GANGOTRI, ÍNDIA – No alto do Himalaia, é fácil ver por que o Rio Ganges é considerado sagrado. Segundo uma lenda hindu, a Via Láctea se tornou este imenso rio terreno para lavar os pecados da humanidade. À medida que ele brota de uma geleira nestas montanhas, os sedimentos das rochas tingem a torrente fria como gelo de uma cor cinza opaco, entretanto, biologicamente, o rio é puro – livre de bactérias.
Então, muito antes de passar por grandes cidades, hospitais, fábricas ou fazendas, sua pureza se degrada. Ele passa a ser repleto de um tipo virulento de bactérias resistentes a antibióticos comuns.
O Ganges dá uma ideia do predomínio e do alastrar-se de infecções resistentes a medicamentos, um dos mais prementes problemas de saúde pública do mundo. Suas águas indicam como estes patógenos penetram no nosso ecossistema.
Serpeando por mais de 2.400 quilômetros até a Baía de Bengala, Ma Ganga – “Mãe Ganges” –, acaba se tornando um dos rios mais poluídos do mundo.
Mas análises anuais realizadas por cientistas do Instituto Indiano de Tecnologia mostram que as bactérias resistentes aos antibióticos aparecem enquanto o rio ainda corre pelas estreitas gargantas nos pés do Himalaia, antes de encontrar tudo o que poluirá suas águas com germes resistentes.
Os níveis bacterianos atingem “alturas astronômicas”, destacou Shaikh Ziauddin Ahammad, professor de bioquímica no Instituto Indiano de Tecnologia. A única causa possível disto são os próprios seres humanos, especificamente as multidões de indianos que se banham em seus rituais religiosos para lavar os seus pecados e mergulhar em suas águas.
Ainda não compreendemos muito bem como s bactérias resistentes a medicamentos pulam de um ser humano para outro fora de um ambiente hospitalar, e é por isso que as descobertas no Ganges são tão valiosas.
Água potável
Embora seja oficialmente sagrado, o Ganges é também um rio vital, funcional. Suas numerosas bacias hidrográficas nas montanhas, através do Planalto de Deccan e o seu vasto delta, servem 400 milhões de pessoas – um terço da população da Índia – como fonte de água potável para seres humanos e animais. Duas vezes ao ano, dois dos discípulos de doutorado do professor Ahammad, Deepak K. Prasad e Rishabh Shukla, retiram amostras ao longo do rio, de Gangotri até o mar, e as analisam à procura de organismos com genes de resistência aos medicamentos.
Os elevados níveis descobertos nos trechos mais baixos do rio não surpreenderam. Mas os pesquisadores encontraram bactérias com genes resistentes até nos primeiros 160 quilômetros do rio, depois que ele deixa Gangotri e flui procurando o mar por outras cidades: Uttarkashi, Rishikesh e Haridwar.
O mais importante é que constataram que os níveis das bactérias com genes resistentes são consideravelmente mais baixos no inverno e depois aumentam durante a temporada das peregrinações, maio e junho.
Tratamento
A mais famosa das cidades das peregrinações do Alto Ganges é Rishikesh. Sua população é de cerca de 100 mil pessoas no inverno, mas na temporada de férias e peregrinações pode chegar a 500 mil. A usina de tratamento de lixo da cidade consegue tratar os dejetos de apenas 78 mil pessoas, disse Ahammad. O governo costuma instalar banheiros móveis, mas a menor tempestade leva cascatas de dejetos para o rio.
Em 2014, David W. Graham, professor de engenharia de ecossistemas da Newcastle University na Grã-Bretanha, e Ahammad descobriram que a linha entre limpeza e sujeira é mais dramática em Rishikesh. Rio acima, a água é bastante limpa tanto no verão quanto no inverno, mas rio abaixo, no verão, os níveis de bactérias com genes resistentes a medicamentos são espantosos.
Esta descoberta levou os pesquisadores a várias conclusões. As bactérias resistentes na água devem ter vindo de pessoas – especificamente dos seus intestinos. O que mais intriga é que estas pessoas são razoavelmente saudáveis – na maioria, bastante saudáveis e cheias de energia a ponto de serem peregrinos, estudantes de ioga ou praticarem rafting no rio.
Transmissão
O ser humano pode espalhar as bactérias que carrega no Ganges, mostraram as pesquisas de Ahammad e Graham. Se outra pessoa as apanha, adoece e recebe antibióticos, as bactérias boas desta pessoa podem morrer e as ruins têm a oportunidade de se instalarem em seu lugar.
As áreas de peregrinação, escreveram os pesquisadores, são “lugares típicos potenciais para a transmissão de genes resistentes aos antibióticos em larga escala”. “Não estamos dizendo com isto que as pessoas parem de fazer os rituais que realizam há milhares de anos”, argumentou Ahammad. “Mas o governo deveria se empenhar mais para controlar a poluição e protegê-las”.
No meio tempo, os peregrinos continuam em risco, confiando na proteção dos deuses. “O Ganga é a nossa mãe – beber sua água é nosso destino”, afirmou Jairam Bhai, endedor de comida de 65 anos, enquanto esperava para descer na água. “Se você tem fé, está seguro”.
Suraj Senwal, de 44 anos, disse que o governo deveria tomar mais medidas. E acrescentou que ouviu falar que, no Canadá, “se as pessoas tocarem a água de um rio, podem ser multadas – é apenas um rio, e não é sagrado. Aqui, temos um rio sagrado, e é muito sujo e nada está sendo feito”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA