Opinião: Biden pode ser o segundo presidente católico dos EUA, será que isso tem importância?


Com John F. Kennedy em 1960, o catolicismo no país conquistou uma vitória muito desejada, mas também perdeu algo

Por Elizabeth Bruenig

Conforme se aproximava o dia da eleição, 60 anos atrás, os católicos de todo o país acompanhavam as notícias com uma sensação de ansiosa expectativa. Para eles, o que se avizinhava era a fase final de uma longa batalha: um católico irlandês parecia prestes a se tornar presidente dos Estados Unidos, encerrando o histórico monopólio dos protestantes na Casa Branca – e na respeitabilidade da classe média. Eles sabiam que a vitória de John F. Kennedy – e deles mesmos – não viria fácil.

A edição de 8 de setembro de 1960 do The Catholic Transcript relatara uma pequena parte do amplo esforço para minar suas chances por conta da fé: “No Missouri”, advertira o jornal, “os sermões de domingo em todo o austero ‘Cinturão da Bíblia’ estão sendo dirigidos contra os católicos”, enquanto outras pessoas vinham distribuindo panfletos com alertas sobre uma suposta “milícia católica” e a iminente conversão de todas as escolas públicas em escolas católicas.

Joe Biden, candidato à presidência dos Estados Unidos. Foto: Maddie McGarvey/The New York Times
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Apesar destes e de outros rumores ferozes, Kennedy venceu. Mas, em uma das muitas reversões estranhas da história, o sucesso dos católicos em meados do século preparou o palco para a indiferença – e até mesmo a oposição ativa – dos católicos brancos à potencial eleição de um segundo presidente católico para os Estados Unidos: Joe Biden.

Na época da candidatura de Kennedy, o preconceito americano contra os católicos surgia de duas fontes distintas, mas relacionadas. A fonte mais antiga era ideológica: a República Americana se fundara nas ideias de pensadores liberais que olhavam com desconfiança para os católicos.

John Locke, um dos pais fundadores do liberalismo, propusera que, como os católicos eram obrigados a respeitar apenas uma governança compatível com sua religião, eles não deviam ser tolerados nos estados liberais. A ideia de que os católicos eram cidadãos estranhos às democracias liberais pegou – e não era inteiramente ridícula.

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A Igreja Católica é uma criatura curiosa: uma instituição internacional, burocrática e moderna que arrebanha 1 bilhão de fiéis no mundo todo e abriga uma série de ideias pré-modernas que não têm nenhuma preferência particular pelo liberalismo. Na época da fundação do país, e por muitas gerações que vieram depois, os católicos eram suspeitos dos piores pecados contra o liberalismo: dogmatismo, anti-intelectualismo, tirania, malignidade.

E os católicos também foram responsáveis por articular algumas das melhores críticas ao liberalismo, citando o individualismo insensível, a grande desigualdade, a exploração e a indiferença como alguns dos excessos da filosofia. Essa mistura de tendências – de um lado, a obediência a uma antiga ordem hierárquica e, de outro, a oposição radical a algumas das forças mais opressivas da sociedade – não faz muito sentido em um contexto liberal.

Como o historiador Jefferson Cowie escreveu sobre os católicos devotos que ajudaram a impulsionar o New Deal: “De uma forma que confundiu particularmente muitos comentaristas liberais e de esquerda, esses homens e mulheres podiam ser profundamente católicos, militar ativamente no sindicalismo e até rejeitar boa parte do pensamento secular e liberal, mas, ao mesmo tempo, apoiar aspectos econômicos centrais da política do New Deal”.

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A estranheza do pensamento católico no contexto americano alimentou a outra fonte do anticatolicismo na vida nos Estados Unidos: uma forma racializada de preconceito. “E ainda havia esse toque de etnia colado nos católicos, disse Maria R. Mazzenga, curadora das coleções de história católica americana na biblioteca da Universidade Católica.

