde? Sentei perto de alguém que se parecia curiosamente com a sua foto”.

“Opa”, ele respondeu.

“Caramba”, escrevi.

O nosso primeiro encontro durou 12 horas. Fomos até uma galeria de arte, ao mercado dos produtores rurais e a um café onde jogamos Scrabble. Pareceu feliz quando ganhei por 100 pontos. Naquela noite, jantamos comida etíope com as mãos, depois atravessamos a rua até uma sala de concertos onde ele me levou ao andar superior na seção VIP para ver Meshell Ndegeocello cantar no escuro.

 Todo o nosso caso não constava em um roteiro kismet. Por isso, quando ele continou a não ler romances e, nas semanas seguintes, quando descobrimos mais incompatibilidades - ele não gostava de café, odiava voar, e só me preparou um tipo de torta (de abóbora,a que menos aprecio) -pensei: mas o universo nos aproximou. Então eu lhe daria outra chance.

A chance valeu a pena. Embora ele nunca tomasse café, pesquisou técnicas de preparo e aprendeu a fazer um cafezinho à francesa impecável, que me levava na cama todas as manhãs. Uma vez, quando eu estava prestes a tomar meu primeiro gole, ele entrou correndo: "Ainda não", disse, e deixou cair uma pitada de sal na minha xícara. “Ok, agora”.

Também viajou comigo, pálido e calado, puxando o botão de chamada repetidas vezes para perguntar quanto tempo iria durar a turbulência. Tentou Xanax e Ambien. Nada funcionou, mas ele jurou que a sua ansiedade de avião não interferiria em aventuras futuras.

Eu estava apaixonada e feliz, mas as dúvidas começaram a se manifestar. Ocasionalmente, eu ainda fantasiava a respeito de um homem que tomaria café comigo e lesse romances na cama nas nossas viagens frequentes para a Índia.

 Quando contei isso à terapeuta, ela me disse para fazer "um funeral pela morte da ilusão romântica”.

Numa tarde de fevereiro, ele e eu estávamos jogando Scrabble no parque, procurando no saco das peças a letra Q, puxei um anel. Eu o deixei cair no tabuleiro como se tivesse sido eletrocutada. “O que é isto?”

“É um anel,” ele respondeu.

“E o que está fazendo aqui?”

“Você quer me tornar o homem mais feliz do mundo?” perguntou.

Já fazem oito anos desde que eu me acalmei e consegui ter a presença de espírito de escrever “sim” com as peças do Scrabble.

Meu marido ainda não toma café, mas continua preparando um café francês sublime e ocasionalmente até me leva uma xícara na cama, ligeiramente salgada. Continua não gostando de romances, mas leu seguramente mil livros para o nosso filho de 6 anos, que compartilha da minha paixão pela literatura.

E embora não tenha vencido o medo de voar, nós criamos um sistema: tomamos voos diretos de dia voando com o tempo calmo, e se encontramos uma turbulência, ele engole rapidamente dois copos de vinho tinto e adormece. Ainda não conseguimos ir até a Índia, mas fomos à Itália, Tunísia, Portugal, França, Espanha e Marrocos. Eu até consegui aprender, devagar, a apreciar a torta de abóbora. A sua até é melhor.

Dois anos atrás, comemoramos o aniversário dos 10 anos da noite em que compartilhamos um banco no ônibus 71. Com reservas no nosso restaurante favorito,nos vestimos a caráter e antecipamos o nosso jantar de quatro pratos, vinho fino e conversa ininterrupta. Mas cinco minutos antes da chegada da babá, nosso filhocomeçou a vomitar, então comemoramos em casacom o menino doente aninhado entre nós dois, assistindo a um filme da Disney no sofá.

Adeus ilusão romântica. E boa viagem. Levei muito tempo para compreender que a compatibilidade desafia os algoritmos, e que o kismet tem menos a ver com encontros predestinados e livros favoritos do que com encontrar alguém que não tem medo de enfrentar os próprios medos - e fazer café que ele nem sequer bebe - só para ficar comigo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Na noite em que concordei em tentar encontros on-line, disse a minha colega de quarto, Meghan, que eu esperava não encontrar ninguém, porque aquilo não era o tipo de história que eu queria contar.

