THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Certa manhã, em 1992, Richard Stengel descobriu que sua casa alugada em um subúrbio de Joanesburgo havia sido roubada. A televisão sumira. O aparelho de som, também. Pior: seu gravador fora levado, e com ele três horas de entrevistas com Nelson Mandela, material que se tornaria o livro de memórias deste, Um Longo Caminho para a Liberdade. (Stengel, então jornalista freelancer de 37 anos, tinha sido contratado como ghost writer graças a seu livro anterior, January Sun.) O projeto era naquele momento um segredo, e Stengel temia que a exposição das fitas cassete pudesse atrapalhar tudo.
O policial designado para a investigação o tranquilizou: “Ah, cara, eles já gravaram música nessas fitas.” Mas havia outras gravações, quase 70 horas delas. As transcrições, além de um manuscrito no qual Mandela trabalhara durante seus 27 anos de prisão, tornaram-se, nas mãos de Stengel, o livro de memórias que ajudou a cimentar a reputação internacional de Mandela.
Stengel nunca mais ouviu as fitas. Em 2010, entregou-as à Fundação Mandela. Mas, no ano passado, enquanto dava consultoria para um documentário sobre o herói sul-africano, ouviu alguns trechos delas. Escutando de novo a voz de Mandela, Stengel percebeu que tinha um podcast nas mãos. Este mês, a Audible lançou Mandela: The Lost Tapes, série de dez episódios baseados nessas gravações. “Você está na sala com Nelson Mandela. Quase ouve seu cérebro funcionando. Ouve como ele escolhe cuidadosamente suas palavras. Está realmente ouvindo Mandela, e isso é uma revelação”, disse Stengel, explicando o apelo das fitas.
Stengel, ex-editor-gerente da revista Time e ex-subsecretário de Estado dos EUA para diplomacia e assuntos públicos, dedicou uma parte significativa de sua carreira a Mandela, que liderou a emancipação da África do Sul do domínio da minoria branca e se tornou o primeiro chefe de Estado negro do país. (Também escreveu uma compilação do pensamento de Mandela: Os Caminhos de Mandela: Lições de Vida, Amor e Coragem.) Mas, no podcast, fez algo novo: mostrar Mandela como homem e também como herói. Mandela: The Lost Tapes não funciona como exposição ou crítica. As revelações são poucas. O objetivo não é derrubar Mandela de um pedestal, mas humanizar sua estátua um pouco mais.
Uma dificuldade: Stengel nunca tinha feito um podcast antes. Anteriormente a esse projeto, não tinha nem mesmo ouvido um. Mas, em uma manhã de agosto, lá estava ele em um estúdio de Nova York, com pastilhas para a garganta e um jarro de água a seu alcance.
Pessoalmente, Stengel, de 67 anos, é um cavalheiro, um jornalista da velha escola. A informalidade que a maioria dos podcasts exibe não é natural para ele. (“Sou muito mais apolíneo”, comentou comigo.) Mas, naquela manhã, havia tirado a camisa de dentro da calça e inclinado a cabeça para o microfone do estúdio, enrolando a língua em torno de vários termos da língua xossa, como umqombothi, cerveja à base de milho, e tentando dar um toque de entusiasmo a seu roteiro. “Foi bem legal e dramático!”, disse Deena Kaye, treinadora vocal de Stengel. “Talvez dramático demais”, respondeu ele.
Stengel tinha originalmente imaginado a série como um programa mais frio e analítico, uma reflexão sobre o que fez de Mandela um homem bom e grandioso. Isso ainda está lá, mas, depois de conversas com Christopher Farley, editor executivo da Audible, “Mandela” se tornou mais revelador, uma reflexão sobre a produção das próprias fitas e a dinâmica interpessoal contida nelas. O podcast une a narrativa da vida do líder sul-africano com o onde, o como e o porquê das próprias entrevistas. O que significa que Stengel, talvez pela primeira vez em sua vida profissional, teve de se colocar no centro de uma história.
Farley, que havia trabalhado com Stengel na Time, incentivou-o a investir no aspecto pessoal. “No mundo do jornalismo de áudio, as pessoas querem saber mais sobre quem está contando a história. Querem saber: certo, que preconceitos há aqui? Que tipo de pano de fundo você traz? Por que devo confiar em você? Por que devo gostar de você? Por que devo lhe permitir acesso a meu espaço íntimo para contar a história nos meus ouvidos?”, explicou Farley.
