A jornada da minha família para conseguir tomar a vacina contra a covid em três continentes


Estamos espalhados pelo mundo e à mercê da geopolítica da vacina. Quando seríamos finalmente imunizados?

Por Pui-Wing Tam

No início de fevereiro, minha irmã postou um vídeo no nosso grupo de família no WhatsApp. Era uma reportagem de sete minutos da CNN sobre o Malavi, país na África Oriental que é um dos mais pobres do mundo. Não se encontravam vacinas contra o coronavírus no Malavi, dizia a reportagem, porque os países mais ricos estavam monopolizando os fornecimentos.

O vídeo focalizava o Hospital Central Rainha Elizabeth em Blantyre, a segunda cidade mais populosa do país, mostrando a terrível situação em que o hospital se encontrava na batalha contra o vírus. Os funcionários estavam cuidando dos pacientes infectados, mas tinham poucas perspectivas de se vacinarem a curto prazo.

Pui-Wing Tam (dir.)e sua irmã Pui Ling Tam. Muitas famílias estão à mercê de um jogo global de geopolítica de vacinas. Foto: Cayce Clifford/The New York Times
continua após a publicidade

Minha irmã Pui-Ying, pediatra, era um destes trabalhadores sem proteção.

"Sinto que você tenha de enfrentar isto ", escrevi desajeitadamente.

O que não escrevera era uma pergunta: Será que Pui-Ying, médica da linha de frente que teria sido vacinada contra a covid-19 meses atrás se ela trabalhasse nos Estados Unidos, será a última da minha família a ser imunizada?

continua após a publicidade

Há mais de um ano, a pandemia divide as famílias em todo o mundo, com parentes impossibilitados de viajar para se visitarem sem temer pela própria saúde, esperando que as quarentenas acabem e com toda a burocracia. Mas mesmo com a oferta de vacinas, as esperanças de reuniões têm sido temperadas pela natureza extremamente desorganizada da distribuição.

Muitas famílias estão à mercê do jogo global da geopolítica da vacina, enquanto os países mais ricos se esforçam para equilibrar a imunização dos seus cidadãos sem fornecer vacinas para outros. Algumas nações não têm nenhuma dose. Onde há doses, há também problemas tecnológicos, desinformação sobre as vacinas e dúvidas pessoais sobre segurança e eficácia da vacinação.

A minha família, espalhada por três continentes é o mirocosmo destas forças. Nossos pais vivem em Hong Kong; Pui-Ying em Blantyre; e outra irmã, Pui Ling e eu em São Francisco. Estamos separados por muitos fusos horários e milhares de quilômetros.

continua após a publicidade

Os meus pais se preocupam com a segurança das vacinas; a sua ansiedade é alimentada por uma combinação de informações da mídia, por seus pontos de vista políticos e histórias sobre a sua saúde. Pui Ling e eu nos queixamos da nossa situação caótica local a respeito da vacina, sabendo que logo teríamos a nossa chance – enquanto Pui-Ying, que trabalha em uma enfermaria de dois quartos destinada a crianças com covid, se perguntava se algum dia receberia a sua dose.

A dra. Kate O’Brien, diretora de imunizações e vacinas da Organização Mundial da Saúde, disse que o que a nossa família estava enfrentando é o resultado de uma série de “abordagens muito desordenadas e incoerentes, em que cada país toma decisões dentro do seu próprio contexto”. Muitas famílias – incluindo a dela – enfrentam as mesmas desigualdades, afirmou.

Quando os países conseguem as vacinas, em geral dão prioridade e acesso aos grupos de maior risco, como os trabalhadores da área da saúde e os idosos. Se for este o caso da minha família, Pui-Ying estaria na linha de frente juntamente com papai e mamãe, que têm  aproximadamente 75 anos. Pui Ling, que trabalha em uma fundação, e eu, editora do New York Times, estaríamos no final da fila.

continua após a publicidade

Mas não foi assim que aconteceu.

Os pais de Pui-Wing Tam em Hong Kong. Foto: Lam-Yik Fei/The New York Times

Hong Kong

continua após a publicidade

Quando a Grã-Bretanha e os Estados Unidos começaram a aplicar as vacinas, em dezembro, mamãe e papai nos surpreenderam. Talvez, afirmaram durante chamada pelo WhatsApp, eles não se vacinariam. E se as doses não fossem seguras?

Fiquei chocada. O coronavírus tornou impossível nos vermos pessoalmente. Hong Kong, uma cidade densamente povoada de 7,5 milhões de habitantes, instituiu normas rigorosas para as viagens e a quarentena. Nos EUA, a pandemia estava fora de controle. As vacinas eram o instrumento para nos libertar de um ano de duras restrições.

E os meus pais não eram do tipo de cair nas teorias da conspiração contra a vacina. O que é que eu não estava sabendo?

continua após a publicidade

A maneira de pensar dos nossos pais evoluiu. Ajudou o fato de um tio de 80 anos de Tallahassee, Florida, ser vacinado em janeiro. Ele foi o primeiro da nossa grande família a ser imunizado e a notícia provocou grande agitação em uma ligação do WhatsApp entre nossos tios, tias e pais. “Seria mais seguro tomá-la” e não o contrário, concluiu meu pai.

Então, ocorreu outro fato inesperado. Mamãe e papai anunciaram que queriam tomar somente vacinas fabricadas na China. Pelo menos quatro farmacêuticas chinesas, como a Sinovac e a Sinopharm, haviam desenvolvido vacinas contra a covid, ingressando em um campo que incluía também a AstraZeneca da Grã-Bretanha e da Suécia, o Gamaleya Research Institute da Rússia e a Johnson & Johnson, Moderna e Pfizer dos Estados Unidos, a última das quais se associou à companhia alemã BioNTech.