“Eles eram esquisitos, forasteiros, sujos, estranhamente ritualísticos”. Nas décadas de 1950 e 1960, era fácil distinguir os católicos dos protestantes brancos e mais ricos. Por esse motivo, eles foram excluídos – pense no cartaz “Irlandeses não precisam se candidatar” – de grande parte da vida pública.

A discriminação não era tão severa nem tão formalizada quanto o preconceito contra os negros americanos, mas foi o suficiente para dividir protestantes e católicos em sociedades quase apartadas, com os protestantes brancos controlando grande parte das oportunidades políticas, econômicas e sociais. “E Kennedy derrubou esse muro”, disse Mazzenga.

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“Acredito em um país onde a separação entre a Igreja e o estado seja absoluta”, disse o futuro presidente em um discurso pungente para a Associação Ministerial totalmente protestante da Grande Houston, em setembro de 1960, “onde nenhum prelado católico diria ao presidente (se ele fosse católico) como agir, onde nenhum ministro protestante diria a seus paroquianos em quem votar”.

Com sua adoção enfática do liberalismo, ele pôs de lado aquelas antigas objeções ideológicas ao catolicismo; com seu comportamento sofisticado, ele dispensou o restante. Os católicos podiam se candidatar a cargos públicos sem suspeita e não precisavam mais hesitar em se considerarem membros da classe média branca.

Candidato democrata Joe Biden fala com a imprensa em Wilmington, Delaware Foto: Jim Watson/AFP
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“Conquistar a presidência foi a cereja do bolo desse movimento na classe média americana”, disse Peter Cajka, professor assistente de estudos americanos na Universidade de Notre Dame. Desde então, disse ele, “os católicos foram ficando cada vez mais assimilados à branquitude americana de classe média, perdendo sua base étnica”. Assim, eles se tornaram, com algumas exceções, indistinguíveis dos protestantes brancos. Em outras palavras: eles receberam exatamente o que pediram.

“Uma das coisas que achei mais interessante ao longo dos anos”, disse Greg Smith, diretor associado de pesquisa em religião do Pew Research Center, “é que, se você olhar as opiniões dos católicos sobre uma variedade de questões políticas, vai ver muito claramente que os católicos tendem a expressar opiniões que estão mais de acordo com as posições de seu partido do que com as posições de sua igreja”.

Quando se trata de aborto, os católicos republicanos são a favor da proibição na maioria ou em todos os casos; quando se trata de um muro na fronteira, eles são muito favoráveis. O inverso se aplica aos democratas católicos, embora o Papa Francisco tenha falado enfaticamente contra o aborto e a favor dos imigrantes e refugiados.

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O discurso de Kennedy em Houston foi de fato profético: nenhum prelado, morto ou vivo, parece capaz de influenciar a política dos católicos americanos hoje em dia. Na verdade, as censuras proferidas por autoridades da Igreja significam pouco para os políticos católicos de qualquer um dos partidos.

Em 2012, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos publicou várias cartas que havia escrito aos líderes das comissões do Congresso, pedindo que atendessem aos princípios da fé na definição do orçamento federal para 2013 – mais especificamente, para que não cortassem os fundos para a alimentação e outros programas de bem-estar social.

O deputado Paul Ryan, católico convicto, deturpou as mensagens e depois as ignorou. Em 2008, o bispo John Ricard escreveu uma carta aberta ao então senador Biden para questionar, nos termos mais gentis, se ele deveria receber a comunhão, dada sua oposição às restrições ao aborto. Ao bispo Ricard, logo se juntaram muitos outros, e Biden foi proibido de receber a comunhão em outubro passado por esse mesmo motivo.

Como no caso de Ryan, tudo isso deu em nada. E este é o resultado tanto do que os católicos esperançosos de 1960 ganharam quanto do que perderam. A direita católica não perdeu a influência política – ao contrário, vários católicos ricos e de direita apoiam abertamente Trump, entre eles Kenneth Langone, o bilionário por trás do Home Depot, e Tom Monaghan, o fundador da Domino’s Pizza.

Todos os cinco juízes da maioria conservadora da Suprema Corte foram criados como católicos. Acontece que a direita católica já não é reconhecidamente católica. Sua política é mais ou menos idêntica à dos outros membros da coalizão cristã de direita. Uma pesquisa do Pew conduzida em agosto revelou que cerca de 60% dos católicos brancos devem votar em Donald Trump – idêntico ao número de protestantes brancos não evangélicos que planejam votar nele. O que resta da esquerda católica teve um destino ainda mais debilitante.

“Franklin Delano Roosevelt trouxe muitos católicos para o Partido Democrata”, disse Cajka, referindo-se aos impressionantes 70% a 81% dos votos católicos que FDR conquistou em 1936, “e eles trouxeram consigo suas crenças na justiça social e no salário mínimo. Este foi o ponto alto da política de inclinação católica que realmente viria a afetar a redistribuição da riqueza. De lá para cá, o catolicismo acompanhou a tendência neoliberal”.

Embora goste de se comparar a Roosevelt, Biden reluta em se associar a qualquer coisa parecida com o radicalismo do New Deal, sugerindo que, mesmo que o Congresso aprovasse o “Medicare para todos”, ele o vetaria como presidente. Ainda existem pequenos vestígios das sensibilidades que criaram e sustentaram a intensa política ativista pró-pobre do catolicismo no início do século 20, mas a ameaça pró-trabalho e anticapitalista que a esquerda católica chegou a representar para o establishment político diminuiu bastante.

Biden poderia tomar o exemplo do Papa Francisco como modelo para um tipo de catolicismo que é piedoso, mas, ao mesmo tempo, desafia os poderes constituídos – caso ele, ou qualquer outra pessoa, estivesse interessado nesse tipo de coisa. “Biden tem a oportunidade de realmente captar o que pode ser a cara de uma identidade católica pós-Vaticano II”, observou Mazzenga.

“Ele tem a oportunidade de falar com grupos católicos liberais estimulados pelo ativismo antirracismo, pelo ativismo anti-armas, pelo ativismo ambiental. Mas não está fazendo isso”. Cajka concordou: “Um bom seguidor do Papa Francisco deveria representar uma ameaça à classe dominante americana”, disse ele.

Mas o histórico de Biden não é nada radical, mesmo quando se trata de sindicatos, guerra e previdência social. O que quer dizer que ele é um democrata comum – e deixa esse traço mais ou menos explícito em seus discursos. Talvez os católicos tenham conquistado o direito de não serem discriminados, o privilégio de poderem se mesclar perfeitamente com o cenário social e político dos Estados Unidos, a liberdade de não terem obrigações morais especiais. Uma liberdade ampla, estéril e inexpressiva. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Conforme se aproximava o dia da eleição, 60 anos atrás, os católicos de todo o país acompanhavam as notícias com uma sensação de ansiosa expectativa. Para eles, o que se avizinhava era a fase final de uma longa batalha: um católico irlandês parecia prestes a se tornar presidente dos Estados Unidos, encerrando o histórico monopólio dos protestantes na Casa Branca – e na respeitabilidade da classe média. Eles sabiam que a vitória de John F. Kennedy – e deles mesmos – não viria fácil.

A edição de 8 de setembro de 1960 do The Catholic Transcript relatara uma pequena parte do amplo esforço para minar suas chances por conta da fé: “No Missouri”, advertira o jornal, “os sermões de domingo em todo o austero ‘Cinturão da Bíblia’ estão sendo dirigidos contra os católicos”, enquanto outras pessoas vinham distribuindo panfletos com alertas sobre uma suposta “milícia católica” e a iminente conversão de todas as escolas públicas em escolas católicas.