"Eu me conheço", falei. "Qualquer coisa que não seja kismet não vai funcionar".

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Sempre gostei da palavra kismet. De origem árabe (de ‘qisma’, significa porção), é apenas um sinônimo nerd para destino. Mas desde a minha juventude, acreditei nele, procurei por ele e confiei que o encontraria.

Culpa dos meus pais.

Minha mãe e pai se conheceram em uma festa em Boston, quando ela tinha 22 anos e ele 17. Meu pai era alto e magro com uma barbicha pontuda, e quando ele entrou na festa carregando o seu violão clássico, minha mãe olhou para ele e disse a uma amiga: “Este é para mim. Vou casar com ele”.

“Melhor apresentá-los, então,” ela disse, levando-a até ele. “Dolly, este é o Wally. Vocês foram feitos um para o outro”.

Meus pais foram para casa juntos naquela noite, e, seis semanas mais tarde, roubaram o carro da minha tia e atravessaram todo o país até São Francisco. Eram beatniks, por isso foram para City Lights Books, onde o proprietário, Lawrence Ferlinghetti, preparou espaguete e vinho e deixou que ficassem uma noite no subsolo da loja.

Mas depois de algum tempo na cidade, o dinheiro acabou, e eles ligaram para a minha avó e mentiram, dizendo que haviam fugido pra se casar. Ela mandou dinheiro e eles voltaram a Boston, onde fingiram ser recém-casados para morarem juntos.

Cerca de um ano mais tarde, pegaram um carro de dois lugares, Triumph, emprestado de um amigo e foram para a Carolina do Norte, onde puderam casar sem o consentimento dos pais. Ficaram casados 43 anos, até que meu pai morreu em 2004.

Então, o pensamento “nós nos conhecemos on-line” não me deixa empolgada.

Não obstante, perto dos 40, eu nunca havia casado e estava ficando impaciente, por isso compus um longo perfil que incluía meus livros, músicas e filmes preferidos. Quando cheguei à pergunta: “O que você espera de uma relação?”, não me contive.

“Kismet”, escrevi. “É pedir muito?”

Meghan havia me convencido a começar a ter encontros on-line prometendo que ela o faria comigo. Para me preparar para todas as possibilidades, nós nos registramos em dois lugares: OkCupid (que era grátis) e eHarmony (que definitivamente não era). Logo Meghan começou a ir a encontros, voltando ao nosso apartamento em São Francisco com histórias de falsas declarações e conversas sem graça.

Fiquei em casa. Constatei que os sinais de kismet eram zero (nem mesmo uma coincidência artística ou literária) e me recusei a aceitar menos do que isto.

Às vezes, Meghan carregava o laptop para o meu quarto. Uma vez ela disse: “Encontrei alguém para você. É bonito e engraçado, mas muito baixinho para mim.” (Eu tenho 1,55m). Outra vez, recebemos a mesma mensagem do mesmo sujeito: “Com licença, mas preciso falar francamente e deixar claro, apesar de você ouvir isso o tempo todo, que você é inegavelmente e sem esforço uma pessoa extremamente atraente.”

Fiquei desencorajada. Pelo que me constava, a internet era o lugar onde o kismet iria morrer.

Então, um dia, notei um sujeito aparentemente bonito, aparentemente inteligente e que dizia fazer tortas. Quem não gosta de um homem bonito, inteligente que faz tortas?" Além disso, ele havia preenchido a resposta “Entrem em contato comigo se..." com "quiserem passear fora da cidade". Eu era uma pessoa que sempre gostava de viajar, sempre querendo sair da cidade - então eu o inclui nos "favoritos".

Depois de brincarmos de flertar por dois dias, finalmente fiz a pergunta que estava me incomodando: "Você fez uma lista das suas músicas e filmes favoritos, mas nenhum livro. Foi um descuido ou você não lê?"

“A música gravada sempre me emocionou assim como a palavra escrita fala para a maioria”, respondeu.