Por fim, a questão de que vacina eles poderiam tomar foi ditada não pelo nacionalismo, mas pela oferta. No final de fevereiro, Hong Kong recebeu suas primeiras remessas de vacinas: 1 milhão de doses da Sinovac. (Hong Kong receberia posteriormente 585 mil doses da vacina da BioNTech via uma companhia chinesa, a Fosun.)

No dia 22 de fevereiro, mamãe me mandou uma mensagem dizendo que ela e papai haviam sido cadastrados para o dia 11 de março receberem a primeira dose, seguida pela segunda em abril. Um dia depois, ela contou que papai não havia pressionado o botão para confirmar a vez deles no sistema de reservas on-line e havia perdido as datas.

Na semana seguinte, mandaram nova mensagem: Eles haviam ido a uma clínica privada que estava distribuindo doses da Sinovac. Após uma breve espera, receberam a vacina. No dia 2 de abril, eles disseram que haviam recebido a segunda dose da Sinovac e estavam se sentindo muito bem. Mamãe resmungou que, embora tivessem o horário já marcado, “ainda precisaram esperar meia hora”.

Dr. Pui-Ying Tam posa durante sua primeira dose de vacina contra a covid-19 no Malavi. Foto: Pui-Ying Tam via The New York Times

Blantyre, Malavi

Pui-Ying mudou-se com a família para o Malavi em 2016 para trabalhar como médica e em pesquisas clínicas sobre saúde infantil. As pesquisas no Hospital Central Rainha Elizabeth, onde ela se encontra, eram limitadas. Quando a organização assistencial de Madonna ajudou a financiar uma nova ala infantil no hospital, inaugurada em 2017, foi um acontecimento.

As equipes de suporte já eram reduzidas antes mesmo do coronavírus, disse Pui-Ying. Quando chegou a pandemia, o hospital decidiu diminuir a exposição da equipe à covid-19 fazendo os funcionários trabalharem em semanas alternadas, enquanto garantia que um número suficiente de médicos profissionais atendesse o tempo todo. Máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção eram escassos.

Na pediatria, Pui-Ying e seus colegas criaram uma “zona de respiração” para crianças com covid-19, constituída essencialmente por  uma ala de dois quartos, com cerca de 12 camas no cômodo principal. O segundo cômodo, que era uma unidade de isolamento, tinha espaço para quatro crianças.

O Malavi manteve o vírus sob controle por um tempo. Mas em dezembro, o país foi tomado por uma segunda onda, possivelmente sobrecarregada por uma variante sul-africana. A certa altura, as taxas de testes positivos para a covid-19 chegaram a 40%, disse a dra. Queen Dube, que era a diretora do departamento de pediatria do Hospital Central Rainha Elizabeth e recentemente foi nomeada responsável pelos serviços de saúde do Ministério da Saúde do Malavi. (Em comparação, o pico nos EUA chegou a 22% em abril do ano passado, segundo a Universidade Johns Hopkins.)

No início de março, depois de uma solicitação ao governo do Malavi, a iniciativa de compartilhamento da vacina COVAX enviou 360 mil doses da AstraZeneca. Quando a remessa chegou ao aeroporto da capital do país, Lilongwe, os trabalhadores da saúde que a aguardavam foram fotografados fazendo sinais de V para comemorar. A má notícia foi que a remessa cobria menos de 2% da população.

Dube informou que esperava para dentro em breve outras 960 mil doses. O objetivo é poder vacinar 60% do país até o fim do ano que vem. Por outro lado, os Estados Unidos estão imunizando mais de 3 milhões de pessoas por dia, e todos os adultos que quiserem a vacina poderão obtê-la até a metade do ano.

No meio tempo, todas as doses existentes haviam sido destinadas aos grupos de alto risco. Pui-Ying, que tinha direito a uma, disse que estava emocionada e esperava conseguir uma dose nos próximos dias.

São Francisco

Enquanto Pui-Ying esperava a chegada de uma vacina, a situação na Califórnia melhorou.

À medida que as vacinas se tornaram disponíveis no estado, colegas e amigos pediam que as pessoas se cadastrassem ou procurassem as sobras, e enviaram listas de vários locais de vacinação. Eu me cadastrei para uma dose.

Na tarde de 10 de março, recebi uma das últimas doses de Pfizer-BioNTech do dia em uma farmácia da Walgreens. Um farmacêutico enfezado me injetou a vacina numa área reservada da farmácia mal iluminada. Estranhamente, foi um momento de anti-clímax. Mas depois de um ano de lockdown, foi um grande alívio.

Mandei a boa notícia para mamãe e papai, com muitos pontos de exclamação. Eles ficaram felizes e imediatamente me perguntaram se eu senti efeitos colaterais. (Não senti nenhum, com exceção do ombro ligeiramente dolorido). Chamei Pui Ling e supliquei que ela procurasse uma dose. Ela disse que esperaria, e que sabia que a sua vez acabaria chegando logo.

Poucos dias mais tarde, mamãe enviou uma foto para o nosso grupo no WhatsApp. Era de Pui-Ying, com a máscara e uma manga da sua camiseta levantada. Ela estava recebendo uma dose de AstraZeneca fora do Hospital Central Rainha Elizabeth. O Malavi começou a vacinar a população no dia 11 de março, quando uma transmissão ao vivo mostrou altas autoridades sendo imunizadas. Pui-Ying recebeu a sua cinco dias mais tarde. Eu recebi a minha seis dias antes da minha irmã, a médica da linha de frente.

