Pássaros sonham? Compreenda semelhanças e diferenças entre mentes de aves e humanos


Estudos mostraram atividades cerebrais durante o sono das aves que indicam que elas podem experimentar sonhar - inclusive que estão voando

Por Maria Popova (The New York Times)

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Certa vez sonhei com um beijo que ainda não tinha acontecido. Sonhei com cabeças se inclinando no ângulo certo, com meus dedos atrás da orelha dela, com a pressão perfeita dos lábios nessa transferência de confiança e ternura.

Sigmund Freud, que catalisou o estudo dos sonhos com seu tratado fundamental de 1899, teria descartado tudo isso como simples quimera do desejo inconsciente. Mas o que desde então descobrimos a respeito da mente – sobretudo do estágio do sono mais rico em sonhos, o sono com movimento rápido dos olhos (REM, na sigla em inglês), desconhecido na época de Freud – sugere outra possibilidade para a função adaptativa dessas vidas paralelas que vivemos durante a noite.

Numa manhã fria, não muito depois do sonho do beijo, fiquei observando uma jovem garça-noturna que dormia num galho sobre o lago do Brooklyn Bridge Park, em Nova York, com a cabeça encolhida no peito, e me perguntei se os pássaros sonham.

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O comportamento do cérebro de aves durante o sono indica que esses animais podem sonhar. Foto: Adara Sanchez/The New York Times

A ideia de que os animais não-humanos sonham remonta pelo menos aos dias de Aristóteles, que viu um cão adormecido latir e concluiu que se tratava de uma prova inequívoca de vida mental. Mas, quando René Descartes disparou o Iluminismo no século 17, ele já havia reduzido os outros animais a meros autômatos, contaminando séculos de ciência com a suposição de que qualquer coisa diferente de nós seria inerentemente inferior.

No século 19, quando o naturalista alemão Ludwig Edinger fez os primeiros estudos anatômicos do cérebro das aves e descobriu a ausência de um neocórtex – a camada mais externa e recente do cérebro, responsável pela cognição complexa e pela resolução criativa de problemas – ele descartou as aves como pouco mais do que marionetes cartesianas. Essa visão acabou sendo reforçada no século 20 pelo desvio, guiado por B.F. Skinner e seus pombos, para o behaviorismo, escola de pensamento que enxergava o comportamento como uma máquina de estímulo-e-resposta sob o jugo do reflexo, desconsiderando os estados mentais interiores e a reação emocional.

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Em 1861, apenas dois anos depois da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, um fóssil com cauda e mandíbulas de réptil, mas asas e fúrcula de pássaro, foi descoberto na Alemanha, levando à descoberta de que os pássaros tinham evoluído dos dinossauros. Desde então, aprendemos que, embora o último ancestral comum entre aves e humanos tenha mais de 300 milhões de anos, o cérebro dos pássaros é muito mais semelhante ao nosso do que ao dos répteis. A densidade neuronal de seu prosencéfalo – região envolvida no planejamento, no processamento sensorial e nas respostas emocionais, da qual o sono REM depende muito – é comparável à dos primatas. No nível celular, o cérebro dos pássaros canoros tem uma estrutura – a crista ventricular dorsal (DVR, na sigla em inglês) – parecida com o neocórtex dos mamíferos em termos de função e até mesmo de forma. (Em pombos e corujas, a crista ventricular dorsal é estruturada como o neocórtex humano, com circuitos neurais horizontais e verticais).

O cérebro das aves é capaz de feitos inimagináveis para nós, especialmente durante o sono: muitos pássaros dormem com um dos olhos abertos, mesmo durante o voo. Espécies migratórias que atravessam distâncias imensas à noite, como o maçarico-de-costas-brancas, que percorre os quase 12 mil quilômetros entre o Alasca e a Nova Zelândia em oito dias de voo contínuo, têm um sono unihemisférico, apagando a linha entre nossas categorias de sono e vigília.

Mas, se o sono é um comportamento físico observável, o sonho é uma experiência interior e invisível, tão misteriosa quanto o amor – um mistério para o qual a ciência trouxe a tecnologia de imagens do cérebro para iluminar a paisagem da mente de pássaros adormecidos.