Fechei o computador. Eu era a filha de proprietários de livraria, uma colecionadora de longa data de primeiras edições assinadas e uma autora. Discutir sobre literatura era o máximo do estímulo. Ler era fundamental para a minha identidade.

Dias mais tarde, ele escreveu: “Parece que você está procurando um leitor ávido, o que é legal. No entanto, você deveria saber que eu sou um nerd da palavra. Sugiro que este assunto seja resolvido com uma partida de Scrabble”.

E começou a introduzir termos de pontuação máxima como "zootaxy" (zootaxia, ciência da classificação dos animais) nas mensagens. O estratagema funcionou; fizemos tênues planos de nos encontrarmos para o Scrabble na semana seguinte.

Duas noites mais tarde, indo para casa depois do meu trabalho de garçonete peguei um ônibus e sentei ao lado de um homem atraente, muito semelhante à imagem do perfil do nerd da palavra. Não tinha certeza, fiquei muito nervosa e não arrisquei uma olhada para confirmar. Além disso, passava da meia-noite em um ônibus público - não era o momento nem o lugar para estudar o rosto de estranhos.

Em vez disso, olhei para o meu celular e não disse nada. Quais são as chances, fiquei pensando, em uma cidade de cerca de 800 mil pessoas? Mas depois de três paradas, quando ele desceu nas proximidades do lugar onde ele me disse que morava, tive certeza.

Pela manhã, mandei uma mensagem para ele pelo OkCupid: “Você estava no ônibus 71 ontem à noite, já bem tarde? Sentei perto de alguém que se parecia curiosamente com a sua foto”.

“Opa”, ele respondeu.

“Caramba”, escrevi.

O nosso primeiro encontro durou 12 horas. Fomos até uma galeria de arte, ao mercado dos produtores rurais e a um café onde jogamos Scrabble. Pareceu feliz quando ganhei por 100 pontos. Naquela noite, jantamos comida etíope com as mãos, depois atravessamos a rua até uma sala de concertos onde ele me levou ao andar superior na seção VIP para ver Meshell Ndegeocello cantar no escuro.

 Todo o nosso caso não constava em um roteiro kismet. Por isso, quando ele continou a não ler romances e, nas semanas seguintes, quando descobrimos mais incompatibilidades - ele não gostava de café, odiava voar, e só me preparou um tipo de torta (de abóbora,a que menos aprecio) -pensei: mas o universo nos aproximou. Então eu lhe daria outra chance.

A chance valeu a pena. Embora ele nunca tomasse café, pesquisou técnicas de preparo e aprendeu a fazer um cafezinho à francesa impecável, que me levava na cama todas as manhãs. Uma vez, quando eu estava prestes a tomar meu primeiro gole, ele entrou correndo: "Ainda não", disse, e deixou cair uma pitada de sal na minha xícara. “Ok, agora”.

Também viajou comigo, pálido e calado, puxando o botão de chamada repetidas vezes para perguntar quanto tempo iria durar a turbulência. Tentou Xanax e Ambien. Nada funcionou, mas ele jurou que a sua ansiedade de avião não interferiria em aventuras futuras.

Eu estava apaixonada e feliz, mas as dúvidas começaram a se manifestar. Ocasionalmente, eu ainda fantasiava a respeito de um homem que tomaria café comigo e lesse romances na cama nas nossas viagens frequentes para a Índia.

 Quando contei isso à terapeuta, ela me disse para fazer "um funeral pela morte da ilusão romântica”.

Numa tarde de fevereiro, ele e eu estávamos jogando Scrabble no parque, procurando no saco das peças a letra Q, puxei um anel. Eu o deixei cair no tabuleiro como se tivesse sido eletrocutada. “O que é isto?”

“É um anel,” ele respondeu.

“E o que está fazendo aqui?”

“Você quer me tornar o homem mais feliz do mundo?” perguntou.

Já fazem oito anos desde que eu me acalmei e consegui ter a presença de espírito de escrever “sim” com as peças do Scrabble.

Meu marido ainda não toma café, mas continua preparando um café francês sublime e ocasionalmente até me leva uma xícara na cama, ligeiramente salgada. Continua não gostando de romances, mas leu seguramente mil livros para o nosso filho de 6 anos, que compartilha da minha paixão pela literatura.