Em um telefonema, eu falei para Pui-Ying que parecia que ela estava sorrindo por baixo de sua máscara enquanto tomava a vacina. "Eu estava!", ela disse.

Perguntei quanto ela tomará a segunda dose. "Maio", ela disse.

Eu tomei a minha em 7 de abril. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No início de fevereiro, minha irmã postou um vídeo no nosso grupo de família no WhatsApp. Era uma reportagem de sete minutos da CNN sobre o Malavi, país na África Oriental que é um dos mais pobres do mundo. Não se encontravam vacinas contra o coronavírus no Malavi, dizia a reportagem, porque os países mais ricos estavam monopolizando os fornecimentos.

O vídeo focalizava o Hospital Central Rainha Elizabeth em Blantyre, a segunda cidade mais populosa do país, mostrando a terrível situação em que o hospital se encontrava na batalha contra o vírus. Os funcionários estavam cuidando dos pacientes infectados, mas tinham poucas perspectivas de se vacinarem a curto prazo.

Pui-Wing Tam (dir.)e sua irmã Pui Ling Tam. Muitas famílias estão à mercê de um jogo global de geopolítica de vacinas. Foto: Cayce Clifford/The New York Times

Minha irmã Pui-Ying, pediatra, era um destes trabalhadores sem proteção.

"Sinto que você tenha de enfrentar isto ", escrevi desajeitadamente.

O que não escrevera era uma pergunta: Será que Pui-Ying, médica da linha de frente que teria sido vacinada contra a covid-19 meses atrás se ela trabalhasse nos Estados Unidos, será a última da minha família a ser imunizada?

Há mais de um ano, a pandemia divide as famílias em todo o mundo, com parentes impossibilitados de viajar para se visitarem sem temer pela própria saúde, esperando que as quarentenas acabem e com toda a burocracia. Mas mesmo com a oferta de vacinas, as esperanças de reuniões têm sido temperadas pela natureza extremamente desorganizada da distribuição.

Muitas famílias estão à mercê do jogo global da geopolítica da vacina, enquanto os países mais ricos se esforçam para equilibrar a imunização dos seus cidadãos sem fornecer vacinas para outros. Algumas nações não têm nenhuma dose. Onde há doses, há também problemas tecnológicos, desinformação sobre as vacinas e dúvidas pessoais sobre segurança e eficácia da vacinação.

A minha família, espalhada por três continentes é o mirocosmo destas forças. Nossos pais vivem em Hong Kong; Pui-Ying em Blantyre; e outra irmã, Pui Ling e eu em São Francisco. Estamos separados por muitos fusos horários e milhares de quilômetros.

Os meus pais se preocupam com a segurança das vacinas; a sua ansiedade é alimentada por uma combinação de informações da mídia, por seus pontos de vista políticos e histórias sobre a sua saúde. Pui Ling e eu nos queixamos da nossa situação caótica local a respeito da vacina, sabendo que logo teríamos a nossa chance – enquanto Pui-Ying, que trabalha em uma enfermaria de dois quartos destinada a crianças com covid, se perguntava se algum dia receberia a sua dose.

A dra. Kate O’Brien, diretora de imunizações e vacinas da Organização Mundial da Saúde, disse que o que a nossa família estava enfrentando é o resultado de uma série de “abordagens muito desordenadas e incoerentes, em que cada país toma decisões dentro do seu próprio contexto”. Muitas famílias – incluindo a dela – enfrentam as mesmas desigualdades, afirmou.

Quando os países conseguem as vacinas, em geral dão prioridade e acesso aos grupos de maior risco, como os trabalhadores da área da saúde e os idosos. Se for este o caso da minha família, Pui-Ying estaria na linha de frente juntamente com papai e mamãe, que têm  aproximadamente 75 anos. Pui Ling, que trabalha em uma fundação, e eu, editora do New York Times, estaríamos no final da fila.

Mas não foi assim que aconteceu.

Os pais de Pui-Wing Tam em Hong Kong. Foto: Lam-Yik Fei/The New York Times

Hong Kong

Quando a Grã-Bretanha e os Estados Unidos começaram a aplicar as vacinas, em dezembro, mamãe e papai nos surpreenderam. Talvez, afirmaram durante chamada pelo WhatsApp, eles não se vacinariam. E se as doses não fossem seguras?

Fiquei chocada. O coronavírus tornou impossível nos vermos pessoalmente. Hong Kong, uma cidade densamente povoada de 7,5 milhões de habitantes, instituiu normas rigorosas para as viagens e a quarentena. Nos EUA, a pandemia estava fora de controle. As vacinas eram o instrumento para nos libertar de um ano de duras restrições.

E os meus pais não eram do tipo de cair nas teorias da conspiração contra a vacina. O que é que eu não estava sabendo?

A maneira de pensar dos nossos pais evoluiu. Ajudou o fato de um tio de 80 anos de Tallahassee, Florida, ser vacinado em janeiro. Ele foi o primeiro da nossa grande família a ser imunizado e a notícia provocou grande agitação em uma ligação do WhatsApp entre nossos tios, tias e pais. “Seria mais seguro tomá-la” e não o contrário, concluiu meu pai.

Então, ocorreu outro fato inesperado. Mamãe e papai anunciaram que queriam tomar somente vacinas fabricadas na China. Pelo menos quatro farmacêuticas chinesas, como a Sinovac e a Sinopharm, haviam desenvolvido vacinas contra a covid, ingressando em um campo que incluía também a AstraZeneca da Grã-Bretanha e da Suécia, o Gamaleya Research Institute da Rússia e a Johnson & Johnson, Moderna e Pfizer dos Estados Unidos, a última das quais se associou à companhia alemã BioNTech.

