THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - “Sempre que viajo e digo às pessoas de onde sou, elas perguntam: ‘Tem negros na Nova Escócia?’ E sempre ficam surpresas quando respondo que estamos aqui há 400 anos”, disse René Boudreau, de 30 anos, fundadora da Elevate and Explore Black Nova Scotia, comunidade de viagens e negócios que procura inspirar o viajante negro a visitar a província.
Como negra americana que desenvolveu uma quase obsessão com a diáspora africana, admito que eu teria feito a mesma pergunta se tivéssemos nos conhecido em circunstâncias diferentes. Embora a história de 400 anos da cultura africana na província da Nova Escócia seja rica e ampla, está escondida nas sombras da história canadense e não é amplamente reconhecida por suas contribuições para a diáspora africana.
Graças a uma série de iniciativas de turismo na província, a narrativa está mudando. Boudreau explicou que a falta de representação negra dentro da indústria turística da Nova Escócia foi o que a inspirou a iniciar seu negócio em dezembro de 2019. Nascida e criada em Truro, no centro da província, mas com laços familiares com as comunidades historicamente negras de Shelburne, no sudoeste da Nova Escócia, e Africville, bairro nos arredores de Halifax, ela notou, entre os amigos e familiares, que havia muitos lugares do estado que eles nunca tinham visitado para explorar a própria história. As restrições de viagem relacionadas à pandemia a forçaram a reavaliar seu público-alvo. “Percebi que a população local ainda não tinha experimentado muitos desses locais culturais em sua cidade. Quando não se vê representado em algum lugar, você não acha que vai ser bem recebido”, ela me disse enquanto tomávamos um café em Halifax.
Uma relação complicada
Verdade seja dita, tive dificuldade em imaginar o Canadá, e a Nova Escócia em particular, como pouco acolhedores para qualquer um. A península repleta de faróis charmosos parecia totalmente idílica, sem mencionar o fato de que é o lar da Trilha da Lagosta nova-escocesa, com mais de 40 endereços, a festa do meu crustáceo preferido.
Desenvolvi uma curiosidade em relação à história da Nova Escócia negra no início de 2020 depois de ler um artigo de Saveur sobre as raízes africanas da culinária da Nova Escócia. Depois de monitorar o fechamento da fronteira canadense por mais de dois anos com a pandemia, finalmente reservei minha passagem para explorar a província neste verão.
Halifax está situada em uma península no Oceano Atlântico, e seu principal atrativo é o Halifax Waterfront, calçadão de quase quatro quilômetros de comprimento onde você encontrará o Halifax Seaport Farmers’ Market, o Museu Canadense de Imigração no Píer 21 e barcos turísticos da J Farwell Sailing Tours.
Mas seria negligência minha acreditar que a relação da Nova Escócia com sua população negra é uma história de amor. A primeira pessoa negra registrada que chegou ao Canadá foi um africano chamado Mathieu da Costa, entre 1605 e 1608, incumbido de servir como intérprete para os colonizadores franceses Pierre Dugua De Monts e Samuel de Champlain. Nos últimos quatro séculos, a província abrigou mais de 50 comunidades negras.
Uma das ondas mais significativas da migração negra se deu entre 1783 e 1785, durante a Revolução Americana. Milhares de africanos livres e escravizados conhecidos como Legalistas Negros lutaram na guerra ao lado dos britânicos, com a promessa de liberdade e terra aparentemente a seu alcance. Mas, quando a derrota britânica começou a parecer inevitável, mais de três mil negros partiram de Nova York para a Nova Escócia.
Sua jornada é homenageada no Centro do Patrimônio Legalista Negro em Shelburne, a cerca de duas horas e meia de carro de Halifax, passando por colinas pontilhadas de pinheiros e lagos. O museu e centro de educação ultramoderno, cheio de luz natural, fica no local da antiga comunidade de Birchtown, o maior assentamento de negros livres do mundo fora da África em 1783.
O ‘Livro dos Negros’
O Centro do Patrimônio Legalista Negro foi inaugurado em 2015, depois que o prédio original foi destruído em um incêndio motivado por motivos raciais em 2006. De todos os pontos do novo espaço, os hóspedes verão o nome de cada legalista gravado nas janelas, paredes e até no chão - nomes que conhecemos hoje graças ao “Livro dos Negros”.