E embora não tenha vencido o medo de voar, nós criamos um sistema: tomamos voos diretos de dia voando com o tempo calmo, e se encontramos uma turbulência, ele engole rapidamente dois copos de vinho tinto e adormece. Ainda não conseguimos ir até a Índia, mas fomos à Itália, Tunísia, Portugal, França, Espanha e Marrocos. Eu até consegui aprender, devagar, a apreciar a torta de abóbora. A sua até é melhor.

Dois anos atrás, comemoramos o aniversário dos 10 anos da noite em que compartilhamos um banco no ônibus 71. Com reservas no nosso restaurante favorito,nos vestimos a caráter e antecipamos o nosso jantar de quatro pratos, vinho fino e conversa ininterrupta. Mas cinco minutos antes da chegada da babá, nosso filhocomeçou a vomitar, então comemoramos em casacom o menino doente aninhado entre nós dois, assistindo a um filme da Disney no sofá.

Adeus ilusão romântica. E boa viagem. Levei muito tempo para compreender que a compatibilidade desafia os algoritmos, e que o kismet tem menos a ver com encontros predestinados e livros favoritos do que com encontrar alguém que não tem medo de enfrentar os próprios medos - e fazer café que ele nem sequer bebe - só para ficar comigo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Na noite em que concordei em tentar encontros on-line, disse a minha colega de quarto, Meghan, que eu esperava não encontrar ninguém, porque aquilo não era o tipo de história que eu queria contar.

"Eu me conheço", falei. "Qualquer coisa que não seja kismet não vai funcionar".

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Sempre gostei da palavra kismet. De origem árabe (de ‘qisma’, significa porção), é apenas um sinônimo nerd para destino. Mas desde a minha juventude, acreditei nele, procurei por ele e confiei que o encontraria.

Culpa dos meus pais.

Minha mãe e pai se conheceram em uma festa em Boston, quando ela tinha 22 anos e ele 17. Meu pai era alto e magro com uma barbicha pontuda, e quando ele entrou na festa carregando o seu violão clássico, minha mãe olhou para ele e disse a uma amiga: “Este é para mim. Vou casar com ele”.

“Melhor apresentá-los, então,” ela disse, levando-a até ele. “Dolly, este é o Wally. Vocês foram feitos um para o outro”.

Meus pais foram para casa juntos naquela noite, e, seis semanas mais tarde, roubaram o carro da minha tia e atravessaram todo o país até São Francisco. Eram beatniks, por isso foram para City Lights Books, onde o proprietário, Lawrence Ferlinghetti, preparou espaguete e vinho e deixou que ficassem uma noite no subsolo da loja.

Mas depois de algum tempo na cidade, o dinheiro acabou, e eles ligaram para a minha avó e mentiram, dizendo que haviam fugido pra se casar. Ela mandou dinheiro e eles voltaram a Boston, onde fingiram ser recém-casados para morarem juntos.

Cerca de um ano mais tarde, pegaram um carro de dois lugares, Triumph, emprestado de um amigo e foram para a Carolina do Norte, onde puderam casar sem o consentimento dos pais. Ficaram casados 43 anos, até que meu pai morreu em 2004.

Então, o pensamento “nós nos conhecemos on-line” não me deixa empolgada.

Não obstante, perto dos 40, eu nunca havia casado e estava ficando impaciente, por isso compus um longo perfil que incluía meus livros, músicas e filmes preferidos. Quando cheguei à pergunta: “O que você espera de uma relação?”, não me contive.

“Kismet”, escrevi. “É pedir muito?”

Meghan havia me convencido a começar a ter encontros on-line prometendo que ela o faria comigo. Para me preparar para todas as possibilidades, nós nos registramos em dois lugares: OkCupid (que era grátis) e eHarmony (que definitivamente não era). Logo Meghan começou a ir a encontros, voltando ao nosso apartamento em São Francisco com histórias de falsas declarações e conversas sem graça.

Fiquei em casa. Constatei que os sinais de kismet eram zero (nem mesmo uma coincidência artística ou literária) e me recusei a aceitar menos do que isto.

