CIDADE DO MÉXICO – A tinta rosa da sua escada está descascando e o corrimão em metal preto está quebrado, mas Samantha Flores está tão determinada como sempre em meio à profusão de plantas e flores de um vermelho vibrante.
Aos 88 anos de idade, esse ícone transgênero mexicano continua elegante, divertida e às vezes paqueradora, sentada ao lado de uma pequena mesa redonda no seu pequeno flat onde tem recebido pessoas que ligam para ela, respeitando o distanciamento social, durante a pandemia.
Depois de quase nove décadas como socialite, gerente de um bar gay, defensora dos LGBTQ e muito mais, Samantha tem uma enorme comunidade de amigos e vizinhos sempre batendo à sua porta. “Sem meus amigos não seria o que sou”, disse ela.
Mas, como ela sabe muito bem, muitos idosos não têm essa sorte. E assim existe uma parte do seu mundo ao qual ela anseia retornar: o centro que fundou e administra para ajudar adultos LGBTQ mais idosos a combaterem seu isolamento. É a primeira organização deste tipo no México.
Em março de 2020, o centro fechou quando o coronavírus tomou conta do país. O governo mexicano prometeu vacinar todos os idosos no final de maio, mas em alguns bairros da Cidade do México a vacinação apenas começou.
Assim, Samantha ainda está à espera. “Meu maior desejo é reabrir o centro”, afirmou.
Fundado há três anos, o centro Vida Alegre oferecia meditação, terapia, refeições, um clube de cinema e treinamento em tecnologia. Mas, mais do que tudo, disse ela, dava às pessoas sós uma sensação de viver em comunidade. “O adulto mais idoso em geral sofre com duas coisas: solidão e abandono. Ele se torna um estorvo para a família”.
Para as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros idosos, que envelhecem numa era diferente e são rejeitados pelos parentes, o isolamento é ainda pior. “Eles não têm ninguém, absolutamente ninguém”, disse Samantha Flores.
Nascida em Orizaba, cidade do Estado de Veracruz, em 1932, Samantha cresceu numa casa com um pomar repleto de laranjais, goiabeiras, limoeiros e abacateiros. Diz que sua infância foi idílica. Sua família aceitou tacitamente o que ela chama de sua natureza afeminada, disse. “Não passava despercebido”.
“O que eu queria era sair daquela cidade maldita e fugir daquelas pessoas. Percebi que era criticada e apontada por ser homossexual”.
Samantha mudou-se para a Cidade do México onde mergulhou na incipiente cena gay da capital nos anos 1950 e 1960.
Uma noite, em 1964, foi convidada para uma festa à fantasia e junto com alguns amigos decidiu se vestir como drag queen. Escolheu o nome Samantha com base na personagem de Grace Kelly no filme Alta Sociedade, com música de Cole Porter, seu compositor favorito.
“Gostava do nome Samantha por causa do duplo significado. Bing Crosby a chamava de Sam, que pode ser também uma abreviação de Samuel”
A anfitriã da festa era uma amiga dela de Xochtl, na época uma das mulheres trans mais famosas no México que, como diz Samantha, tinha conexões com os ricos e poderosos que davam a ela a liberdade de realizar festas extravagantes para a comunidade LGBTQ. “Ela foi uma das que abriram as portas para as mulheres transgêneros”.
Pouco a pouco Samantha apareceu em público como Samantha até, finalmente, ser Samantha. “Eu me tornei eu mesma, encontrei minha real personalidade”, afirmou
Logo se tornou uma figura proeminente na vida noturna da Cidade do México. Mas ainda não se sentia à vontade como uma mulher transgênero e então resolveu mudar para Los Angeles. Durante anos, na década de 1970 e 80, ela viveu entre México e Los Angeles, onde trabalhava como gerente de um bar gay.
Em meados de 1980, retornou ao México definitivamente com a crise da aids a todo o vapor. “Meus melhores amigos morreram de aids. Perdi a conta. Se disser que foram 300, não estaria exagerando”, disse ela.
Ver a crise enfrentada por sua comunidade inspirou Samantha a se tornar uma ativista. “Tornei-me uma lutadora”, disse.
Primeiro ela atuou como voluntária numa instituição beneficente de combate à aids. Mais tarde começou a arrecadar dinheiro para crianças com aids e mulheres vítimas da violência no norte do México, levantando fundos em performances teatrais, incluindo Os Monólogos da Vagina, que esteve em cartaz no México durante anos.
Então, há alguns anos, um amigo sugeriu que ela criasse um abrigo para pessoas LGBTQ idosas.
Levou anos enfrentando a burocracia mexicana, procurando o lugar certo, mas finalmente conseguiu alugar um imóvel de uma única sala numa rua movimentada no bairro de Alamos. O centro Vida Alegre continua ali, o prédio pintado de azul brilhante com uma bandeira de arco-íris na frente.
A comunidade cresceu, para cerca de 40 pessoas, cerca da metade são heterossexuais que chegam ali apenas em busca de companhia. “É a empatia e o estar juntos que traz as pessoas. O abandono e a solidão desaparecem”.
Além de reabrir o Vida Alegre, ela tem outro desejo. “Estou esperando o Príncipe Encantado no seu cavalo branco e sua armadura de prata chegar e fazer uma serenata para mim”.
“Vivo aqui há 35 anos, com as janelas abertas, aguardando. Mas ele ainda não apareceu”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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