THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Namorar Jason era um grande alívio. Aos 43 anos, eu só tinha me apaixonado uma única vez, por um cara que, um belo dia, sentado no banco do passageiro do meu carro (quando eu era muito mais magra do que sou hoje) enfiou o dedo nas minhas coxas espalhadas e olhou para mim, como se dissesse: “Você vai dar um jeito nisso aqui, não vai?
Jason jamais faria isso, principalmente porque era gentil e empático e não uma pessoa lixo. Mas também porque ele era gordo como eu.
Eu já havia trabalhado com ele anos antes, quando tivemos só um flerte leve que mais tarde virou um flerte picante. Uma curiosidade sobre Jason: ele odiava bananas. Se eu quisesse ver o medo nos seus olhos, era só descascar uma banana e correr atrás dele, brandindo a fruta como uma espada de lâmina cega e doce.
Mesmo assim, na época em que me cortejava, ele me preparou a torta de creme de banana mais deliciosa da minha vida, com uma camada de ganache de chocolate entre a crosta de biscoito e o recheio de banana. Esse cara tocou numa banana por mim – várias vezes – e isso significava muito.
Jason também foi o primeiro homem com quem namorei cuja presença não me fazia sentir vergonha do meu corpo. Nós dois tínhamos internalizado essa vergonha, mas, quando estávamos sozinhos, era como se cancelássemos a vergonha um do outro. Pedíamos asinhas de frango e batatas fritas com queijo chili e assistíamos a dois filmes numa noite só. Eu me aconchegava ao lado dele e não ficava encanada com meu queixo duplo (ou triplo). Quando nos deitávamos na cama, ele descansava a mão suavemente na minha barriga, sem que eu tivesse que empurrá-la sutilmente para uma área menos problemática. Porque, entre nós, era eu quem estava mais perto de um “corpo de tamanho normal”.
E quero dizer mais perto, não perto.
Desde a faculdade, eu tinha um índice de massa corporal que ia de “obesidade” a “obesidade mórbida” – medida que, na melhor das hipóteses, é imprecisa e, na pior, racista. Criada por um matemático belga, sua média se baseia na altura e no peso de homens brancos e europeus.
Eu era aquilo que algumas pessoas do movimento de positividade corporal chamariam de mid fat [algo como “gordura média”]. Para as mulheres, é um tamanho de 54 a 58. Há muitas divergências sobre as várias categorias de corpo, mas elas vão até infinifat [um neologismo que junta as palavras “gordura” e “infinita”] ou Death Fat [”gordura mortal”, em tradução livre], termo cunhado pela escritora Lesley Kinzel para zombar do também muito questionável conceito de “obesidade mórbida”.
Ao longo dos meses em que Jason e eu namoramos, percebi que estava ganhando peso e, com essa consciência, veio um profundo sentimento de pavor em relação ao que os outros pensavam de nós. Quando entrávamos num restaurante, eu imaginava os clientes pensando: “Meu Deus, espero que sobre um pouco para nós”. Quando íamos ao supermercado, podia sentir os olhos no nosso carrinho, as pessoas esticando o pescoço para espiar todas as coisas que elas não deveriam comprar.
Mas a cena que eu ficava imaginando, a cena que não conseguia tirar da cabeça, era nós dois entrando numa festa com todos os nossos amigos. Não importava que eu estivesse super bonita, que Jason estivesse super elegante (ele é um cara bonito): eu não suportava a ideia de que, entre nossos amigos, nós fôssemos o “casal gordo”.
Nossos amigos alguma vez tinham dito que nosso peso era um problema para eles? Não. Alguma vez tinham zombado de nós por causa do nosso peso? De jeito nenhum. Tinham “expressado preocupação” com nossa saúde depois de assistirem a um noticiário local sobre a “epidemia de obesidade”, cheio de imagens de corpos gordos e sem cabeça de pessoas andando pelas ruas alheias ao fato de que seriam uma advertência ambulante no jornal da noite? Não. Esse cenário estava só na minha cabeça, toda a vergonha que senti ao longo dos anos projetada nos outros, até mesmo nas pessoas que me amam.
Um belo dia, quando Jason e eu já estávamos namorando por uns cinco meses, experimentei uma calça jeans que não serviu mais, então me pesei, o que fazia periodicamente, para não “sair do controle”, depois de perder 13 quilos no ano anterior.
Eu tinha recuperado 8 daqueles quilos.
Olhei para a balança e senti o peito apertar, a adrenalina invadindo meu rosto, meus ombros. Pronto. Eu estava fora de controle. Já era “obesa mórbida”, então agora estava claramente com o pé na cova. Eu precisava dar parar com aquilo. Eu tinha que mudar alguma coisa.