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O primeiro eletroencefalograma (EEG) da atividade elétrica do cérebro humano foi registrado em 1924, mas só foi aplicado ao estudo do sono dos pássaros no século 21, com o auxílio ainda mais incipiente da ressonância magnética funcional (RMF), desenvolvida na década de 1990. As duas tecnologias se complementam. Ao registrar a atividade elétrica de grandes populações de neurônios perto da superfície cortical, o EEG rastreia o que os neurônios fazem de forma mais direta. Mas a RMF consegue identificar o local da atividade com mais precisão, por meio dos níveis de oxigênio no sangue. Os cientistas usaram essas tecnologias em conjunto para estudar os padrões de respostas das células durante o sono REM, na tentativa de deduzir o conteúdo dos sonhos.

Um estudo com mandarins, pássaros canoros que aprendem seu repertório de cantos, mapeou quais neurônios disparavam no prosencéfalo quando os pássaros cantavam notas de melodias específicas durante o dia. Depois, durante a fase REM, os neurônios dispararam em uma ordem semelhante: os pássaros pareciam estar ensaiando as músicas em seus sonhos.

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Um estudo de RMF com pombos descobriu que as regiões do cérebro encarregadas do processamento visual e da navegação espacial ficavam ativas durante a fase REM, assim como as regiões responsáveis pela ação das asas, embora os pássaros estivessem dormindo: parecia que eles estavam sonhando que voavam. A amígdala – um conjunto de núcleos responsáveis pela regulação emocional – também ficou ativa durante a fase REM, sugerindo sonhos repletos de sentimentos. Minha garça-noturna provavelmente também estava sonhando – o pescoço encolhido é um clássico marcador de atonia, a perda do tônus muscular característica do estado REM.

Mas a sugestão mais assustadora das pesquisas sobre o sono das aves é que, sem os sonhos delas, nós também poderíamos ficar sem sonhos. Sem garça, sem beijo.

Hoje conhecemos dois grupos principais de aves: as paleógnatas, que não voam, como o avestruz e o quiuí, que mantiveram certas características ancestrais dos répteis, e as neognatas, categoria que abrange todas as outras aves. Estudos com EEG de avestruzes adormecidos encontraram atividade semelhante ao REM no tronco cerebral – uma parte mais antiga do cérebro. Já nas aves modernas, assim como nos mamíferos, essa atividade semelhante ao REM ocorre principalmente no prosencéfalo, desenvolvido mais recentemente.

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Vários estudos sobre o sono dos monotremados – mamíferos que põem ovos, como o ornitorrinco e a equidna, elo evolutivo entre nós e os pássaros – também revelam atividade semelhante à do REM no tronco cerebral, sugerindo que esse foi o cadinho ancestral do REM antes de ele migrar aos poucos para o prosencéfalo.

Se isso for verdade, o cérebro das aves talvez tenha sido o lugar onde a evolução desenhou os sonhos – a câmara secreta ao lado da nossa consciência desperta onde continuamos a refletir sobre os problemas que ocupam nossos dias. Depois de passar um bom tempo de vigília quebrando a cabeça com a disposição dos pesos atômicos, Dmitri Mendeleev chegou à sua tabela periódica durante um sonho. “Todos os elementos se encaixaram no lugar certo”, ele escreveu no diário. “Quando acordei, imediatamente anotei tudo num pedaço de papel”. Stephon Alexander, cosmólogo que hoje trabalha na Brown University, sonhou uma visão inovadora sobre o papel da simetria na inflação cósmica que lhe rendeu um prêmio nacional da Sociedade Americana de Física. Para Albert Einstein, a revelação central da relatividade tomou forma num sonho de vacas pulando e se movendo simultaneamente, em ondas.

É assim na mente, é assim no corpo. Estudos demonstraram que pessoas que estão aprendendo novas tarefas motoras as “praticam” durante o sono e, depois, apresentam melhor desempenho quando estão acordadas. Essa linha de pesquisa também mostrou como a visualização mental ajuda atletas a melhorar o desempenho. Renata Adler aborda esse assunto em seu romance Speedboat: “Foi um sonho”, ela escreve, “mas muitas das coisas mais importantes, acho, são aquelas que aprendemos durante o sono. Fala, tênis, música, esqui, boas maneiras, amor – você as tenta em vigília e talvez refugue o salto, e aí já era. Você só capta o ritmo delas à noite, dormindo”.