Às vezes, Meghan carregava o laptop para o meu quarto. Uma vez ela disse: “Encontrei alguém para você. É bonito e engraçado, mas muito baixinho para mim.” (Eu tenho 1,55m). Outra vez, recebemos a mesma mensagem do mesmo sujeito: “Com licença, mas preciso falar francamente e deixar claro, apesar de você ouvir isso o tempo todo, que você é inegavelmente e sem esforço uma pessoa extremamente atraente.”

Fiquei desencorajada. Pelo que me constava, a internet era o lugar onde o kismet iria morrer.

Então, um dia, notei um sujeito aparentemente bonito, aparentemente inteligente e que dizia fazer tortas. Quem não gosta de um homem bonito, inteligente que faz tortas?" Além disso, ele havia preenchido a resposta “Entrem em contato comigo se..." com "quiserem passear fora da cidade". Eu era uma pessoa que sempre gostava de viajar, sempre querendo sair da cidade - então eu o inclui nos "favoritos".

Depois de brincarmos de flertar por dois dias, finalmente fiz a pergunta que estava me incomodando: "Você fez uma lista das suas músicas e filmes favoritos, mas nenhum livro. Foi um descuido ou você não lê?"

“A música gravada sempre me emocionou assim como a palavra escrita fala para a maioria”, respondeu.

Fechei o computador. Eu era a filha de proprietários de livraria, uma colecionadora de longa data de primeiras edições assinadas e uma autora. Discutir sobre literatura era o máximo do estímulo. Ler era fundamental para a minha identidade.

Dias mais tarde, ele escreveu: “Parece que você está procurando um leitor ávido, o que é legal. No entanto, você deveria saber que eu sou um nerd da palavra. Sugiro que este assunto seja resolvido com uma partida de Scrabble”.

E começou a introduzir termos de pontuação máxima como "zootaxy" (zootaxia, ciência da classificação dos animais) nas mensagens. O estratagema funcionou; fizemos tênues planos de nos encontrarmos para o Scrabble na semana seguinte.

Duas noites mais tarde, indo para casa depois do meu trabalho de garçonete peguei um ônibus e sentei ao lado de um homem atraente, muito semelhante à imagem do perfil do nerd da palavra. Não tinha certeza, fiquei muito nervosa e não arrisquei uma olhada para confirmar. Além disso, passava da meia-noite em um ônibus público - não era o momento nem o lugar para estudar o rosto de estranhos.

Em vez disso, olhei para o meu celular e não disse nada. Quais são as chances, fiquei pensando, em uma cidade de cerca de 800 mil pessoas? Mas depois de três paradas, quando ele desceu nas proximidades do lugar onde ele me disse que morava, tive certeza.

Pela manhã, mandei uma mensagem para ele pelo OkCupid: “Você estava no ônibus 71 ontem à noite, já bem tarde? Sentei perto de alguém que se parecia curiosamente com a sua foto”.

“Opa”, ele respondeu.

“Caramba”, escrevi.

O nosso primeiro encontro durou 12 horas. Fomos até uma galeria de arte, ao mercado dos produtores rurais e a um café onde jogamos Scrabble. Pareceu feliz quando ganhei por 100 pontos. Naquela noite, jantamos comida etíope com as mãos, depois atravessamos a rua até uma sala de concertos onde ele me levou ao andar superior na seção VIP para ver Meshell Ndegeocello cantar no escuro.

 Todo o nosso caso não constava em um roteiro kismet. Por isso, quando ele continou a não ler romances e, nas semanas seguintes, quando descobrimos mais incompatibilidades - ele não gostava de café, odiava voar, e só me preparou um tipo de torta (de abóbora,a que menos aprecio) -pensei: mas o universo nos aproximou. Então eu lhe daria outra chance.

A chance valeu a pena. Embora ele nunca tomasse café, pesquisou técnicas de preparo e aprendeu a fazer um cafezinho à francesa impecável, que me levava na cama todas as manhãs. Uma vez, quando eu estava prestes a tomar meu primeiro gole, ele entrou correndo: "Ainda não", disse, e deixou cair uma pitada de sal na minha xícara. “Ok, agora”.

