Salman Rushdie: Uma palavra de gratidão aos leitores do escritor, que foi esfaqueado


Afinal, são seus leitores que podem ter ajudado a salvá-lo, são eles que continuarão lendo seus romances daqui a alguns anos e que sempre manterão vivas suas palavras

Por Pamela Paul

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em 1989, eu trabalhava na livraria B. Dalton, no shopping center American Manhasset, em Long Island, Nova York, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu sua fatwa contra Salman Rushdie. Eu tinha 17 anos. O que já era um emprego dos sonhos para uma adolescente estudiosa se transformou em outra coisa: um despertar político.

Como a maioria das crianças daquela época, eu estava ciente da Revolução Islâmica de 1979 e da crise dos reféns que se seguiu, embora eu fosse muito jovem para ler as notícias na época. Uma descrição grosseira do que deveria ser feito com o aiatolá havia sido pintada com spray em grossas letras pretas em uma parede do lado de fora da escola primária que eu frequentava. Olhando para ela todos os dias, eu tinha uma terrível sensação infantil de “Alguém pode ter problemas”.

Salman Rushdie em foto tirada em Paris em 10 de setembro de 2018. Foto: Joel Saget/AFP
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Foi só quando a fatwa foi emitida que percebi: esse é o tipo de problema que vale a pena enfrentar. Nosso gerente de loja nos disse que a B. Dalton havia resolvido continuar a vender Versos Satânicos, o romance que havia provocado a fatwa do aiatolá. Alguns dos meus colegas de trabalho talvez não quisessem lidar com isso. Afinal, algumas livrarias nos Estados Unidos foram bombardeadas. Mas, como a maioria dos meus colegas de trabalho, imediatamente mudei do medo para a determinação, inscrevendo-me no maior número de turnos que conseguisse.

A loja tomou precauções. A cada dia que chegávamos ao trabalho, um gerente nos atualizava sobre os protocolos mais recentes. A certa altura, todas as cópias do romance foram retiradas das prateleiras e das vitrines e mantidas em um quarto dos fundos. Mais tarde, guardamos cópias escondidas debaixo de um balcão na parte de trás.

“Se alguém perguntar se temos estoque ou não, pense bem antes de responder”, nos disseram. “Responda caso a caso.”

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Vinte e cinco anos depois, a essa altura trabalhando no The New York Times como editora do Book Review, eu estava bebendo com o agente de Salman Rushdie, Andrew Wylie, no dia em que Gabriel García Márquez morreu. Wylie sugeriu que Rushdie escrevesse um texto sobre García Márquez para o Book Review. Não havia outra resposta possível além de sim. O ensaio de Rushdie, que ele apresentou no dia seguinte, não precisou ser editado. Quando foi publicado em nossa capa, a resposta foi gratificante, esmagadoramente positiva.

Nesse ensaio, Rushdie escreveu sobre como, apesar de seus diferentes países de origem e idiomas (para ele, Índia e inglês; para García Márquez, Colômbia e espanhol), ele via sua própria vida no trabalho de seu par: “Conheci os coronéis e generais de García Márquez, ou pelo menos seus homólogos indianos e paquistaneses; seus bispos eram meus mulás; suas ruas de mercado eram meus bazares.” Além disso, ele escreveu, “em ambos os lugares a religião é de grande importância e Deus está vivo, e assim, infelizmente, são os devotos”.

Nunca conseguimos convencer Rushdie a escrever para o Book Review novamente, não importa quantas vezes o perguntássemos. Ele sempre recusou graciosamente; ele estava trabalhando em outro romance ou viajando. Mas publicar Rushdie continua sendo um ponto alto dos meus nove anos de edição no Book Review. Como tivemos sorte.

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O que resta a dizer sobre o terrível ataque a Rushdie na Chautauqua Institution em Nova York, um lugar com pouca segurança porque sempre pareceu tão seguro? Sobre o fato de que depois de todos esses anos, o ato de escrever ficção foi punido com violência?

Lembro-me do meu tempo na B. Dalton, quando, após a fatwa, os clientes chegavam em massa. Alguns deixavam suas cópias de Perigo Real e Imediato, A Metade Negra e o último Nelson DeMille no balcão antes de dizer: “Não sei se é meu tipo de coisa, mas gostaria de comprar uma cópia daquele ‘Versos Satânicos’.” Outros iam direto para a caixa registradora e perguntaram se estávamos carregando o que chamávamos de O Livro. “Precisamos apoiá-lo”, diziam. Esses clientes se tornaram outro tipo de inspiração.

Porque não é apenas vital que os autores continuem a escrever livros que possam desafiar e possivelmente ofender a sensibilidade ou santidade de algumas pessoas. Não é apenas vital que os editores continuem apoiando esses autores, para protegê-los, promovê-los e se orgulhar deles, e que os tradutores continuem a disponibilizar essas palavras para o público global. Não é apenas vital que as livrarias continuem a vender esses livros, mesmo que seus funcionários discordem ou desaprovem ou mesmo que temam que alguns em suas comunidades se oponham a eles.