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Pode ser que no REM, essa penumbra entre inconsciência e consciência desperta, pratiquemos o possível do real. Pode ser que, quando sonhei com o beijo, eu não estivesse sonhando uma mera fantasia noturna, mas sim, como a garça que sonha que voa, praticando uma possibilidade. Pode ser que tenhamos evoluído para sonhar com a realidade – um laboratório de consciência que começou no cérebro dos pássaros. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Certa vez sonhei com um beijo que ainda não tinha acontecido. Sonhei com cabeças se inclinando no ângulo certo, com meus dedos atrás da orelha dela, com a pressão perfeita dos lábios nessa transferência de confiança e ternura.

Sigmund Freud, que catalisou o estudo dos sonhos com seu tratado fundamental de 1899, teria descartado tudo isso como simples quimera do desejo inconsciente. Mas o que desde então descobrimos a respeito da mente – sobretudo do estágio do sono mais rico em sonhos, o sono com movimento rápido dos olhos (REM, na sigla em inglês), desconhecido na época de Freud – sugere outra possibilidade para a função adaptativa dessas vidas paralelas que vivemos durante a noite.

Numa manhã fria, não muito depois do sonho do beijo, fiquei observando uma jovem garça-noturna que dormia num galho sobre o lago do Brooklyn Bridge Park, em Nova York, com a cabeça encolhida no peito, e me perguntei se os pássaros sonham.

O comportamento do cérebro de aves durante o sono indica que esses animais podem sonhar. Foto: Adara Sanchez/The New York Times

A ideia de que os animais não-humanos sonham remonta pelo menos aos dias de Aristóteles, que viu um cão adormecido latir e concluiu que se tratava de uma prova inequívoca de vida mental. Mas, quando René Descartes disparou o Iluminismo no século 17, ele já havia reduzido os outros animais a meros autômatos, contaminando séculos de ciência com a suposição de que qualquer coisa diferente de nós seria inerentemente inferior.

No século 19, quando o naturalista alemão Ludwig Edinger fez os primeiros estudos anatômicos do cérebro das aves e descobriu a ausência de um neocórtex – a camada mais externa e recente do cérebro, responsável pela cognição complexa e pela resolução criativa de problemas – ele descartou as aves como pouco mais do que marionetes cartesianas. Essa visão acabou sendo reforçada no século 20 pelo desvio, guiado por B.F. Skinner e seus pombos, para o behaviorismo, escola de pensamento que enxergava o comportamento como uma máquina de estímulo-e-resposta sob o jugo do reflexo, desconsiderando os estados mentais interiores e a reação emocional.

Em 1861, apenas dois anos depois da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, um fóssil com cauda e mandíbulas de réptil, mas asas e fúrcula de pássaro, foi descoberto na Alemanha, levando à descoberta de que os pássaros tinham evoluído dos dinossauros. Desde então, aprendemos que, embora o último ancestral comum entre aves e humanos tenha mais de 300 milhões de anos, o cérebro dos pássaros é muito mais semelhante ao nosso do que ao dos répteis. A densidade neuronal de seu prosencéfalo – região envolvida no planejamento, no processamento sensorial e nas respostas emocionais, da qual o sono REM depende muito – é comparável à dos primatas. No nível celular, o cérebro dos pássaros canoros tem uma estrutura – a crista ventricular dorsal (DVR, na sigla em inglês) – parecida com o neocórtex dos mamíferos em termos de função e até mesmo de forma. (Em pombos e corujas, a crista ventricular dorsal é estruturada como o neocórtex humano, com circuitos neurais horizontais e verticais).

O cérebro das aves é capaz de feitos inimagináveis para nós, especialmente durante o sono: muitos pássaros dormem com um dos olhos abertos, mesmo durante o voo. Espécies migratórias que atravessam distâncias imensas à noite, como o maçarico-de-costas-brancas, que percorre os quase 12 mil quilômetros entre o Alasca e a Nova Zelândia em oito dias de voo contínuo, têm um sono unihemisférico, apagando a linha entre nossas categorias de sono e vigília.

Mas, se o sono é um comportamento físico observável, o sonho é uma experiência interior e invisível, tão misteriosa quanto o amor – um mistério para o qual a ciência trouxe a tecnologia de imagens do cérebro para iluminar a paisagem da mente de pássaros adormecidos.

