THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Quando três das mais prestigiosas companhias teatrais shakespearianas do mundo encenaram Ricardo III este ano, cada uma adotou uma abordagem diferente para escalar o ardiloso personagem-título, iluminando o agitado debate sobre quais atores devem interpretar quais papéis.
Na Royal Shakespeare Company em Stratford-upon-Avon, na Inglaterra, Ricardo foi interpretado pelo ator Arthur Hughes, que tem displasia radial, o que significa que tem o braço direito mais curto e que lhe falta um dos polegares. A companhia informou que foi a primeira vez que escalou um ator com deficiência para interpretar esse personagem, que se descreve na cena de abertura como “deformado”. O diretor da produção, Gregory Doran, que até recentemente era diretor artístico da companhia, declarou ao The Times, de Londres, no início do ano, que hoje em dia provavelmente não seria aceitável que um ator fingisse a deficiência para interpretar Ricardo III.
O Festival Stratford, em Ontário, no Canadá, adotou uma abordagem diferente: escalou Colm Feore, que não tem deficiência física, para interpretar um Ricardo cuja espinha é deformada, mas não é corcunda. E, na cidade de Nova York, o festival gratuito Shakespeare in the Park, da companhia Public Theater, optou por uma terceira via, escalando Danai Gurira, mulher negra sem deficiência física, como o duque que conspira e mata para chegar ao trono da Inglaterra.
Essas diferentes abordagens surgiram em um momento de intensa reavaliação das normas culturais em torno de identidade, representatividade, diversidade, oportunidade, imaginação e licença artística, que leva a discussões acaloradas e até a batalhas sobre a escolha de elenco.
Já faz décadas que as grandes companhias teatrais não escalam atores brancos para interpretar Otelo com o uso do blackface, e, depois de anos de críticas, atores brancos interpretando papéis asiáticos caricaturados estão se tornando cada vez mais raros no teatro e no cinema, e a prática está sendo repensada na ópera e no balé.
Agora há dúvidas em relação a quem deve interpretar personagens gays (Tom Hanks disse recentemente que hoje em dia não seria escalado, com razão, para interpretar o advogado gay que está morrendo de aids em Filadélfia, pelo qual ganhou o Oscar em 1993), transgêneros (Eddie Redmayne declarou no ano passado que foi um “erro” ter interpretado um personagem transgênero em A Garota Dinamarquesa, de 2015) ou personagens de diferentes etnias e religiões (Bradley Cooper enfrentou críticas este ano por ter usado uma prótese de nariz para interpretar o maestro judeu Leonard Bernstein em um filme biográfico ainda não lançado).
Enquanto muitos comemoram esse distanciamento de interpretações antiquadas - por vezes estereotipadas - e as novas oportunidades finalmente oferecidas a atores de diversas origens, outros afirmam que a atual insistência no literalismo e na autenticidade pode ser demasiado limitante. Afinal, a interpretação é a arte de você fingir ser alguém que não é. “A natureza essencial da arte é a liberdade; se qualquer tipo de controle é imposto a ela, essa liberdade deixa de existir”, ressaltou F. Murray Abraham, vencedor do Oscar, cujos muitos personagens incluem Shylock, o agiota judeu da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare - embora o ator não seja judeu.
E enquanto a recente insistência por elencos mais autênticos prometa uma maior diversidade em alguns aspectos, ameaça reduzi-la em outros - já que muitas mulheres e atores negros vêm tendo mais oportunidades de interpretar alguns dos maiores e mais interessantes papéis do repertório, independentemente da raça, do gênero ou da história que os dramaturgos possam ter inicialmente concebido.
Às vezes, esse tipo de escolha de elenco é chamado de “daltônico”, caso em que se requer do público um olhar para além da raça, da etnia ou de outras características dos atores. Mas, nos últimos anos, a tendência tem sido para escolhas “conscientes”, em que a raça, a etnia ou a identidade do ator se torna parte da produção e característica do personagem que está sendo representado.
O comentário de Doran, diretor da Royal Shakespeare Company, de que “provavelmente não seria aceitável” hoje em dia que o ator fingisse ter deficiência para interpretar Ricardo causou furor no meio teatral. O diretor não é apenas um shakespeariano renomado: seu marido, Antony Sher, morto no ano passado, foi um dos Ricardos mais memoráveis das últimas décadas, tendo usado muletas em uma aclamada produção de 1984 e tendo escrito um livro sobre a experiência.
Doran, cuja produção em Stratford-upon-Avon foi elogiada pela crítica, mais tarde explicou sua visão sobre a escalação de elenco: embora qualquer ator possa representar Ricardo com sucesso, ele acredita que o papel deve ser reservado a atores com deficiência até que eles “tenham acesso a oportunidades em todas as produções que agora estão mais disponíveis para outros atores”.