Por fim, a questão de que vacina eles poderiam tomar foi ditada não pelo nacionalismo, mas pela oferta. No final de fevereiro, Hong Kong recebeu suas primeiras remessas de vacinas: 1 milhão de doses da Sinovac. (Hong Kong receberia posteriormente 585 mil doses da vacina da BioNTech via uma companhia chinesa, a Fosun.)

No dia 22 de fevereiro, mamãe me mandou uma mensagem dizendo que ela e papai haviam sido cadastrados para o dia 11 de março receberem a primeira dose, seguida pela segunda em abril. Um dia depois, ela contou que papai não havia pressionado o botão para confirmar a vez deles no sistema de reservas on-line e havia perdido as datas.

Na semana seguinte, mandaram nova mensagem: Eles haviam ido a uma clínica privada que estava distribuindo doses da Sinovac. Após uma breve espera, receberam a vacina. No dia 2 de abril, eles disseram que haviam recebido a segunda dose da Sinovac e estavam se sentindo muito bem. Mamãe resmungou que, embora tivessem o horário já marcado, “ainda precisaram esperar meia hora”.

Dr. Pui-Ying Tam posa durante sua primeira dose de vacina contra a covid-19 no Malavi. Foto: Pui-Ying Tam via The New York Times

Blantyre, Malavi

Pui-Ying mudou-se com a família para o Malavi em 2016 para trabalhar como médica e em pesquisas clínicas sobre saúde infantil. As pesquisas no Hospital Central Rainha Elizabeth, onde ela se encontra, eram limitadas. Quando a organização assistencial de Madonna ajudou a financiar uma nova ala infantil no hospital, inaugurada em 2017, foi um acontecimento.

As equipes de suporte já eram reduzidas antes mesmo do coronavírus, disse Pui-Ying. Quando chegou a pandemia, o hospital decidiu diminuir a exposição da equipe à covid-19 fazendo os funcionários trabalharem em semanas alternadas, enquanto garantia que um número suficiente de médicos profissionais atendesse o tempo todo. Máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção eram escassos.

Na pediatria, Pui-Ying e seus colegas criaram uma “zona de respiração” para crianças com covid-19, constituída essencialmente por  uma ala de dois quartos, com cerca de 12 camas no cômodo principal. O segundo cômodo, que era uma unidade de isolamento, tinha espaço para quatro crianças.

O Malavi manteve o vírus sob controle por um tempo. Mas em dezembro, o país foi tomado por uma segunda onda, possivelmente sobrecarregada por uma variante sul-africana. A certa altura, as taxas de testes positivos para a covid-19 chegaram a 40%, disse a dra. Queen Dube, que era a diretora do departamento de pediatria do Hospital Central Rainha Elizabeth e recentemente foi nomeada responsável pelos serviços de saúde do Ministério da Saúde do Malavi. (Em comparação, o pico nos EUA chegou a 22% em abril do ano passado, segundo a Universidade Johns Hopkins.)

No início de março, depois de uma solicitação ao governo do Malavi, a iniciativa de compartilhamento da vacina COVAX enviou 360 mil doses da AstraZeneca. Quando a remessa chegou ao aeroporto da capital do país, Lilongwe, os trabalhadores da saúde que a aguardavam foram fotografados fazendo sinais de V para comemorar. A má notícia foi que a remessa cobria menos de 2% da população.

Dube informou que esperava para dentro em breve outras 960 mil doses. O objetivo é poder vacinar 60% do país até o fim do ano que vem. Por outro lado, os Estados Unidos estão imunizando mais de 3 milhões de pessoas por dia, e todos os adultos que quiserem a vacina poderão obtê-la até a metade do ano.

No meio tempo, todas as doses existentes haviam sido destinadas aos grupos de alto risco. Pui-Ying, que tinha direito a uma, disse que estava emocionada e esperava conseguir uma dose nos próximos dias.

São Francisco

Enquanto Pui-Ying esperava a chegada de uma vacina, a situação na Califórnia melhorou.

À medida que as vacinas se tornaram disponíveis no estado, colegas e amigos pediam que as pessoas se cadastrassem ou procurassem as sobras, e enviaram listas de vários locais de vacinação. Eu me cadastrei para uma dose.

Na tarde de 10 de março, recebi uma das últimas doses de Pfizer-BioNTech do dia em uma farmácia da Walgreens. Um farmacêutico enfezado me injetou a vacina numa área reservada da farmácia mal iluminada. Estranhamente, foi um momento de anti-clímax. Mas depois de um ano de lockdown, foi um grande alívio.

Mandei a boa notícia para mamãe e papai, com muitos pontos de exclamação. Eles ficaram felizes e imediatamente me perguntaram se eu senti efeitos colaterais. (Não senti nenhum, com exceção do ombro ligeiramente dolorido). Chamei Pui Ling e supliquei que ela procurasse uma dose. Ela disse que esperaria, e que sabia que a sua vez acabaria chegando logo.

Poucos dias mais tarde, mamãe enviou uma foto para o nosso grupo no WhatsApp. Era de Pui-Ying, com a máscara e uma manga da sua camiseta levantada. Ela estava recebendo uma dose de AstraZeneca fora do Hospital Central Rainha Elizabeth. O Malavi começou a vacinar a população no dia 11 de março, quando uma transmissão ao vivo mostrou altas autoridades sendo imunizadas. Pui-Ying recebeu a sua cinco dias mais tarde. Eu recebi a minha seis dias antes da minha irmã, a médica da linha de frente.

Em um telefonema, eu falei para Pui-Ying que parecia que ela estava sorrindo por baixo de sua máscara enquanto tomava a vacina. "Eu estava!", ela disse.