O primeiro eletroencefalograma (EEG) da atividade elétrica do cérebro humano foi registrado em 1924, mas só foi aplicado ao estudo do sono dos pássaros no século 21, com o auxílio ainda mais incipiente da ressonância magnética funcional (RMF), desenvolvida na década de 1990. As duas tecnologias se complementam. Ao registrar a atividade elétrica de grandes populações de neurônios perto da superfície cortical, o EEG rastreia o que os neurônios fazem de forma mais direta. Mas a RMF consegue identificar o local da atividade com mais precisão, por meio dos níveis de oxigênio no sangue. Os cientistas usaram essas tecnologias em conjunto para estudar os padrões de respostas das células durante o sono REM, na tentativa de deduzir o conteúdo dos sonhos.

Um estudo com mandarins, pássaros canoros que aprendem seu repertório de cantos, mapeou quais neurônios disparavam no prosencéfalo quando os pássaros cantavam notas de melodias específicas durante o dia. Depois, durante a fase REM, os neurônios dispararam em uma ordem semelhante: os pássaros pareciam estar ensaiando as músicas em seus sonhos.

Um estudo de RMF com pombos descobriu que as regiões do cérebro encarregadas do processamento visual e da navegação espacial ficavam ativas durante a fase REM, assim como as regiões responsáveis pela ação das asas, embora os pássaros estivessem dormindo: parecia que eles estavam sonhando que voavam. A amígdala – um conjunto de núcleos responsáveis pela regulação emocional – também ficou ativa durante a fase REM, sugerindo sonhos repletos de sentimentos. Minha garça-noturna provavelmente também estava sonhando – o pescoço encolhido é um clássico marcador de atonia, a perda do tônus muscular característica do estado REM.

Mas a sugestão mais assustadora das pesquisas sobre o sono das aves é que, sem os sonhos delas, nós também poderíamos ficar sem sonhos. Sem garça, sem beijo.

Hoje conhecemos dois grupos principais de aves: as paleógnatas, que não voam, como o avestruz e o quiuí, que mantiveram certas características ancestrais dos répteis, e as neognatas, categoria que abrange todas as outras aves. Estudos com EEG de avestruzes adormecidos encontraram atividade semelhante ao REM no tronco cerebral – uma parte mais antiga do cérebro. Já nas aves modernas, assim como nos mamíferos, essa atividade semelhante ao REM ocorre principalmente no prosencéfalo, desenvolvido mais recentemente.

Vários estudos sobre o sono dos monotremados – mamíferos que põem ovos, como o ornitorrinco e a equidna, elo evolutivo entre nós e os pássaros – também revelam atividade semelhante à do REM no tronco cerebral, sugerindo que esse foi o cadinho ancestral do REM antes de ele migrar aos poucos para o prosencéfalo.

Se isso for verdade, o cérebro das aves talvez tenha sido o lugar onde a evolução desenhou os sonhos – a câmara secreta ao lado da nossa consciência desperta onde continuamos a refletir sobre os problemas que ocupam nossos dias. Depois de passar um bom tempo de vigília quebrando a cabeça com a disposição dos pesos atômicos, Dmitri Mendeleev chegou à sua tabela periódica durante um sonho. “Todos os elementos se encaixaram no lugar certo”, ele escreveu no diário. “Quando acordei, imediatamente anotei tudo num pedaço de papel”. Stephon Alexander, cosmólogo que hoje trabalha na Brown University, sonhou uma visão inovadora sobre o papel da simetria na inflação cósmica que lhe rendeu um prêmio nacional da Sociedade Americana de Física. Para Albert Einstein, a revelação central da relatividade tomou forma num sonho de vacas pulando e se movendo simultaneamente, em ondas.

É assim na mente, é assim no corpo. Estudos demonstraram que pessoas que estão aprendendo novas tarefas motoras as “praticam” durante o sono e, depois, apresentam melhor desempenho quando estão acordadas. Essa linha de pesquisa também mostrou como a visualização mental ajuda atletas a melhorar o desempenho. Renata Adler aborda esse assunto em seu romance Speedboat: “Foi um sonho”, ela escreve, “mas muitas das coisas mais importantes, acho, são aquelas que aprendemos durante o sono. Fala, tênis, música, esqui, boas maneiras, amor – você as tenta em vigília e talvez refugue o salto, e aí já era. Você só capta o ritmo delas à noite, dormindo”.