Bem naquela hora, Jason me mandou uma mensagem, como fazia todos os dias, só para ver como eu estava. Disse para ele dar um pulo em casa, porque precisávamos conversar. Ele chegou minutos depois.
Abri a porta e me sentei no sofá, esperando que ele se sentasse comigo, mas ele ficou de pé, o casaco e chaves ainda nas mãos. “Aconteceu alguma coisa?”
Expliquei o que estava sentindo e que tinha ganhado 8 quilos. Estranhamente, ele não parecia compreender a gravidade da situação.
“Ganhei muito mais do que isso!”, ele disse. “E daí?”
“Não é só isso, Jason”, eu disse. “Eu simplesmente não consigo...”
Eu não podia deixar os pensamentos escaparem dos confins do meu cérebro e entrarem no éter. Sabia que eles eram terríveis.
“Você não consegue...?”, ele perguntou.
“Não consigo ser ‘aquele casal gordo’ entre nossos amigos. Não é sempre que consigo ser o maior casal da festa. Tenho muita vergonha do meu corpo e, às vezes, estar com você parece duplicar essa vergonha”.
Ele ficou olhando para mim por um bom tempo, permitindo que eu mergulhasse na minha própria feiura até sentir o rubor subir pelo rosto.
“Eu nunca senti nada além de orgulho ao entrar em qualquer lugar com você”, ele disse.
E aí ele me deixou lá, sozinha com meu gato e minha vergonha.
Não tenho ideia de como ele me perdoou depois disso. Ele nunca deveria ter falado comigo de novo. Mas falou. E sem minha solicitação. Ele simplesmente me mandou uma mensagem uns dias depois, dizendo: “Tudo bem. Acho que vamos ser amigos, então. Você e eu”.
Seu perdão, para mim, foi milagroso. Eu diria que ele era um santo, especialmente porque as crianças e os cachorros o adoravam, mas todos aqueles palavrões e o sexo antes do casamento provavelmente diriam que não.
Ao longo dos mais de dez anos que se passaram desde então, trabalhamos juntos muitas vezes e ele fez amizade com minha família. Passamos o Dia de Ação de Graças e o Natal juntos, primeiro só com ele e depois com sua nova namorada, Jéssica – os dois lindamente apaixonados.
Quatro anos atrás, oficiei o casamento deles na frente de centenas de nossos amigos. Os votos de Jason foram sinceros e hilários, levando toda a plateia ao riso e às lágrimas.
“Uau”, eu disse quando ele terminou. “Foi muito lindo, Jason. E talvez seja um momento estranho para tocar no assunto, mas... por que deixamos de namorar, mesmo?”
Felizmente, Jessica deu risada. E, felizmente, Jason não respondeu: “Porque você é uma idiota irremediável?”
No ano passado, fui ver Jason se apresentar num show de contação de histórias, onde ele falou sobre o ataque cardíaco que tinha sofrido uns anos antes, algo que na época ele definiu como “um pequeno evento cardíaco”. Não foi bem assim.
Ele estava sozinho casa, mas não ligou para a emergência. Em vez disso, chamou um amigo para levá-lo ao pronto-socorro. E aí, sentindo uma dor terrível, ele se arrastou para descer as escadas estreitas e esperar no estacionamento – tudo isso porque não queria que os vizinhos vissem os paramédicos com dificuldade de carregar seu corpo escada abaixo.
Quando chegou ao hospital, ele morreu por 77 segundos antes de ser reanimado. Meu amigo, o cara com o maior coração que conheço, tinha morrido de vergonha, literalmente.
Enquanto Jason contava a história, me acabei em lágrimas, totalmente inconsolável. Mais tarde, quando contei o episódio a amigos, as lágrimas voltaram. É uma história devastadora, sim, mas de onde vinha esse choro todo?
Percebi que não era só tristeza que estava sentindo – mas também um arrependimento quase paralisante. Assim como eu, Jason carregava consigo uma montanha de vergonha, e o que eu disse e fiz naquele dia, anos antes, tinha ajudado sua montanha a crescer até ficar alta a ponto de ele arriscar a vida por causa dela.
Ainda não me livrei da minha vergonha, embora tenha ficado mais consciente do estrago que ela causou e mais receptiva aos outros e a mim mesma. Quase todo mundo – exceto os sociopatas e os instrutores de spinning, talvez – passa por este mundo com alguma aversão a si mesmo. E quase sempre pensamos que somos a única pessoa que ferimos quando nos deixamos vencer por essa aversão. Mas esse tipo de vergonha é insidioso. Ela se infiltra nos nossos relacionamentos e machuca todas as pessoas ao nosso redor – às vezes até a morte.
Mas, se tivermos sorte, elas vão ressuscitar e nos ajudar a curar nossas vidas, vão nos amar apesar dos nossos piores pecados. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times