Perguntei quanto ela tomará a segunda dose. "Maio", ela disse.

Eu tomei a minha em 7 de abril. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No início de fevereiro, minha irmã postou um vídeo no nosso grupo de família no WhatsApp. Era uma reportagem de sete minutos da CNN sobre o Malavi, país na África Oriental que é um dos mais pobres do mundo. Não se encontravam vacinas contra o coronavírus no Malavi, dizia a reportagem, porque os países mais ricos estavam monopolizando os fornecimentos.

O vídeo focalizava o Hospital Central Rainha Elizabeth em Blantyre, a segunda cidade mais populosa do país, mostrando a terrível situação em que o hospital se encontrava na batalha contra o vírus. Os funcionários estavam cuidando dos pacientes infectados, mas tinham poucas perspectivas de se vacinarem a curto prazo.

Pui-Wing Tam (dir.)e sua irmã Pui Ling Tam. Muitas famílias estão à mercê de um jogo global de geopolítica de vacinas. Foto: Cayce Clifford/The New York Times

Minha irmã Pui-Ying, pediatra, era um destes trabalhadores sem proteção.

"Sinto que você tenha de enfrentar isto ", escrevi desajeitadamente.

O que não escrevera era uma pergunta: Será que Pui-Ying, médica da linha de frente que teria sido vacinada contra a covid-19 meses atrás se ela trabalhasse nos Estados Unidos, será a última da minha família a ser imunizada?

Há mais de um ano, a pandemia divide as famílias em todo o mundo, com parentes impossibilitados de viajar para se visitarem sem temer pela própria saúde, esperando que as quarentenas acabem e com toda a burocracia. Mas mesmo com a oferta de vacinas, as esperanças de reuniões têm sido temperadas pela natureza extremamente desorganizada da distribuição.

Muitas famílias estão à mercê do jogo global da geopolítica da vacina, enquanto os países mais ricos se esforçam para equilibrar a imunização dos seus cidadãos sem fornecer vacinas para outros. Algumas nações não têm nenhuma dose. Onde há doses, há também problemas tecnológicos, desinformação sobre as vacinas e dúvidas pessoais sobre segurança e eficácia da vacinação.

A minha família, espalhada por três continentes é o mirocosmo destas forças. Nossos pais vivem em Hong Kong; Pui-Ying em Blantyre; e outra irmã, Pui Ling e eu em São Francisco. Estamos separados por muitos fusos horários e milhares de quilômetros.

Os meus pais se preocupam com a segurança das vacinas; a sua ansiedade é alimentada por uma combinação de informações da mídia, por seus pontos de vista políticos e histórias sobre a sua saúde. Pui Ling e eu nos queixamos da nossa situação caótica local a respeito da vacina, sabendo que logo teríamos a nossa chance – enquanto Pui-Ying, que trabalha em uma enfermaria de dois quartos destinada a crianças com covid, se perguntava se algum dia receberia a sua dose.

A dra. Kate O’Brien, diretora de imunizações e vacinas da Organização Mundial da Saúde, disse que o que a nossa família estava enfrentando é o resultado de uma série de “abordagens muito desordenadas e incoerentes, em que cada país toma decisões dentro do seu próprio contexto”. Muitas famílias – incluindo a dela – enfrentam as mesmas desigualdades, afirmou.

Quando os países conseguem as vacinas, em geral dão prioridade e acesso aos grupos de maior risco, como os trabalhadores da área da saúde e os idosos. Se for este o caso da minha família, Pui-Ying estaria na linha de frente juntamente com papai e mamãe, que têm  aproximadamente 75 anos. Pui Ling, que trabalha em uma fundação, e eu, editora do New York Times, estaríamos no final da fila.

Mas não foi assim que aconteceu.

Os pais de Pui-Wing Tam em Hong Kong. Foto: Lam-Yik Fei/The New York Times

Hong Kong

Quando a Grã-Bretanha e os Estados Unidos começaram a aplicar as vacinas, em dezembro, mamãe e papai nos surpreenderam. Talvez, afirmaram durante chamada pelo WhatsApp, eles não se vacinariam. E se as doses não fossem seguras?

Fiquei chocada. O coronavírus tornou impossível nos vermos pessoalmente. Hong Kong, uma cidade densamente povoada de 7,5 milhões de habitantes, instituiu normas rigorosas para as viagens e a quarentena. Nos EUA, a pandemia estava fora de controle. As vacinas eram o instrumento para nos libertar de um ano de duras restrições.

E os meus pais não eram do tipo de cair nas teorias da conspiração contra a vacina. O que é que eu não estava sabendo?

A maneira de pensar dos nossos pais evoluiu. Ajudou o fato de um tio de 80 anos de Tallahassee, Florida, ser vacinado em janeiro. Ele foi o primeiro da nossa grande família a ser imunizado e a notícia provocou grande agitação em uma ligação do WhatsApp entre nossos tios, tias e pais. “Seria mais seguro tomá-la” e não o contrário, concluiu meu pai.

Então, ocorreu outro fato inesperado. Mamãe e papai anunciaram que queriam tomar somente vacinas fabricadas na China. Pelo menos quatro farmacêuticas chinesas, como a Sinovac e a Sinopharm, haviam desenvolvido vacinas contra a covid, ingressando em um campo que incluía também a AstraZeneca da Grã-Bretanha e da Suécia, o Gamaleya Research Institute da Rússia e a Johnson & Johnson, Moderna e Pfizer dos Estados Unidos, a última das quais se associou à companhia alemã BioNTech.