Pode ser que no REM, essa penumbra entre inconsciência e consciência desperta, pratiquemos o possível do real. Pode ser que, quando sonhei com o beijo, eu não estivesse sonhando uma mera fantasia noturna, mas sim, como a garça que sonha que voa, praticando uma possibilidade. Pode ser que tenhamos evoluído para sonhar com a realidade – um laboratório de consciência que começou no cérebro dos pássaros. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Certa vez sonhei com um beijo que ainda não tinha acontecido. Sonhei com cabeças se inclinando no ângulo certo, com meus dedos atrás da orelha dela, com a pressão perfeita dos lábios nessa transferência de confiança e ternura.

Sigmund Freud, que catalisou o estudo dos sonhos com seu tratado fundamental de 1899, teria descartado tudo isso como simples quimera do desejo inconsciente. Mas o que desde então descobrimos a respeito da mente – sobretudo do estágio do sono mais rico em sonhos, o sono com movimento rápido dos olhos (REM, na sigla em inglês), desconhecido na época de Freud – sugere outra possibilidade para a função adaptativa dessas vidas paralelas que vivemos durante a noite.

Numa manhã fria, não muito depois do sonho do beijo, fiquei observando uma jovem garça-noturna que dormia num galho sobre o lago do Brooklyn Bridge Park, em Nova York, com a cabeça encolhida no peito, e me perguntei se os pássaros sonham.

O comportamento do cérebro de aves durante o sono indica que esses animais podem sonhar. Foto: Adara Sanchez/The New York Times

A ideia de que os animais não-humanos sonham remonta pelo menos aos dias de Aristóteles, que viu um cão adormecido latir e concluiu que se tratava de uma prova inequívoca de vida mental. Mas, quando René Descartes disparou o Iluminismo no século 17, ele já havia reduzido os outros animais a meros autômatos, contaminando séculos de ciência com a suposição de que qualquer coisa diferente de nós seria inerentemente inferior.

No século 19, quando o naturalista alemão Ludwig Edinger fez os primeiros estudos anatômicos do cérebro das aves e descobriu a ausência de um neocórtex – a camada mais externa e recente do cérebro, responsável pela cognição complexa e pela resolução criativa de problemas – ele descartou as aves como pouco mais do que marionetes cartesianas. Essa visão acabou sendo reforçada no século 20 pelo desvio, guiado por B.F. Skinner e seus pombos, para o behaviorismo, escola de pensamento que enxergava o comportamento como uma máquina de estímulo-e-resposta sob o jugo do reflexo, desconsiderando os estados mentais interiores e a reação emocional.

Em 1861, apenas dois anos depois da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, um fóssil com cauda e mandíbulas de réptil, mas asas e fúrcula de pássaro, foi descoberto na Alemanha, levando à descoberta de que os pássaros tinham evoluído dos dinossauros. Desde então, aprendemos que, embora o último ancestral comum entre aves e humanos tenha mais de 300 milhões de anos, o cérebro dos pássaros é muito mais semelhante ao nosso do que ao dos répteis. A densidade neuronal de seu prosencéfalo – região envolvida no planejamento, no processamento sensorial e nas respostas emocionais, da qual o sono REM depende muito – é comparável à dos primatas. No nível celular, o cérebro dos pássaros canoros tem uma estrutura – a crista ventricular dorsal (DVR, na sigla em inglês) – parecida com o neocórtex dos mamíferos em termos de função e até mesmo de forma. (Em pombos e corujas, a crista ventricular dorsal é estruturada como o neocórtex humano, com circuitos neurais horizontais e verticais).

O cérebro das aves é capaz de feitos inimagináveis para nós, especialmente durante o sono: muitos pássaros dormem com um dos olhos abertos, mesmo durante o voo. Espécies migratórias que atravessam distâncias imensas à noite, como o maçarico-de-costas-brancas, que percorre os quase 12 mil quilômetros entre o Alasca e a Nova Zelândia em oito dias de voo contínuo, têm um sono unihemisférico, apagando a linha entre nossas categorias de sono e vigília.

Mas, se o sono é um comportamento físico observável, o sonho é uma experiência interior e invisível, tão misteriosa quanto o amor – um mistério para o qual a ciência trouxe a tecnologia de imagens do cérebro para iluminar a paisagem da mente de pássaros adormecidos.

O primeiro eletroencefalograma (EEG) da atividade elétrica do cérebro humano foi registrado em 1924, mas só foi aplicado ao estudo do sono dos pássaros no século 21, com o auxílio ainda mais incipiente da ressonância magnética funcional (RMF), desenvolvida na década de 1990. As duas tecnologias se complementam. Ao registrar a atividade elétrica de grandes populações de neurônios perto da superfície cortical, o EEG rastreia o que os neurônios fazem de forma mais direta. Mas a RMF consegue identificar o local da atividade com mais precisão, por meio dos níveis de oxigênio no sangue. Os cientistas usaram essas tecnologias em conjunto para estudar os padrões de respostas das células durante o sono REM, na tentativa de deduzir o conteúdo dos sonhos.