Stengel às vezes teve dificuldade com isso. Ainda tem. “Não quero parecer modesto, mas quando ouço, agora, sinto que tem muito de mim ali. Como se trata de Nelson Mandela, qualquer coisa em mim tinha uma razão real de ser”, ele me disse em meados de novembro, depois que todos os episódios haviam sido gravados. Mas, com a ajuda de Farley, ele entendeu que esse era um canal mediante o qual os ouvintes podiam se sentir mais próximos de Mandela.
No podcast, Stengel conta histórias de erros e acidentes felizes, de momentos em que deveria ter pressionado mais e de momentos em que disse a coisa errada. Mandela raramente revelava algo pessoal. (“Era o famoso ‘arrancar a fórceps’”, observou Stengel.) A certa altura, depois de contar a história de quando usou um banheiro só para brancos, Mandela imediatamente voltou atrás: “Bom, digamos que fui lavar as mãos em um banheiro branco.”
Esse senso estrito de decoro e uma aversão a privilegiar o individual acima do coletivo o deixavam relutante em discutir seus hábitos e sentimentos íntimos. Agora Stengel tenta se aprofundar nesses sentimentos.
Desde a morte de Mandela em 2013, sua reputação tem resistido a certos golpes. O Congresso Nacional Africano, o partido que liderou, é frequentemente acusado de corrupção, e ainda existe um sentimento, particularmente entre os jovens sul-africanos, de que Mandela pode ter sido conciliador demais com os líderes brancos. “Há muitos jovens que me parecem ressentidos com o fato de o país como um todo ter sido definido por Mandela. Isso deixa um espaço muito restrito para o sul-africano”, afirmou Eve Fairbanks, autora de The Inheritors: An Intimate Portrait of South Africa’s Racial Reckoning.
Mandela: The Lost Tapes não questiona o legado de Mandela, mas tenta ressituá-lo como homem e como político. Até identifica algumas falhas leves, como a tendência de ignorar os defeitos de seus colegas próximos ou a relutância em reavaliar seu relacionamento com as duas primeiras esposas.
Xolela Mangcu, professor de sociologia da Universidade George Washington que deu orientações para o podcast, acha que essas falhas são cruciais para o projeto. “Espero que isso traga uma textura para a vida de Mandela que está faltando agora. Espero que Mandela não pareça um santo. Era um ser humano falho, como todos nós.” (Perguntei também a Mangcu sobre a pronúncia xossa de Stengel. “Eu o perdoo”, respondeu.)
As fitas são um registro da tentativa de fazer com que Mandela se abrisse, de tentar mostrar algo mais do que uma frase de efeito. E o podcast é um registro de Stengel aprendendo a se abrir também. Em sua criação, ele revela algo que os jornalistas muitas vezes não admitem sentir por suas fontes ou os escritores fantasmas por seus assuntos: “Eu o amava. Deixo isso bem claro. Havia uma coisa adorável nele. Tão ferido e triste, ao mesmo tempo poderoso e forte.”
Talvez por causa desse amor ou do status incomum de Stengel, o de um estranho que teve acesso extraordinariamente íntimo, Mandela: The Lost Tapes raramente questiona ou julga o homem. “Rick tem uma compreensão mais romântica de Mandela”, resumiu Mangcu.
Aqueles seis meses na África do Sul, há 30 anos, mudaram a vida de Stengel. Ele conheceu a mulher, Mary Pfaff, que se tornaria sua esposa. E reuniu o material para Um Longo Caminho para a Liberdade, que considera sua maior realização profissional.
Perguntei-lhe, várias vezes, o que a produção dessas fitas tinha significado para ele. Mas, mesmo depois de fazer um podcast, a revelação pessoal ainda é difícil para ele. Educadamente, evitou dar sua resposta.
Na manhã seguinte, Stengel me enviou um e-mail: “Tenho lutado para responder à sua pergunta porque minha voz de 30 anos atrás parece tão familiar, tão igual. Reconheço o homem que me tornei porque essa transformação ocorreu durante a produção de Longo Caminho. As melhores coisas que me aconteceram vieram em parte dessa experiência. Portanto, acho que, em certo sentido, estou retribuindo.”
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