THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em junho de 1977, os visitantes da Galeria de Arte Moderna de Bolonha, na Itália, depararam-se com uma visão chocante: Marina Abramovic, a artista performática sérvia, e o seu parceiro, Ulay, parados na porta do museu, completamente nus.
A única maneira de entrar era espremer-se entre o casal.
Abramovic e Ulay permaneceram no local por três horas, olhando fixamente nos olhos um do outro, enquanto um fluxo de visitantes passava e às vezes pisava em seus dedos. Então, a polícia apareceu e encerrou a performance por considerá-la obscena.
Neste outono (do hemisfério norte), Abramovic, agora com 76 anos, está reencenando aquela performance, Imponderabilia, na Royal Academy of Arts, em Londres, como parte de uma grande retrospectiva de seu trabalho que vai até 1º de janeiro de 2024. Como Abramovic não se apresenta mais, e Ulay morreu em 2020, ela recrutou artistas mais jovens para participar - e há outra grande diferença em relação ao trabalho de 1977.
Se um visitante preferir não passar por um homem e uma mulher nus em uma porta de um metro de largura, ele pode passar por outra entrada à esquerda e desviar totalmente da experiência.
Em uma época em que os museus estão lutando para mostrar ao público trabalhos desafiantes e adotando medidas para proteger artistas e funcionários, Abramovic também está adaptando as suas obras antigas para se adequarem aos costumes contemporâneos.
Em uma manhã recente, a maioria dos visitantes escolheu esse caminho sem contato, até que Sarah Raper, 59 anos, deu o casaco ao marido e anunciou: “Vou fazer isso!” Raper então passou rapidamente pelo homem e pela mulher nus, de frente para a artista feminina.
“Isso foi bastante inquietante”, disse Raper depois; parecia “uma verdadeira invasão do espaço pessoal”.
Jason Speechly, 60 anos, ficou observando os dois artistas nus com curiosidade por vários minutos, mas depois optou pela outra porta. “Fiquei envergonhado e segui o resto da multidão”, disse ele.
Em uma entrevista, Abramovic disse que teve “milhões de reuniões” com o pessoal da Royal Academy para garantir que Imponderabilia e três outras performances provocativas pudessem ser incluídas na retrospectiva - e agora ela estava em conflito com os acordos que havia feito.
Se “todas estas restrições que enfrentamos agora” tivessem existido na década de 1970, disse ela, 80% das suas obras nunca teriam sido executadas. Por outro lado, disse Abramovic, os artistas não deveriam “viver na prisão das suas próprias promessas” e recusar-se a mudar com o tempo. Ao fazer concessões, uma nova geração estava testemunhando a sua arte, disse ela. Se ela tivesse reclamado da nova porta para Imponderabilia, a performance só existiria como “uma estúpida foto cinza em um livro” que ninguém jamais veria.
“Realmente, a coisa inteligente a fazer é chegar a um acordo”, disse ela.
Abramovic já fez isso com Imponderabilia antes: em 2010, para The Artist is Present, uma pesquisa sobre sua carreira no Museu de Arte Moderna de Nova York, Abramovic disse que o MoMA pediu que os artistas ficassem distantes o suficiente para que um cadeirante pudesse passar entre eles. “Senti que a obra realmente sofreu com isso”, disse ela.
Os advogados do MoMA também pediram mudanças significativas em Luminosity, uma proeza de resistência de 1997 em que Abramovic sentou-se nua num assento de bicicleta montado no alto de uma parede da galeria durante seis horas, mantendo os braços e as pernas estendidos. A apresentação do MoMA contou com outros artistas e, no dia anterior à inauguração, disse Abramovic, os advogados do museu insistiram que eles precisavam usar capacete e cinto de segurança.
“Eu disse: ‘Isso é ridículo!’”, lembrou Abramovic. “‘Vai virar um trabalho ridículo.’” Ela disse que acabou assinando documentos que a tornavam pessoalmente responsável por US$ 1 milhão em caso de qualquer acidente, e a performance seguiu em frente conforme planejado.
O MoMA não respondeu a um pedido de comentário. Klaus Biesenbach, ex-curador e diretor geral do MoMA, que organizou a mostra de 2010, disse por e-mail que não conseguia se lembrar de “detalhes e anedotas” tão bem quanto Abramovic, mas acrescentou que “foi um milagre” que a exposição tenha acontecido.
Biesenbach é agora o diretor da Neue Nationalgalerie em Berlim, onde viu recentemente outro exemplo de como as atitudes em relação à arte performática mudaram ao longo do tempo, disse ele. Este mês, o museu reencenou Cut Piece, de Yoko Ono, uma obra de 1964 em que o público é convidado a cortar as roupas de um artista com uma tesoura. O comportamento do público hoje era muito diferente do da década de 1960, disse ele, com os visitantes cientes de que havia uma maneira “‘certa’ ou correta” de agir, e conscientes de que centenas de câmeras de celulares estavam apontadas para eles.
Andrea Tarsia, diretora de exposições da Royal Academy, disse que a maioria das mudanças na exposição de Abramovic foram pequenas e feitas para a segurança e conforto dos artistas. Em Imponderabilia, por exemplo, a porta foi aquecida para que o homem e a mulher nus, que ficam ali por até uma hora seguida, não pegassem um resfriado.
Os seguranças próximos também ficam de olho no comportamento dos visitantes, disse Tarsia, e no final de cada dia, os artistas se reúnem para uma sessão de “detox” para discutir quaisquer momentos desconfortáveis que ocorreram. Todos os artistas teriam acesso a terapeutas, acrescentou Tarsia.
E mesmo que os visitantes evitem passar pelos corpos nus, disse Tarsia, o trabalho os faria pensar. “Na arte, quando algo irrita você, muitas vezes é aí que está a parte interessante”, disse Tarsia. “Talvez se as pessoas decidirem não passar pela porta, elas reflitam mais tarde sobre por que fizeram essa escolha”, acrescentou.
Abramovic, que recentemente sobreviveu a uma embolia com risco de vida e passou algum tempo em coma, disse que não se importava se apenas alguns visitantes experimentassem a Imponderabilia como ela originalmente pretendia. Os artistas, disse ela, comprometem-se com as suas performances, independentemente do que aconteça durante elas.
“Se houver um terremoto, se a energia cair, se alguém esbarrar em você, tudo faz parte do trabalho”, disse ela. “E se ninguém passar, isso ainda faz parte do trabalho.”/ TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times