Joe Biden, candidato à presidência dos Estados Unidos. Foto: Maddie McGarvey/The New York Times

Apesar destes e de outros rumores ferozes, Kennedy venceu. Mas, em uma das muitas reversões estranhas da história, o sucesso dos católicos em meados do século preparou o palco para a indiferença – e até mesmo a oposição ativa – dos católicos brancos à potencial eleição de um segundo presidente católico para os Estados Unidos: Joe Biden.

Na época da candidatura de Kennedy, o preconceito americano contra os católicos surgia de duas fontes distintas, mas relacionadas. A fonte mais antiga era ideológica: a República Americana se fundara nas ideias de pensadores liberais que olhavam com desconfiança para os católicos.

John Locke, um dos pais fundadores do liberalismo, propusera que, como os católicos eram obrigados a respeitar apenas uma governança compatível com sua religião, eles não deviam ser tolerados nos estados liberais. A ideia de que os católicos eram cidadãos estranhos às democracias liberais pegou – e não era inteiramente ridícula.

A Igreja Católica é uma criatura curiosa: uma instituição internacional, burocrática e moderna que arrebanha 1 bilhão de fiéis no mundo todo e abriga uma série de ideias pré-modernas que não têm nenhuma preferência particular pelo liberalismo. Na época da fundação do país, e por muitas gerações que vieram depois, os católicos eram suspeitos dos piores pecados contra o liberalismo: dogmatismo, anti-intelectualismo, tirania, malignidade.

E os católicos também foram responsáveis por articular algumas das melhores críticas ao liberalismo, citando o individualismo insensível, a grande desigualdade, a exploração e a indiferença como alguns dos excessos da filosofia. Essa mistura de tendências – de um lado, a obediência a uma antiga ordem hierárquica e, de outro, a oposição radical a algumas das forças mais opressivas da sociedade – não faz muito sentido em um contexto liberal.

Como o historiador Jefferson Cowie escreveu sobre os católicos devotos que ajudaram a impulsionar o New Deal: “De uma forma que confundiu particularmente muitos comentaristas liberais e de esquerda, esses homens e mulheres podiam ser profundamente católicos, militar ativamente no sindicalismo e até rejeitar boa parte do pensamento secular e liberal, mas, ao mesmo tempo, apoiar aspectos econômicos centrais da política do New Deal”.

A estranheza do pensamento católico no contexto americano alimentou a outra fonte do anticatolicismo na vida nos Estados Unidos: uma forma racializada de preconceito. “E ainda havia esse toque de etnia colado nos católicos, disse Maria R. Mazzenga, curadora das coleções de história católica americana na biblioteca da Universidade Católica.

“Eles eram esquisitos, forasteiros, sujos, estranhamente ritualísticos”. Nas décadas de 1950 e 1960, era fácil distinguir os católicos dos protestantes brancos e mais ricos. Por esse motivo, eles foram excluídos – pense no cartaz “Irlandeses não precisam se candidatar” – de grande parte da vida pública.

A discriminação não era tão severa nem tão formalizada quanto o preconceito contra os negros americanos, mas foi o suficiente para dividir protestantes e católicos em sociedades quase apartadas, com os protestantes brancos controlando grande parte das oportunidades políticas, econômicas e sociais. “E Kennedy derrubou esse muro”, disse Mazzenga.

“Acredito em um país onde a separação entre a Igreja e o estado seja absoluta”, disse o futuro presidente em um discurso pungente para a Associação Ministerial totalmente protestante da Grande Houston, em setembro de 1960, “onde nenhum prelado católico diria ao presidente (se ele fosse católico) como agir, onde nenhum ministro protestante diria a seus paroquianos em quem votar”.

Com sua adoção enfática do liberalismo, ele pôs de lado aquelas antigas objeções ideológicas ao catolicismo; com seu comportamento sofisticado, ele dispensou o restante. Os católicos podiam se candidatar a cargos públicos sem suspeita e não precisavam mais hesitar em se considerarem membros da classe média branca.