Por fim, a questão de que vacina eles poderiam tomar foi ditada não pelo nacionalismo, mas pela oferta. No final de fevereiro, Hong Kong recebeu suas primeiras remessas de vacinas: 1 milhão de doses da Sinovac. (Hong Kong receberia posteriormente 585 mil doses da vacina da BioNTech via uma companhia chinesa, a Fosun.)

No dia 22 de fevereiro, mamãe me mandou uma mensagem dizendo que ela e papai haviam sido cadastrados para o dia 11 de março receberem a primeira dose, seguida pela segunda em abril. Um dia depois, ela contou que papai não havia pressionado o botão para confirmar a vez deles no sistema de reservas on-line e havia perdido as datas.

Na semana seguinte, mandaram nova mensagem: Eles haviam ido a uma clínica privada que estava distribuindo doses da Sinovac. Após uma breve espera, receberam a vacina. No dia 2 de abril, eles disseram que haviam recebido a segunda dose da Sinovac e estavam se sentindo muito bem. Mamãe resmungou que, embora tivessem o horário já marcado, “ainda precisaram esperar meia hora”.

Dr. Pui-Ying Tam posa durante sua primeira dose de vacina contra a covid-19 no Malavi. Foto: Pui-Ying Tam via The New York Times

Blantyre, Malavi

Pui-Ying mudou-se com a família para o Malavi em 2016 para trabalhar como médica e em pesquisas clínicas sobre saúde infantil. As pesquisas no Hospital Central Rainha Elizabeth, onde ela se encontra, eram limitadas. Quando a organização assistencial de Madonna ajudou a financiar uma nova ala infantil no hospital, inaugurada em 2017, foi um acontecimento.

As equipes de suporte já eram reduzidas antes mesmo do coronavírus, disse Pui-Ying. Quando chegou a pandemia, o hospital decidiu diminuir a exposição da equipe à covid-19 fazendo os funcionários trabalharem em semanas alternadas, enquanto garantia que um número suficiente de médicos profissionais atendesse o tempo todo. Máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção eram escassos.

Na pediatria, Pui-Ying e seus colegas criaram uma “zona de respiração” para crianças com covid-19, constituída essencialmente por  uma ala de dois quartos, com cerca de 12 camas no cômodo principal. O segundo cômodo, que era uma unidade de isolamento, tinha espaço para quatro crianças.

O Malavi manteve o vírus sob controle por um tempo. Mas em dezembro, o país foi tomado por uma segunda onda, possivelmente sobrecarregada por uma variante sul-africana. A certa altura, as taxas de testes positivos para a covid-19 chegaram a 40%, disse a dra. Queen Dube, que era a diretora do departamento de pediatria do Hospital Central Rainha Elizabeth e recentemente foi nomeada responsável pelos serviços de saúde do Ministério da Saúde do Malavi. (Em comparação, o pico nos EUA chegou a 22% em abril do ano passado, segundo a Universidade Johns Hopkins.)

No início de março, depois de uma solicitação ao governo do Malavi, a iniciativa de compartilhamento da vacina COVAX enviou 360 mil doses da AstraZeneca. Quando a remessa chegou ao aeroporto da capital do país, Lilongwe, os trabalhadores da saúde que a aguardavam foram fotografados fazendo sinais de V para comemorar. A má notícia foi que a remessa cobria menos de 2% da população.

Dube informou que esperava para dentro em breve outras 960 mil doses. O objetivo é poder vacinar 60% do país até o fim do ano que vem. Por outro lado, os Estados Unidos estão imunizando mais de 3 milhões de pessoas por dia, e todos os adultos que quiserem a vacina poderão obtê-la até a metade do ano.

No meio tempo, todas as doses existentes haviam sido destinadas aos grupos de alto risco. Pui-Ying, que tinha direito a uma, disse que estava emocionada e esperava conseguir uma dose nos próximos dias.

São Francisco

Enquanto Pui-Ying esperava a chegada de uma vacina, a situação na Califórnia melhorou.

À medida que as vacinas se tornaram disponíveis no estado, colegas e amigos pediam que as pessoas se cadastrassem ou procurassem as sobras, e enviaram listas de vários locais de vacinação. Eu me cadastrei para uma dose.

Na tarde de 10 de março, recebi uma das últimas doses de Pfizer-BioNTech do dia em uma farmácia da Walgreens. Um farmacêutico enfezado me injetou a vacina numa área reservada da farmácia mal iluminada. Estranhamente, foi um momento de anti-clímax. Mas depois de um ano de lockdown, foi um grande alívio.

Mandei a boa notícia para mamãe e papai, com muitos pontos de exclamação. Eles ficaram felizes e imediatamente me perguntaram se eu senti efeitos colaterais. (Não senti nenhum, com exceção do ombro ligeiramente dolorido). Chamei Pui Ling e supliquei que ela procurasse uma dose. Ela disse que esperaria, e que sabia que a sua vez acabaria chegando logo.

Poucos dias mais tarde, mamãe enviou uma foto para o nosso grupo no WhatsApp. Era de Pui-Ying, com a máscara e uma manga da sua camiseta levantada. Ela estava recebendo uma dose de AstraZeneca fora do Hospital Central Rainha Elizabeth. O Malavi começou a vacinar a população no dia 11 de março, quando uma transmissão ao vivo mostrou altas autoridades sendo imunizadas. Pui-Ying recebeu a sua cinco dias mais tarde. Eu recebi a minha seis dias antes da minha irmã, a médica da linha de frente.

Em um telefonema, eu falei para Pui-Ying que parecia que ela estava sorrindo por baixo de sua máscara enquanto tomava a vacina. "Eu estava!", ela disse.

Perguntei quanto ela tomará a segunda dose. "Maio", ela disse.

