Mais de vinte meses atrás, fiz um voto de celibato que não teve nada a ver com religião. Eu tinha acabado de sair de um relacionamento de dois anos que terminou de um jeito complicado e estava exausta até a alma. Não apenas pelo que foi necessário fazer para libertar meu coração desse turbilhão particular de promessas quebradas e decepções duradouras, mas pelo conjunto da obra: as dezenas de relacionamentos tão parecidos com este último, que pareciam existir dentro de uma câmara de eco.
Dois casamentos fracassados. Um oceano de dramas amorosos. A vertigem, a esperança e a euforia que invariavelmente desmoronavam em conflitos e dúvidas. E, depois, as discussões de relacionamentos desesperadas, todo o conversar e processar, as mensagens de texto angustiadas, as brigas e o sexo de reconciliação. Tentativas e fracassos em fazer uma coisa errada dar certo.
Eu estava cansada, acima de tudo, das vozes que surgiam na minha cabeça sempre que a mais nova relação ia se desintegrando, me dizendo que tudo que eu precisava fazer era tentar mais uma vez com o próximo cara, o cara certo, o cara que estava no mundo lá fora.
Mas, desta vez, algo mudou. Quando as vozes começaram a sussurrar sua costumeira ladainha do “continue procurando”, não consegui acreditar nelas. A brincadeira tinha acabado. Quando a fumaça se dissipou, vi que estava perdida e que nenhum amor, por mais profundo que fosse, me ajudaria a encontrar a saída.
Eu tinha passado tanto tempo nesse limbo – desesperada para encontrar alguém para me salvar – que perdi a noção do lugar de onde tinha vindo: o sistema de assistência social de Fresno, Califórnia. Eu tinha apenas 5 anos de idade quando minhas duas irmãs e eu fomos mandadas para morar com o casal que está na raiz de tudo isso.
Garota tímida, magrela e de cabelos cacheados, eu já tinha aprendido a ler os adultos como mapas de terrenos difíceis e a me obrigar a ser qualquer tipo de criança que eles parecessem querer. Este era o meu trabalho: observar e agradar, para que eu não fosse devolvida mais uma vez. Porque eu tinha aprendido que, por pior que fosse qualquer situação, sempre poderia piorar.
Acho que minhas irmãs, que tinham 3 e 7 anos, encaravam do mesmo jeito. Mas, estranhamente, nunca falamos umas com as outras sobre o que estava acontecendo conosco naquela casa, nem sobre qualquer coisa que já tinha acontecido. Nem sobre nossa mãe, que tinha fugido da cidade com um namorado no ano anterior, sem se despedir nem dizer a ninguém para onde estava indo. Nem sobre nosso pai violento e inconstante, que entrava e saía da prisão e de nossas vidas. Nem sobre nossa assistente social, que apareceu sem avisar no nosso último endereço, onde ficamos apenas quatro meses, e nos ajudou a enfiar nossas poucas coisas em sacos de lixo.
A gente tinha feito alguma coisa errada? Não éramos boas o bastante? Ninguém disse nada, e sabíamos que era melhor não perguntar. Seguimos sem chorar nem reclamar, como se a infância fosse uma espécie de guerra e nós estivéssemos aprendendo a ser as soldadas.
Havia um número infinito de regras na nossa nova situação, às quais obedecíamos sem questionar. Nada de sentar nos móveis, nada de água ou comida depois das cinco da tarde, nada de falar alto. Devo ter frequentado o jardim de infância e a primeira série nessa época, mas minhas memórias da escola são borradas. Eu me lembro de dias em casa, duros e frios como o invólucro de plástico das cadeiras e sofás. A esposa nos dizia para brincar do lado de fora e trancava a porta atrás de nós.
À noite, eu dividia a cama com minha irmã mais nova. Dormíamos enroladas uma na outra feito cachorrinhos, esfregando os pés no colchão para nos acalmar – nosso mais antigo hábito em comum.
Em algumas noites, nada acontecia. Em outras noites, eu acordava com um vulto na porta, a silhueta escura do marido. E, então, eu desaparecia dentro de mim, mal conseguia respirar, congelada. Desaparecia com tanta habilidade que já não estava no meu corpo quando ele me afastava de minha irmã. Eu não dava um pio.
Acho que passei aqueles tempos feito uma sonâmbula – quando tinha 5, 6 e 7 anos. Que ia para outro lugar, mesmo durante o dia, longe de todas as coisas que não conseguia controlar.