Também viajou comigo, pálido e calado, puxando o botão de chamada repetidas vezes para perguntar quanto tempo iria durar a turbulência. Tentou Xanax e Ambien. Nada funcionou, mas ele jurou que a sua ansiedade de avião não interferiria em aventuras futuras.

Eu estava apaixonada e feliz, mas as dúvidas começaram a se manifestar. Ocasionalmente, eu ainda fantasiava a respeito de um homem que tomaria café comigo e lesse romances na cama nas nossas viagens frequentes para a Índia.

 Quando contei isso à terapeuta, ela me disse para fazer "um funeral pela morte da ilusão romântica”.

Numa tarde de fevereiro, ele e eu estávamos jogando Scrabble no parque, procurando no saco das peças a letra Q, puxei um anel. Eu o deixei cair no tabuleiro como se tivesse sido eletrocutada. “O que é isto?”

“É um anel,” ele respondeu.

“E o que está fazendo aqui?”

“Você quer me tornar o homem mais feliz do mundo?” perguntou.

Já fazem oito anos desde que eu me acalmei e consegui ter a presença de espírito de escrever “sim” com as peças do Scrabble.

Meu marido ainda não toma café, mas continua preparando um café francês sublime e ocasionalmente até me leva uma xícara na cama, ligeiramente salgada. Continua não gostando de romances, mas leu seguramente mil livros para o nosso filho de 6 anos, que compartilha da minha paixão pela literatura.

E embora não tenha vencido o medo de voar, nós criamos um sistema: tomamos voos diretos de dia voando com o tempo calmo, e se encontramos uma turbulência, ele engole rapidamente dois copos de vinho tinto e adormece. Ainda não conseguimos ir até a Índia, mas fomos à Itália, Tunísia, Portugal, França, Espanha e Marrocos. Eu até consegui aprender, devagar, a apreciar a torta de abóbora. A sua até é melhor.

Dois anos atrás, comemoramos o aniversário dos 10 anos da noite em que compartilhamos um banco no ônibus 71. Com reservas no nosso restaurante favorito,nos vestimos a caráter e antecipamos o nosso jantar de quatro pratos, vinho fino e conversa ininterrupta. Mas cinco minutos antes da chegada da babá, nosso filhocomeçou a vomitar, então comemoramos em casacom o menino doente aninhado entre nós dois, assistindo a um filme da Disney no sofá.

Adeus ilusão romântica. E boa viagem. Levei muito tempo para compreender que a compatibilidade desafia os algoritmos, e que o kismet tem menos a ver com encontros predestinados e livros favoritos do que com encontrar alguém que não tem medo de enfrentar os próprios medos - e fazer café que ele nem sequer bebe - só para ficar comigo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Na noite em que concordei em tentar encontros on-line, disse a minha colega de quarto, Meghan, que eu esperava não encontrar ninguém, porque aquilo não era o tipo de história que eu queria contar.

"Eu me conheço", falei. "Qualquer coisa que não seja kismet não vai funcionar".

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

Sempre gostei da palavra kismet. De origem árabe (de ‘qisma’, significa porção), é apenas um sinônimo nerd para destino. Mas desde a minha juventude, acreditei nele, procurei por ele e confiei que o encontraria.

Culpa dos meus pais.

Minha mãe e pai se conheceram em uma festa em Boston, quando ela tinha 22 anos e ele 17. Meu pai era alto e magro com uma barbicha pontuda, e quando ele entrou na festa carregando o seu violão clássico, minha mãe olhou para ele e disse a uma amiga: “Este é para mim. Vou casar com ele”.

“Melhor apresentá-los, então,” ela disse, levando-a até ele. “Dolly, este é o Wally. Vocês foram feitos um para o outro”.

Meus pais foram para casa juntos naquela noite, e, seis semanas mais tarde, roubaram o carro da minha tia e atravessaram todo o país até São Francisco. Eram beatniks, por isso foram para City Lights Books, onde o proprietário, Lawrence Ferlinghetti, preparou espaguete e vinho e deixou que ficassem uma noite no subsolo da loja.