Candidato democrata Joe Biden fala com a imprensa em Wilmington, Delaware Foto: Jim Watson/AFP

“Conquistar a presidência foi a cereja do bolo desse movimento na classe média americana”, disse Peter Cajka, professor assistente de estudos americanos na Universidade de Notre Dame. Desde então, disse ele, “os católicos foram ficando cada vez mais assimilados à branquitude americana de classe média, perdendo sua base étnica”. Assim, eles se tornaram, com algumas exceções, indistinguíveis dos protestantes brancos. Em outras palavras: eles receberam exatamente o que pediram.

“Uma das coisas que achei mais interessante ao longo dos anos”, disse Greg Smith, diretor associado de pesquisa em religião do Pew Research Center, “é que, se você olhar as opiniões dos católicos sobre uma variedade de questões políticas, vai ver muito claramente que os católicos tendem a expressar opiniões que estão mais de acordo com as posições de seu partido do que com as posições de sua igreja”.

Quando se trata de aborto, os católicos republicanos são a favor da proibição na maioria ou em todos os casos; quando se trata de um muro na fronteira, eles são muito favoráveis. O inverso se aplica aos democratas católicos, embora o Papa Francisco tenha falado enfaticamente contra o aborto e a favor dos imigrantes e refugiados.

O discurso de Kennedy em Houston foi de fato profético: nenhum prelado, morto ou vivo, parece capaz de influenciar a política dos católicos americanos hoje em dia. Na verdade, as censuras proferidas por autoridades da Igreja significam pouco para os políticos católicos de qualquer um dos partidos.

Em 2012, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos publicou várias cartas que havia escrito aos líderes das comissões do Congresso, pedindo que atendessem aos princípios da fé na definição do orçamento federal para 2013 – mais especificamente, para que não cortassem os fundos para a alimentação e outros programas de bem-estar social.

O deputado Paul Ryan, católico convicto, deturpou as mensagens e depois as ignorou. Em 2008, o bispo John Ricard escreveu uma carta aberta ao então senador Biden para questionar, nos termos mais gentis, se ele deveria receber a comunhão, dada sua oposição às restrições ao aborto. Ao bispo Ricard, logo se juntaram muitos outros, e Biden foi proibido de receber a comunhão em outubro passado por esse mesmo motivo.

Como no caso de Ryan, tudo isso deu em nada. E este é o resultado tanto do que os católicos esperançosos de 1960 ganharam quanto do que perderam. A direita católica não perdeu a influência política – ao contrário, vários católicos ricos e de direita apoiam abertamente Trump, entre eles Kenneth Langone, o bilionário por trás do Home Depot, e Tom Monaghan, o fundador da Domino’s Pizza.

Todos os cinco juízes da maioria conservadora da Suprema Corte foram criados como católicos. Acontece que a direita católica já não é reconhecidamente católica. Sua política é mais ou menos idêntica à dos outros membros da coalizão cristã de direita. Uma pesquisa do Pew conduzida em agosto revelou que cerca de 60% dos católicos brancos devem votar em Donald Trump – idêntico ao número de protestantes brancos não evangélicos que planejam votar nele. O que resta da esquerda católica teve um destino ainda mais debilitante.

“Franklin Delano Roosevelt trouxe muitos católicos para o Partido Democrata”, disse Cajka, referindo-se aos impressionantes 70% a 81% dos votos católicos que FDR conquistou em 1936, “e eles trouxeram consigo suas crenças na justiça social e no salário mínimo. Este foi o ponto alto da política de inclinação católica que realmente viria a afetar a redistribuição da riqueza. De lá para cá, o catolicismo acompanhou a tendência neoliberal”.

Embora goste de se comparar a Roosevelt, Biden reluta em se associar a qualquer coisa parecida com o radicalismo do New Deal, sugerindo que, mesmo que o Congresso aprovasse o “Medicare para todos”, ele o vetaria como presidente. Ainda existem pequenos vestígios das sensibilidades que criaram e sustentaram a intensa política ativista pró-pobre do catolicismo no início do século 20, mas a ameaça pró-trabalho e anticapitalista que a esquerda católica chegou a representar para o establishment político diminuiu bastante.