O documento de 150 páginas, criado pelo general de brigada Samuel Birch, detalhou o nome, a descrição física e o status legal de cada pessoa de ascendência africana que fugiu dos Estados Unidos para a Nova Escócia depois da guerra. Uma versão ficcionalizada do livro e sua história subsequente foi imortalizada pelo ficcionista canadense Lawrence Hill em seu romance de 2007 “The Book of Negroes” (publicado nos Estados Unidos como “Someone Knows My Name”), e novamente em uma minissérie de 2015, coproduzida pelas redes CBC e BET. Uma versão do documento original está na Inglaterra, nos Arquivos Nacionais em Kew, em Londres, e outra nos Arquivos Nacionais em Washington, D.C.
Quem visita o museu pode ver uma cópia virtual do “Livro dos Negros” e seguir uma linha do tempo digital com quatro apresentações touch-screen que detalham a história dos Legalistas Negros: sua captura na África; suas dificuldades e promessas não cumpridas na chegada a Birchtown; um êxodo em massa de quase 1.200 legalistas para Serra Leoa em 1792; e, finalmente, o legado e o impacto de suas experiências nos dias atuais.
“Este é um documento que mostra a história dos meus antepassados e o colapso de todas as gerações”, declarou Andrea Davis, de 56 anos, diretora executiva do Centro do Patrimônio Legalista Negro. O documento mapeou nove gerações de sua família, traçando suas raízes a um legalista livre que chegou à Nova Escócia em 1783.
A dor e o orgulho de Africville
Depois de passar dias explorando locais centrados na esperança, cheguei a um área cultural na Nova Escócia que me encheu de apreensão. A história de Africville, pequena comunidade de canadenses predominantemente negros à beira da Bacia de Bedford, e sua destruição final, está repleta da dor causada pelo engodo e pela privação de direitos.
O tamanho original de Africville variava de nove hectares a mais de 200 hectares, dependendo de quem lhe dá a informação. Hoje, ocupa um hectare, que inclui um parque com vista para a ponte suspensa A. Murray MacKay e uma réplica da Igreja Batista Unida Africana, que já foi o coração social da comunidade. O edifício da igreja abriga agora o Museu Africville, que explora a história da comunidade africana nova-escocesa que residia lá há mais de cem anos.
Fundada em 1849, Africville era uma comunidade unida e próspera, com uma escola, empresas, correios e, claro, a igreja. Embora fosse em grande parte autossuficiente, a cidade de Halifax se recusou a fornecer as muitas comodidades normalmente tidas como garantidas, como esgoto, acesso a água limpa e coleta de lixo, embora os moradores pagassem impostos municipais. Com o tempo, outras iniciativas foram desenvolvidas para que o bairro parecesse menos desejável, incluindo a colocação de um hospital de doenças infecciosas, uma prisão e o aterro sanitário da cidade nas proximidades.
Semelhante às políticas de renovação urbana das décadas de 1950 e 1960 nas cidades americanas, Halifax decidiu reassentar os moradores de Africville a fim de construir distritos comerciais e industriais na área. Em 1964, o Conselho Municipal votou para autorizar o reassentamento de moradores. A cidade alegou que, com isso, melhoraria o padrão de vida dos moradores, mas a maioria foi transferida para habitações públicas. A última casa em Africville foi destruída em 1970. A cidade emitiu um pedido formal de desculpas aos ex-moradores em 2010.
Agora, em seu 39º ano, uma celebração anual é promovida no fim de julho pelos ex-moradores que estacionam os trailers onde as casas estariam, cozinhando, cantando, dançando e revivendo memórias. Quando cheguei, uma mulher surpreendentemente parecida com minhas tias me chamou para uma conversa. Forçada a deixar Africville aos 15 anos, e agora com quase 60, Paula Grant-Smith suspirou ao recordar a experiência traumática: “Crescer aqui foi maravilhoso. Se eu caísse e esfolasse o joelho, poderia entrar em qualquer casa e os moradores fariam um curativo. Se eu quisesse comer alguma coisa, poderia ir à casa de algum vizinho. Fico muito triste quando penso em Africville, porque tínhamos muita liberdade para brincar, mas também nos sentíamos protegidos.”
Enquanto ela me oferecia memórias de sua infância, tive aquela estranha sensação de como tantas comunidades negras se assemelham. Sua descrição de Africville poderia ter sido o bairro negro da minha mãe no sudoeste da Louisiana, ou o do meu pai em Montgomery, no Alabama: bairros que viram sua parcela de destruição por causa de políticas racistas, mas de alguma forma mantiveram um espírito de amor, família e esperança. “O pessoal de Africville tem um ditado: o espírito continua vivo. E, quando voltamos, somos recebidos pelo espírito de todas as pessoas que viveram aqui antes de nós”, disse Grant-Smith.
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