Mas depois de algum tempo na cidade, o dinheiro acabou, e eles ligaram para a minha avó e mentiram, dizendo que haviam fugido pra se casar. Ela mandou dinheiro e eles voltaram a Boston, onde fingiram ser recém-casados para morarem juntos.

Cerca de um ano mais tarde, pegaram um carro de dois lugares, Triumph, emprestado de um amigo e foram para a Carolina do Norte, onde puderam casar sem o consentimento dos pais. Ficaram casados 43 anos, até que meu pai morreu em 2004.

Então, o pensamento “nós nos conhecemos on-line” não me deixa empolgada.

Não obstante, perto dos 40, eu nunca havia casado e estava ficando impaciente, por isso compus um longo perfil que incluía meus livros, músicas e filmes preferidos. Quando cheguei à pergunta: “O que você espera de uma relação?”, não me contive.

“Kismet”, escrevi. “É pedir muito?”

Meghan havia me convencido a começar a ter encontros on-line prometendo que ela o faria comigo. Para me preparar para todas as possibilidades, nós nos registramos em dois lugares: OkCupid (que era grátis) e eHarmony (que definitivamente não era). Logo Meghan começou a ir a encontros, voltando ao nosso apartamento em São Francisco com histórias de falsas declarações e conversas sem graça.

Fiquei em casa. Constatei que os sinais de kismet eram zero (nem mesmo uma coincidência artística ou literária) e me recusei a aceitar menos do que isto.

Às vezes, Meghan carregava o laptop para o meu quarto. Uma vez ela disse: “Encontrei alguém para você. É bonito e engraçado, mas muito baixinho para mim.” (Eu tenho 1,55m). Outra vez, recebemos a mesma mensagem do mesmo sujeito: “Com licença, mas preciso falar francamente e deixar claro, apesar de você ouvir isso o tempo todo, que você é inegavelmente e sem esforço uma pessoa extremamente atraente.”

Fiquei desencorajada. Pelo que me constava, a internet era o lugar onde o kismet iria morrer.

Então, um dia, notei um sujeito aparentemente bonito, aparentemente inteligente e que dizia fazer tortas. Quem não gosta de um homem bonito, inteligente que faz tortas?" Além disso, ele havia preenchido a resposta “Entrem em contato comigo se..." com "quiserem passear fora da cidade". Eu era uma pessoa que sempre gostava de viajar, sempre querendo sair da cidade - então eu o inclui nos "favoritos".

Depois de brincarmos de flertar por dois dias, finalmente fiz a pergunta que estava me incomodando: "Você fez uma lista das suas músicas e filmes favoritos, mas nenhum livro. Foi um descuido ou você não lê?"

“A música gravada sempre me emocionou assim como a palavra escrita fala para a maioria”, respondeu.

Fechei o computador. Eu era a filha de proprietários de livraria, uma colecionadora de longa data de primeiras edições assinadas e uma autora. Discutir sobre literatura era o máximo do estímulo. Ler era fundamental para a minha identidade.

Dias mais tarde, ele escreveu: “Parece que você está procurando um leitor ávido, o que é legal. No entanto, você deveria saber que eu sou um nerd da palavra. Sugiro que este assunto seja resolvido com uma partida de Scrabble”.

E começou a introduzir termos de pontuação máxima como "zootaxy" (zootaxia, ciência da classificação dos animais) nas mensagens. O estratagema funcionou; fizemos tênues planos de nos encontrarmos para o Scrabble na semana seguinte.

Duas noites mais tarde, indo para casa depois do meu trabalho de garçonete peguei um ônibus e sentei ao lado de um homem atraente, muito semelhante à imagem do perfil do nerd da palavra. Não tinha certeza, fiquei muito nervosa e não arrisquei uma olhada para confirmar. Além disso, passava da meia-noite em um ônibus público - não era o momento nem o lugar para estudar o rosto de estranhos.

Em vez disso, olhei para o meu celular e não disse nada. Quais são as chances, fiquei pensando, em uma cidade de cerca de 800 mil pessoas? Mas depois de três paradas, quando ele desceu nas proximidades do lugar onde ele me disse que morava, tive certeza.