Biden poderia tomar o exemplo do Papa Francisco como modelo para um tipo de catolicismo que é piedoso, mas, ao mesmo tempo, desafia os poderes constituídos – caso ele, ou qualquer outra pessoa, estivesse interessado nesse tipo de coisa. “Biden tem a oportunidade de realmente captar o que pode ser a cara de uma identidade católica pós-Vaticano II”, observou Mazzenga.

“Ele tem a oportunidade de falar com grupos católicos liberais estimulados pelo ativismo antirracismo, pelo ativismo anti-armas, pelo ativismo ambiental. Mas não está fazendo isso”. Cajka concordou: “Um bom seguidor do Papa Francisco deveria representar uma ameaça à classe dominante americana”, disse ele.

Mas o histórico de Biden não é nada radical, mesmo quando se trata de sindicatos, guerra e previdência social. O que quer dizer que ele é um democrata comum – e deixa esse traço mais ou menos explícito em seus discursos. Talvez os católicos tenham conquistado o direito de não serem discriminados, o privilégio de poderem se mesclar perfeitamente com o cenário social e político dos Estados Unidos, a liberdade de não terem obrigações morais especiais. Uma liberdade ampla, estéril e inexpressiva. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Conforme se aproximava o dia da eleição, 60 anos atrás, os católicos de todo o país acompanhavam as notícias com uma sensação de ansiosa expectativa. Para eles, o que se avizinhava era a fase final de uma longa batalha: um católico irlandês parecia prestes a se tornar presidente dos Estados Unidos, encerrando o histórico monopólio dos protestantes na Casa Branca – e na respeitabilidade da classe média. Eles sabiam que a vitória de John F. Kennedy – e deles mesmos – não viria fácil.

A edição de 8 de setembro de 1960 do The Catholic Transcript relatara uma pequena parte do amplo esforço para minar suas chances por conta da fé: “No Missouri”, advertira o jornal, “os sermões de domingo em todo o austero ‘Cinturão da Bíblia’ estão sendo dirigidos contra os católicos”, enquanto outras pessoas vinham distribuindo panfletos com alertas sobre uma suposta “milícia católica” e a iminente conversão de todas as escolas públicas em escolas católicas.

Joe Biden, candidato à presidência dos Estados Unidos. Foto: Maddie McGarvey/The New York Times

Apesar destes e de outros rumores ferozes, Kennedy venceu. Mas, em uma das muitas reversões estranhas da história, o sucesso dos católicos em meados do século preparou o palco para a indiferença – e até mesmo a oposição ativa – dos católicos brancos à potencial eleição de um segundo presidente católico para os Estados Unidos: Joe Biden.

Na época da candidatura de Kennedy, o preconceito americano contra os católicos surgia de duas fontes distintas, mas relacionadas. A fonte mais antiga era ideológica: a República Americana se fundara nas ideias de pensadores liberais que olhavam com desconfiança para os católicos.

John Locke, um dos pais fundadores do liberalismo, propusera que, como os católicos eram obrigados a respeitar apenas uma governança compatível com sua religião, eles não deviam ser tolerados nos estados liberais. A ideia de que os católicos eram cidadãos estranhos às democracias liberais pegou – e não era inteiramente ridícula.

A Igreja Católica é uma criatura curiosa: uma instituição internacional, burocrática e moderna que arrebanha 1 bilhão de fiéis no mundo todo e abriga uma série de ideias pré-modernas que não têm nenhuma preferência particular pelo liberalismo. Na época da fundação do país, e por muitas gerações que vieram depois, os católicos eram suspeitos dos piores pecados contra o liberalismo: dogmatismo, anti-intelectualismo, tirania, malignidade.