Eu tomei a minha em 7 de abril. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

No início de fevereiro, minha irmã postou um vídeo no nosso grupo de família no WhatsApp. Era uma reportagem de sete minutos da CNN sobre o Malavi, país na África Oriental que é um dos mais pobres do mundo. Não se encontravam vacinas contra o coronavírus no Malavi, dizia a reportagem, porque os países mais ricos estavam monopolizando os fornecimentos.

O vídeo focalizava o Hospital Central Rainha Elizabeth em Blantyre, a segunda cidade mais populosa do país, mostrando a terrível situação em que o hospital se encontrava na batalha contra o vírus. Os funcionários estavam cuidando dos pacientes infectados, mas tinham poucas perspectivas de se vacinarem a curto prazo.

Pui-Wing Tam (dir.)e sua irmã Pui Ling Tam. Muitas famílias estão à mercê de um jogo global de geopolítica de vacinas. Foto: Cayce Clifford/The New York Times

Minha irmã Pui-Ying, pediatra, era um destes trabalhadores sem proteção.

"Sinto que você tenha de enfrentar isto ", escrevi desajeitadamente.

O que não escrevera era uma pergunta: Será que Pui-Ying, médica da linha de frente que teria sido vacinada contra a covid-19 meses atrás se ela trabalhasse nos Estados Unidos, será a última da minha família a ser imunizada?

Há mais de um ano, a pandemia divide as famílias em todo o mundo, com parentes impossibilitados de viajar para se visitarem sem temer pela própria saúde, esperando que as quarentenas acabem e com toda a burocracia. Mas mesmo com a oferta de vacinas, as esperanças de reuniões têm sido temperadas pela natureza extremamente desorganizada da distribuição.

Muitas famílias estão à mercê do jogo global da geopolítica da vacina, enquanto os países mais ricos se esforçam para equilibrar a imunização dos seus cidadãos sem fornecer vacinas para outros. Algumas nações não têm nenhuma dose. Onde há doses, há também problemas tecnológicos, desinformação sobre as vacinas e dúvidas pessoais sobre segurança e eficácia da vacinação.

A minha família, espalhada por três continentes é o mirocosmo destas forças. Nossos pais vivem em Hong Kong; Pui-Ying em Blantyre; e outra irmã, Pui Ling e eu em São Francisco. Estamos separados por muitos fusos horários e milhares de quilômetros.

Os meus pais se preocupam com a segurança das vacinas; a sua ansiedade é alimentada por uma combinação de informações da mídia, por seus pontos de vista políticos e histórias sobre a sua saúde. Pui Ling e eu nos queixamos da nossa situação caótica local a respeito da vacina, sabendo que logo teríamos a nossa chance – enquanto Pui-Ying, que trabalha em uma enfermaria de dois quartos destinada a crianças com covid, se perguntava se algum dia receberia a sua dose.

A dra. Kate O’Brien, diretora de imunizações e vacinas da Organização Mundial da Saúde, disse que o que a nossa família estava enfrentando é o resultado de uma série de “abordagens muito desordenadas e incoerentes, em que cada país toma decisões dentro do seu próprio contexto”. Muitas famílias – incluindo a dela – enfrentam as mesmas desigualdades, afirmou.

Quando os países conseguem as vacinas, em geral dão prioridade e acesso aos grupos de maior risco, como os trabalhadores da área da saúde e os idosos. Se for este o caso da minha família, Pui-Ying estaria na linha de frente juntamente com papai e mamãe, que têm  aproximadamente 75 anos. Pui Ling, que trabalha em uma fundação, e eu, editora do New York Times, estaríamos no final da fila.

Mas não foi assim que aconteceu.

Os pais de Pui-Wing Tam em Hong Kong. Foto: Lam-Yik Fei/The New York Times

Hong Kong

Quando a Grã-Bretanha e os Estados Unidos começaram a aplicar as vacinas, em dezembro, mamãe e papai nos surpreenderam. Talvez, afirmaram durante chamada pelo WhatsApp, eles não se vacinariam. E se as doses não fossem seguras?

Fiquei chocada. O coronavírus tornou impossível nos vermos pessoalmente. Hong Kong, uma cidade densamente povoada de 7,5 milhões de habitantes, instituiu normas rigorosas para as viagens e a quarentena. Nos EUA, a pandemia estava fora de controle. As vacinas eram o instrumento para nos libertar de um ano de duras restrições.

E os meus pais não eram do tipo de cair nas teorias da conspiração contra a vacina. O que é que eu não estava sabendo?

A maneira de pensar dos nossos pais evoluiu. Ajudou o fato de um tio de 80 anos de Tallahassee, Florida, ser vacinado em janeiro. Ele foi o primeiro da nossa grande família a ser imunizado e a notícia provocou grande agitação em uma ligação do WhatsApp entre nossos tios, tias e pais. “Seria mais seguro tomá-la” e não o contrário, concluiu meu pai.

Então, ocorreu outro fato inesperado. Mamãe e papai anunciaram que queriam tomar somente vacinas fabricadas na China. Pelo menos quatro farmacêuticas chinesas, como a Sinovac e a Sinopharm, haviam desenvolvido vacinas contra a covid, ingressando em um campo que incluía também a AstraZeneca da Grã-Bretanha e da Suécia, o Gamaleya Research Institute da Rússia e a Johnson & Johnson, Moderna e Pfizer dos Estados Unidos, a última das quais se associou à companhia alemã BioNTech.

Por fim, a questão de que vacina eles poderiam tomar foi ditada não pelo nacionalismo, mas pela oferta. No final de fevereiro, Hong Kong recebeu suas primeiras remessas de vacinas: 1 milhão de doses da Sinovac. (Hong Kong receberia posteriormente 585 mil doses da vacina da BioNTech via uma companhia chinesa, a Fosun.)