Pela manhã, mandei uma mensagem para ele pelo OkCupid: “Você estava no ônibus 71 ontem à noite, já bem tarde? Sentei perto de alguém que se parecia curiosamente com a sua foto”.

“Opa”, ele respondeu.

“Caramba”, escrevi.

O nosso primeiro encontro durou 12 horas. Fomos até uma galeria de arte, ao mercado dos produtores rurais e a um café onde jogamos Scrabble. Pareceu feliz quando ganhei por 100 pontos. Naquela noite, jantamos comida etíope com as mãos, depois atravessamos a rua até uma sala de concertos onde ele me levou ao andar superior na seção VIP para ver Meshell Ndegeocello cantar no escuro.

 Todo o nosso caso não constava em um roteiro kismet. Por isso, quando ele continou a não ler romances e, nas semanas seguintes, quando descobrimos mais incompatibilidades - ele não gostava de café, odiava voar, e só me preparou um tipo de torta (de abóbora,a que menos aprecio) -pensei: mas o universo nos aproximou. Então eu lhe daria outra chance.

A chance valeu a pena. Embora ele nunca tomasse café, pesquisou técnicas de preparo e aprendeu a fazer um cafezinho à francesa impecável, que me levava na cama todas as manhãs. Uma vez, quando eu estava prestes a tomar meu primeiro gole, ele entrou correndo: "Ainda não", disse, e deixou cair uma pitada de sal na minha xícara. “Ok, agora”.

Também viajou comigo, pálido e calado, puxando o botão de chamada repetidas vezes para perguntar quanto tempo iria durar a turbulência. Tentou Xanax e Ambien. Nada funcionou, mas ele jurou que a sua ansiedade de avião não interferiria em aventuras futuras.

Eu estava apaixonada e feliz, mas as dúvidas começaram a se manifestar. Ocasionalmente, eu ainda fantasiava a respeito de um homem que tomaria café comigo e lesse romances na cama nas nossas viagens frequentes para a Índia.

 Quando contei isso à terapeuta, ela me disse para fazer "um funeral pela morte da ilusão romântica”.

Numa tarde de fevereiro, ele e eu estávamos jogando Scrabble no parque, procurando no saco das peças a letra Q, puxei um anel. Eu o deixei cair no tabuleiro como se tivesse sido eletrocutada. “O que é isto?”

“É um anel,” ele respondeu.

“E o que está fazendo aqui?”

“Você quer me tornar o homem mais feliz do mundo?” perguntou.

Já fazem oito anos desde que eu me acalmei e consegui ter a presença de espírito de escrever “sim” com as peças do Scrabble.

Meu marido ainda não toma café, mas continua preparando um café francês sublime e ocasionalmente até me leva uma xícara na cama, ligeiramente salgada. Continua não gostando de romances, mas leu seguramente mil livros para o nosso filho de 6 anos, que compartilha da minha paixão pela literatura.

E embora não tenha vencido o medo de voar, nós criamos um sistema: tomamos voos diretos de dia voando com o tempo calmo, e se encontramos uma turbulência, ele engole rapidamente dois copos de vinho tinto e adormece. Ainda não conseguimos ir até a Índia, mas fomos à Itália, Tunísia, Portugal, França, Espanha e Marrocos. Eu até consegui aprender, devagar, a apreciar a torta de abóbora. A sua até é melhor.

Dois anos atrás, comemoramos o aniversário dos 10 anos da noite em que compartilhamos um banco no ônibus 71. Com reservas no nosso restaurante favorito,nos vestimos a caráter e antecipamos o nosso jantar de quatro pratos, vinho fino e conversa ininterrupta. Mas cinco minutos antes da chegada da babá, nosso filhocomeçou a vomitar, então comemoramos em casacom o menino doente aninhado entre nós dois, assistindo a um filme da Disney no sofá.

Adeus ilusão romântica. E boa viagem. Levei muito tempo para compreender que a compatibilidade desafia os algoritmos, e que o kismet tem menos a ver com encontros predestinados e livros favoritos do que com encontrar alguém que não tem medo de enfrentar os próprios medos - e fazer café que ele nem sequer bebe - só para ficar comigo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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