E os católicos também foram responsáveis por articular algumas das melhores críticas ao liberalismo, citando o individualismo insensível, a grande desigualdade, a exploração e a indiferença como alguns dos excessos da filosofia. Essa mistura de tendências – de um lado, a obediência a uma antiga ordem hierárquica e, de outro, a oposição radical a algumas das forças mais opressivas da sociedade – não faz muito sentido em um contexto liberal.

Como o historiador Jefferson Cowie escreveu sobre os católicos devotos que ajudaram a impulsionar o New Deal: “De uma forma que confundiu particularmente muitos comentaristas liberais e de esquerda, esses homens e mulheres podiam ser profundamente católicos, militar ativamente no sindicalismo e até rejeitar boa parte do pensamento secular e liberal, mas, ao mesmo tempo, apoiar aspectos econômicos centrais da política do New Deal”.

A estranheza do pensamento católico no contexto americano alimentou a outra fonte do anticatolicismo na vida nos Estados Unidos: uma forma racializada de preconceito. “E ainda havia esse toque de etnia colado nos católicos, disse Maria R. Mazzenga, curadora das coleções de história católica americana na biblioteca da Universidade Católica.

“Eles eram esquisitos, forasteiros, sujos, estranhamente ritualísticos”. Nas décadas de 1950 e 1960, era fácil distinguir os católicos dos protestantes brancos e mais ricos. Por esse motivo, eles foram excluídos – pense no cartaz “Irlandeses não precisam se candidatar” – de grande parte da vida pública.

A discriminação não era tão severa nem tão formalizada quanto o preconceito contra os negros americanos, mas foi o suficiente para dividir protestantes e católicos em sociedades quase apartadas, com os protestantes brancos controlando grande parte das oportunidades políticas, econômicas e sociais. “E Kennedy derrubou esse muro”, disse Mazzenga.

“Acredito em um país onde a separação entre a Igreja e o estado seja absoluta”, disse o futuro presidente em um discurso pungente para a Associação Ministerial totalmente protestante da Grande Houston, em setembro de 1960, “onde nenhum prelado católico diria ao presidente (se ele fosse católico) como agir, onde nenhum ministro protestante diria a seus paroquianos em quem votar”.

Com sua adoção enfática do liberalismo, ele pôs de lado aquelas antigas objeções ideológicas ao catolicismo; com seu comportamento sofisticado, ele dispensou o restante. Os católicos podiam se candidatar a cargos públicos sem suspeita e não precisavam mais hesitar em se considerarem membros da classe média branca.

Candidato democrata Joe Biden fala com a imprensa em Wilmington, Delaware Foto: Jim Watson/AFP

“Conquistar a presidência foi a cereja do bolo desse movimento na classe média americana”, disse Peter Cajka, professor assistente de estudos americanos na Universidade de Notre Dame. Desde então, disse ele, “os católicos foram ficando cada vez mais assimilados à branquitude americana de classe média, perdendo sua base étnica”. Assim, eles se tornaram, com algumas exceções, indistinguíveis dos protestantes brancos. Em outras palavras: eles receberam exatamente o que pediram.

“Uma das coisas que achei mais interessante ao longo dos anos”, disse Greg Smith, diretor associado de pesquisa em religião do Pew Research Center, “é que, se você olhar as opiniões dos católicos sobre uma variedade de questões políticas, vai ver muito claramente que os católicos tendem a expressar opiniões que estão mais de acordo com as posições de seu partido do que com as posições de sua igreja”.

Quando se trata de aborto, os católicos republicanos são a favor da proibição na maioria ou em todos os casos; quando se trata de um muro na fronteira, eles são muito favoráveis. O inverso se aplica aos democratas católicos, embora o Papa Francisco tenha falado enfaticamente contra o aborto e a favor dos imigrantes e refugiados.

O discurso de Kennedy em Houston foi de fato profético: nenhum prelado, morto ou vivo, parece capaz de influenciar a política dos católicos americanos hoje em dia. Na verdade, as censuras proferidas por autoridades da Igreja significam pouco para os políticos católicos de qualquer um dos partidos.