Será que alguma criança alguma vez pertence a si mesma? Eu não pertencia. Eu era uma peça de xadrez feita para ser movida, sacrificada. Os adultos – e particularmente meus cuidadores – pareciam indiferentes ou perigosos, ou ambos. Não havia a quem recorrer e nada a fazer a não ser simplesmente desistir do meu corpo e me esconder bem longe, nas profundezas do labirinto da minha mente.
Depois de dois anos, finalmente deixamos essa família. Eu tinha 7 anos. Eu era muito nova, nova demais, mas, como uma terapeuta certa vez me disse: “O corpo nunca esquece”. O trauma deixa uma marca em você.
Fomos levadas porque, de alguma maneira, juntei coragem para falar e contei à esposa, com a voz trêmula, sobre o abuso sexual que estava sofrendo. Embora ela nunca tenha me olhado nos olhos nem prestado atenção em mim, tempos depois ela ligou para nossa assistente social e disse que não poderia mais cuidar de nós. Fomos levadas para outro lar adotivo e depois para outro, cada um deles decididamente menos abominável, mas não sem seus próprios traumas.
Quando fiz 18 anos e saí do sistema da assitência social, tudo que eu queria era me reinventar o mais rápido possível. Se tivesse a chance, acho que teria rastejado para fora da minha própria pele, ou mesmo queimado minhas impressões digitais. Quem quer que fosse aquela garota descartável, eu não queria mais ser ela.
Rompi os laços com nossa última família adotiva, que nos criara nos últimos dez anos, e também com nossa família biológica, avó, primos, tias e tios que víamos com cada vez menos frequência com o passar do tempo. Deixei tudo queimar sem olhar para trás, tendo como política nunca contar nada a ninguém desta nova vida. Não aos amigos e certamente não aos namorados que torrei como se estivesse decidida a me vingar.
Havia algo de desesperador naqueles anos. Eu me matriculei numa faculdade comunitária, tudo que eu podia pagar ou até mesmo almejar, e aluguei um apartamento com minhas irmãs. Vivíamos de salário em salário, bem abaixo da linha da pobreza, mas pertencíamos apenas a nós mesmas.
Todo fim de semana íamos dançar e bebíamos dúzias de Vodka Collins. Às vezes, voltava para casa com desconhecidos, dizendo a mim mesma que gostava de sexo, quando, na verdade, muitas vezes me sentia escorregando para fora do corpo e indo para outro lugar durante o ato. Era como observar um manequim fazendo os movimentos.
Outras vezes, começava a chorar e me inundar de raiva, querendo lutar de um jeito que não fizera quando criança. E nesses momentos – que eram como um terrível sequestro – eu me sentia envergonhada, constrangida, incapaz de explicar o que realmente estava acontecendo a quem quer que estivesse comigo, nem mesmo a alguém de quem gostava, um namorado ou, mais tarde, meu marido.
Sexo me assustava, então eu queria mais. Os homens me confundiam, então eu ficava obcecada em descobrir o que eles queriam e tentava me transformar naquilo, caindo aos pedaços quando não funcionava. E, quando estava com um cara carinhoso e atencioso, me sentia claustrofóbica e oprimida, pronta para fugir.
Esta é a dança na qual estive envolvida durante a maior parte da minha vida adulta, entre casamento e divórcio, maternidade e carreira de sucesso. É a forma escura que está sempre à espreita, me seguindo feito minha própria sombra, me levando a buscar o que não se pode encontrar.
“Eu só quero ter alguma outra briga com o universo”, disse à minha terapeuta quando tomei a decisão de recusar todo e qualquer relacionamento. “Sinto que estou lutando a mesma guerra, sem parar. E as armas estão sempre apontadas contra mim”.
Às vezes, eu me sinto como se estivesse quebrada e sempre estarei, mas tenho que me lembrar de um fato essencial: não fui eu quem me quebrou. Talvez eu não consiga me consertar totalmente, mas o primeiro passo deve ser tentar me amar como sou, embora isso muitas vezes pareça ser a tarefa mais difícil de todas.
Quero carregar o que me cabe carregar, afirmando minhas experiências de vida, minhas feridas de guerra, em vez de desejar ter outra história. De vez em quando, me sinto solitária neste meu segundo ano de celibato autoimposto, mas quase nunca estou sozinha.
Todas nós carregamos algo. Na minha vizinhança, muitas vezes me pego olhando para um lado e para outro da rua, de um jeito quase sagrado, sabendo que muitos dos homens e mulheres que pegam o ônibus ou estão de máscara nos cafés também foram machucados por abuso sexual ou sofreram outros traumas dolorosos. Fico maravilhada com nossa beleza, com nossa humanidade. Aí volto para casa. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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