No dia 22 de fevereiro, mamãe me mandou uma mensagem dizendo que ela e papai haviam sido cadastrados para o dia 11 de março receberem a primeira dose, seguida pela segunda em abril. Um dia depois, ela contou que papai não havia pressionado o botão para confirmar a vez deles no sistema de reservas on-line e havia perdido as datas.

Na semana seguinte, mandaram nova mensagem: Eles haviam ido a uma clínica privada que estava distribuindo doses da Sinovac. Após uma breve espera, receberam a vacina. No dia 2 de abril, eles disseram que haviam recebido a segunda dose da Sinovac e estavam se sentindo muito bem. Mamãe resmungou que, embora tivessem o horário já marcado, “ainda precisaram esperar meia hora”.

Dr. Pui-Ying Tam posa durante sua primeira dose de vacina contra a covid-19 no Malavi. Foto: Pui-Ying Tam via The New York Times

Blantyre, Malavi

Pui-Ying mudou-se com a família para o Malavi em 2016 para trabalhar como médica e em pesquisas clínicas sobre saúde infantil. As pesquisas no Hospital Central Rainha Elizabeth, onde ela se encontra, eram limitadas. Quando a organização assistencial de Madonna ajudou a financiar uma nova ala infantil no hospital, inaugurada em 2017, foi um acontecimento.

As equipes de suporte já eram reduzidas antes mesmo do coronavírus, disse Pui-Ying. Quando chegou a pandemia, o hospital decidiu diminuir a exposição da equipe à covid-19 fazendo os funcionários trabalharem em semanas alternadas, enquanto garantia que um número suficiente de médicos profissionais atendesse o tempo todo. Máscaras, luvas e outros equipamentos de proteção eram escassos.

Na pediatria, Pui-Ying e seus colegas criaram uma “zona de respiração” para crianças com covid-19, constituída essencialmente por  uma ala de dois quartos, com cerca de 12 camas no cômodo principal. O segundo cômodo, que era uma unidade de isolamento, tinha espaço para quatro crianças.

O Malavi manteve o vírus sob controle por um tempo. Mas em dezembro, o país foi tomado por uma segunda onda, possivelmente sobrecarregada por uma variante sul-africana. A certa altura, as taxas de testes positivos para a covid-19 chegaram a 40%, disse a dra. Queen Dube, que era a diretora do departamento de pediatria do Hospital Central Rainha Elizabeth e recentemente foi nomeada responsável pelos serviços de saúde do Ministério da Saúde do Malavi. (Em comparação, o pico nos EUA chegou a 22% em abril do ano passado, segundo a Universidade Johns Hopkins.)

No início de março, depois de uma solicitação ao governo do Malavi, a iniciativa de compartilhamento da vacina COVAX enviou 360 mil doses da AstraZeneca. Quando a remessa chegou ao aeroporto da capital do país, Lilongwe, os trabalhadores da saúde que a aguardavam foram fotografados fazendo sinais de V para comemorar. A má notícia foi que a remessa cobria menos de 2% da população.

Dube informou que esperava para dentro em breve outras 960 mil doses. O objetivo é poder vacinar 60% do país até o fim do ano que vem. Por outro lado, os Estados Unidos estão imunizando mais de 3 milhões de pessoas por dia, e todos os adultos que quiserem a vacina poderão obtê-la até a metade do ano.

No meio tempo, todas as doses existentes haviam sido destinadas aos grupos de alto risco. Pui-Ying, que tinha direito a uma, disse que estava emocionada e esperava conseguir uma dose nos próximos dias.

São Francisco

Enquanto Pui-Ying esperava a chegada de uma vacina, a situação na Califórnia melhorou.

À medida que as vacinas se tornaram disponíveis no estado, colegas e amigos pediam que as pessoas se cadastrassem ou procurassem as sobras, e enviaram listas de vários locais de vacinação. Eu me cadastrei para uma dose.

Na tarde de 10 de março, recebi uma das últimas doses de Pfizer-BioNTech do dia em uma farmácia da Walgreens. Um farmacêutico enfezado me injetou a vacina numa área reservada da farmácia mal iluminada. Estranhamente, foi um momento de anti-clímax. Mas depois de um ano de lockdown, foi um grande alívio.

Mandei a boa notícia para mamãe e papai, com muitos pontos de exclamação. Eles ficaram felizes e imediatamente me perguntaram se eu senti efeitos colaterais. (Não senti nenhum, com exceção do ombro ligeiramente dolorido). Chamei Pui Ling e supliquei que ela procurasse uma dose. Ela disse que esperaria, e que sabia que a sua vez acabaria chegando logo.

Poucos dias mais tarde, mamãe enviou uma foto para o nosso grupo no WhatsApp. Era de Pui-Ying, com a máscara e uma manga da sua camiseta levantada. Ela estava recebendo uma dose de AstraZeneca fora do Hospital Central Rainha Elizabeth. O Malavi começou a vacinar a população no dia 11 de março, quando uma transmissão ao vivo mostrou altas autoridades sendo imunizadas. Pui-Ying recebeu a sua cinco dias mais tarde. Eu recebi a minha seis dias antes da minha irmã, a médica da linha de frente.

Em um telefonema, eu falei para Pui-Ying que parecia que ela estava sorrindo por baixo de sua máscara enquanto tomava a vacina. "Eu estava!", ela disse.

Perguntei quanto ela tomará a segunda dose. "Maio", ela disse.

Eu tomei a minha em 7 de abril. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.