Em 2012, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos publicou várias cartas que havia escrito aos líderes das comissões do Congresso, pedindo que atendessem aos princípios da fé na definição do orçamento federal para 2013 – mais especificamente, para que não cortassem os fundos para a alimentação e outros programas de bem-estar social.

O deputado Paul Ryan, católico convicto, deturpou as mensagens e depois as ignorou. Em 2008, o bispo John Ricard escreveu uma carta aberta ao então senador Biden para questionar, nos termos mais gentis, se ele deveria receber a comunhão, dada sua oposição às restrições ao aborto. Ao bispo Ricard, logo se juntaram muitos outros, e Biden foi proibido de receber a comunhão em outubro passado por esse mesmo motivo.

Como no caso de Ryan, tudo isso deu em nada. E este é o resultado tanto do que os católicos esperançosos de 1960 ganharam quanto do que perderam. A direita católica não perdeu a influência política – ao contrário, vários católicos ricos e de direita apoiam abertamente Trump, entre eles Kenneth Langone, o bilionário por trás do Home Depot, e Tom Monaghan, o fundador da Domino’s Pizza.

Todos os cinco juízes da maioria conservadora da Suprema Corte foram criados como católicos. Acontece que a direita católica já não é reconhecidamente católica. Sua política é mais ou menos idêntica à dos outros membros da coalizão cristã de direita. Uma pesquisa do Pew conduzida em agosto revelou que cerca de 60% dos católicos brancos devem votar em Donald Trump – idêntico ao número de protestantes brancos não evangélicos que planejam votar nele. O que resta da esquerda católica teve um destino ainda mais debilitante.

“Franklin Delano Roosevelt trouxe muitos católicos para o Partido Democrata”, disse Cajka, referindo-se aos impressionantes 70% a 81% dos votos católicos que FDR conquistou em 1936, “e eles trouxeram consigo suas crenças na justiça social e no salário mínimo. Este foi o ponto alto da política de inclinação católica que realmente viria a afetar a redistribuição da riqueza. De lá para cá, o catolicismo acompanhou a tendência neoliberal”.

Embora goste de se comparar a Roosevelt, Biden reluta em se associar a qualquer coisa parecida com o radicalismo do New Deal, sugerindo que, mesmo que o Congresso aprovasse o “Medicare para todos”, ele o vetaria como presidente. Ainda existem pequenos vestígios das sensibilidades que criaram e sustentaram a intensa política ativista pró-pobre do catolicismo no início do século 20, mas a ameaça pró-trabalho e anticapitalista que a esquerda católica chegou a representar para o establishment político diminuiu bastante.

Biden poderia tomar o exemplo do Papa Francisco como modelo para um tipo de catolicismo que é piedoso, mas, ao mesmo tempo, desafia os poderes constituídos – caso ele, ou qualquer outra pessoa, estivesse interessado nesse tipo de coisa. “Biden tem a oportunidade de realmente captar o que pode ser a cara de uma identidade católica pós-Vaticano II”, observou Mazzenga.

“Ele tem a oportunidade de falar com grupos católicos liberais estimulados pelo ativismo antirracismo, pelo ativismo anti-armas, pelo ativismo ambiental. Mas não está fazendo isso”. Cajka concordou: “Um bom seguidor do Papa Francisco deveria representar uma ameaça à classe dominante americana”, disse ele.

Mas o histórico de Biden não é nada radical, mesmo quando se trata de sindicatos, guerra e previdência social. O que quer dizer que ele é um democrata comum – e deixa esse traço mais ou menos explícito em seus discursos. Talvez os católicos tenham conquistado o direito de não serem discriminados, o privilégio de poderem se mesclar perfeitamente com o cenário social e político dos Estados Unidos, a liberdade de não terem obrigações morais especiais. Uma liberdade ampla, estéril e inexpressiva. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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