Um estudo com mandarins, pássaros canoros que aprendem seu repertório de cantos, mapeou quais neurônios disparavam no prosencéfalo quando os pássaros cantavam notas de melodias específicas durante o dia. Depois, durante a fase REM, os neurônios dispararam em uma ordem semelhante: os pássaros pareciam estar ensaiando as músicas em seus sonhos.

Um estudo de RMF com pombos descobriu que as regiões do cérebro encarregadas do processamento visual e da navegação espacial ficavam ativas durante a fase REM, assim como as regiões responsáveis pela ação das asas, embora os pássaros estivessem dormindo: parecia que eles estavam sonhando que voavam. A amígdala – um conjunto de núcleos responsáveis pela regulação emocional – também ficou ativa durante a fase REM, sugerindo sonhos repletos de sentimentos. Minha garça-noturna provavelmente também estava sonhando – o pescoço encolhido é um clássico marcador de atonia, a perda do tônus muscular característica do estado REM.

Mas a sugestão mais assustadora das pesquisas sobre o sono das aves é que, sem os sonhos delas, nós também poderíamos ficar sem sonhos. Sem garça, sem beijo.

Hoje conhecemos dois grupos principais de aves: as paleógnatas, que não voam, como o avestruz e o quiuí, que mantiveram certas características ancestrais dos répteis, e as neognatas, categoria que abrange todas as outras aves. Estudos com EEG de avestruzes adormecidos encontraram atividade semelhante ao REM no tronco cerebral – uma parte mais antiga do cérebro. Já nas aves modernas, assim como nos mamíferos, essa atividade semelhante ao REM ocorre principalmente no prosencéfalo, desenvolvido mais recentemente.

Vários estudos sobre o sono dos monotremados – mamíferos que põem ovos, como o ornitorrinco e a equidna, elo evolutivo entre nós e os pássaros – também revelam atividade semelhante à do REM no tronco cerebral, sugerindo que esse foi o cadinho ancestral do REM antes de ele migrar aos poucos para o prosencéfalo.

Se isso for verdade, o cérebro das aves talvez tenha sido o lugar onde a evolução desenhou os sonhos – a câmara secreta ao lado da nossa consciência desperta onde continuamos a refletir sobre os problemas que ocupam nossos dias. Depois de passar um bom tempo de vigília quebrando a cabeça com a disposição dos pesos atômicos, Dmitri Mendeleev chegou à sua tabela periódica durante um sonho. “Todos os elementos se encaixaram no lugar certo”, ele escreveu no diário. “Quando acordei, imediatamente anotei tudo num pedaço de papel”. Stephon Alexander, cosmólogo que hoje trabalha na Brown University, sonhou uma visão inovadora sobre o papel da simetria na inflação cósmica que lhe rendeu um prêmio nacional da Sociedade Americana de Física. Para Albert Einstein, a revelação central da relatividade tomou forma num sonho de vacas pulando e se movendo simultaneamente, em ondas.

É assim na mente, é assim no corpo. Estudos demonstraram que pessoas que estão aprendendo novas tarefas motoras as “praticam” durante o sono e, depois, apresentam melhor desempenho quando estão acordadas. Essa linha de pesquisa também mostrou como a visualização mental ajuda atletas a melhorar o desempenho. Renata Adler aborda esse assunto em seu romance Speedboat: “Foi um sonho”, ela escreve, “mas muitas das coisas mais importantes, acho, são aquelas que aprendemos durante o sono. Fala, tênis, música, esqui, boas maneiras, amor – você as tenta em vigília e talvez refugue o salto, e aí já era. Você só capta o ritmo delas à noite, dormindo”.

Pode ser que no REM, essa penumbra entre inconsciência e consciência desperta, pratiquemos o possível do real. Pode ser que, quando sonhei com o beijo, eu não estivesse sonhando uma mera fantasia noturna, mas sim, como a garça que sonha que voa, praticando uma possibilidade. Pode ser que tenhamos evoluído para sonhar com a realidade – um laboratório de consciência que começou no cérebro dos pássaros. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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