A nova montagem com Feore em Stratford, Ontário, citava nos créditos um “consultor em deficiência”. Sua interpretação se inspirou na descoberta dos ossos de Ricardo há quase uma década - o esqueleto sugeria uma forma de escoliose - e se baseou na ideia de que sua deficiência era “menos física e mais social e cultural”, afirmou por e-mail a porta-voz da companhia, Ann Swerdfager. A crítica Karen Fricker, do The Toronto Star, escreveu: “Por mais que eu admire a interpretação de Feore, sou levada a pensar que talvez ele seja o último ator sem deficiência a protagonizar um personagem com deficiência no Stratford, em vista dos atuais e cruciais debates em torno da interpretação de personagens surdos e com deficiência.”
E, em Nova York, Gurira, que trabalhou em Pantera Negra, tentou explorar as razões por trás do comportamento de Ricardo. “Há uma razão psicológica para o que ele se torna; Ricardo se considera o mais apto, mas as leis o impedem de demonstrar toda a sua capacidade.”
Robert O’Hara, diretor de uma montagem de 'Ricardo III'
Segundo o diretor da produção, Robert O’Hara, a diferença de Ricardo foi considerada central para a interpretação: “A alteridade de Ricardo se torna a razão de seu comportamento; ele sente que tem o dever de desempenhar um papel que lhe foi atribuído.”
O restante do elenco da montagem, que saiu de cartaz no mês passado, era notadamente diversificado e incluía vários atores com deficiência em papéis que geralmente não são escalados dessa forma. Ali Stroker, atriz vencedora do Tony e cadeirante, interpretou Lady Anne; Monique Holt, que é surda, interpretou a mãe de Ricardo, e as duas geralmente se comunicavam no palco por meio da linguagem de sinais. “Eu queria ampliar a conversa, saindo de ‘Por que Ricardo não está sendo interpretado por um ator com deficiência?’ para ‘Por que os atores com deficiência não são cotados para interpretar todos os papéis’?”, disse O’Hara.
Muitas produções subvertem a escolha de elenco tradicional para questionar os clássicos. Em uma trilogia de aclamadas produções de Shakespeare dirigida por Phyllida Lloyd no Donmar Warehouse em Londres, e apresentadas em Nova York no St. Ann’s Warehouse, todos os personagens foram interpretados por mulheres.
Mas, enquanto há uma pressão por maior liberdade na escolha do elenco em algumas áreas, em outras há a defesa de um maior literalismo, especialmente por parte de atores de certos nichos que têm menos oportunidades.
Alguns atores com deficiência se incomodam ao ver Ricardo III, um dos mais ricos personagens com deficiência do cânone, sendo interpretado por outros atores. “Todo mundo quer uma competição equilibrada na qual todos os atores possam interpretar todos os papéis. Mas, durante toda a minha carreira, não me permitiram interpretar quase nenhum”, afirmou Mat Fraser, ator inglês com deficiência que já interpretou Ricardo.
O debate sobre a escolha de elenco vem evoluindo nos últimos anos. “A habilidade de se transformar costumava fazer parte da grandeza do ator. Será que a versatilidade ainda é sinal de talento? E como abordá-la, se há certas linhas identitárias que não podem ser ultrapassadas?”, questionou Isaac Butler, autor de The Method: How the Twentieth Century Learned to Act (O método: como o século XX aprendeu a interpretar, em tradução livre), uma nova história do famoso método de interpretação.
Gregg Mozgala, ator com paralisia cerebral, já fez personagens que não são tradicionalmente retratados como tendo deficiência, como quando interpretou dois monarcas em Ricardo III em Nova York, e às vezes interpreta personagens concebidos como tendo paralisia cerebral, como fará ainda este ano em uma produção da Broadway da peça vencedora do Pulitzer Cost of Living (Custo de vida). “Passei anos tentando fingir que minha deficiência não existia, na vida e no palco, o que é ridículo, porque ela existe. Todos os personagens que eu interpretar vão ter paralisia cerebral - não posso fazer nada em relação a isso. Tenho de emprestar toda a minha humanidade aos personagens que interpreto.”
Há quem ainda tenha esperança de que o tema da identidade um dia se torne menos presente. “Se espero que, daqui a cem anos, atores brancos possam interpretar Otelo? Claro, porque isso significaria que o racismo não seria uma questão tão explosiva quanto é agora”, comentou Oskar Eustis, diretor artístico do Public Theater.
The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times