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Também é vital que os leitores continuem a ler as obras que sustentam esses autores. Em última análise, é a vontade dos leitores de enfrentar livros desafiadores que permite que uma cultura permaneça aberta e florescente.

Afinal, são os leitores de Rushdie que podem ter literalmente ajudado a salvá-lo. “Somos muito gratos a todos os membros da plateia que corajosamente saíram em sua defesa e administraram os primeiros socorros, junto com a polícia e os médicos que cuidaram dele e pela demonstração de amor e apoio de todo o mundo”, disse Zafar, filho de Rushdie em um comunicado após o ataque. São os leitores que continuarão lendo seus romances daqui a alguns anos que sempre manterão vivas as palavras de Salman Rushdie. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em 1989, eu trabalhava na livraria B. Dalton, no shopping center American Manhasset, em Long Island, Nova York, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu sua fatwa contra Salman Rushdie. Eu tinha 17 anos. O que já era um emprego dos sonhos para uma adolescente estudiosa se transformou em outra coisa: um despertar político.

Como a maioria das crianças daquela época, eu estava ciente da Revolução Islâmica de 1979 e da crise dos reféns que se seguiu, embora eu fosse muito jovem para ler as notícias na época. Uma descrição grosseira do que deveria ser feito com o aiatolá havia sido pintada com spray em grossas letras pretas em uma parede do lado de fora da escola primária que eu frequentava. Olhando para ela todos os dias, eu tinha uma terrível sensação infantil de “Alguém pode ter problemas”.

Salman Rushdie em foto tirada em Paris em 10 de setembro de 2018. Foto: Joel Saget/AFP

Foi só quando a fatwa foi emitida que percebi: esse é o tipo de problema que vale a pena enfrentar. Nosso gerente de loja nos disse que a B. Dalton havia resolvido continuar a vender Versos Satânicos, o romance que havia provocado a fatwa do aiatolá. Alguns dos meus colegas de trabalho talvez não quisessem lidar com isso. Afinal, algumas livrarias nos Estados Unidos foram bombardeadas. Mas, como a maioria dos meus colegas de trabalho, imediatamente mudei do medo para a determinação, inscrevendo-me no maior número de turnos que conseguisse.

A loja tomou precauções. A cada dia que chegávamos ao trabalho, um gerente nos atualizava sobre os protocolos mais recentes. A certa altura, todas as cópias do romance foram retiradas das prateleiras e das vitrines e mantidas em um quarto dos fundos. Mais tarde, guardamos cópias escondidas debaixo de um balcão na parte de trás.

“Se alguém perguntar se temos estoque ou não, pense bem antes de responder”, nos disseram. “Responda caso a caso.”

Vinte e cinco anos depois, a essa altura trabalhando no The New York Times como editora do Book Review, eu estava bebendo com o agente de Salman Rushdie, Andrew Wylie, no dia em que Gabriel García Márquez morreu. Wylie sugeriu que Rushdie escrevesse um texto sobre García Márquez para o Book Review. Não havia outra resposta possível além de sim. O ensaio de Rushdie, que ele apresentou no dia seguinte, não precisou ser editado. Quando foi publicado em nossa capa, a resposta foi gratificante, esmagadoramente positiva.

Nesse ensaio, Rushdie escreveu sobre como, apesar de seus diferentes países de origem e idiomas (para ele, Índia e inglês; para García Márquez, Colômbia e espanhol), ele via sua própria vida no trabalho de seu par: “Conheci os coronéis e generais de García Márquez, ou pelo menos seus homólogos indianos e paquistaneses; seus bispos eram meus mulás; suas ruas de mercado eram meus bazares.” Além disso, ele escreveu, “em ambos os lugares a religião é de grande importância e Deus está vivo, e assim, infelizmente, são os devotos”.

Nunca conseguimos convencer Rushdie a escrever para o Book Review novamente, não importa quantas vezes o perguntássemos. Ele sempre recusou graciosamente; ele estava trabalhando em outro romance ou viajando. Mas publicar Rushdie continua sendo um ponto alto dos meus nove anos de edição no Book Review. Como tivemos sorte.

O que resta a dizer sobre o terrível ataque a Rushdie na Chautauqua Institution em Nova York, um lugar com pouca segurança porque sempre pareceu tão seguro? Sobre o fato de que depois de todos esses anos, o ato de escrever ficção foi punido com violência?

Lembro-me do meu tempo na B. Dalton, quando, após a fatwa, os clientes chegavam em massa. Alguns deixavam suas cópias de Perigo Real e Imediato, A Metade Negra e o último Nelson DeMille no balcão antes de dizer: “Não sei se é meu tipo de coisa, mas gostaria de comprar uma cópia daquele ‘Versos Satânicos’.” Outros iam direto para a caixa registradora e perguntaram se estávamos carregando o que chamávamos de O Livro. “Precisamos apoiá-lo”, diziam. Esses clientes se tornaram outro tipo de inspiração.

Porque não é apenas vital que os autores continuem a escrever livros que possam desafiar e possivelmente ofender a sensibilidade ou santidade de algumas pessoas. Não é apenas vital que os editores continuem apoiando esses autores, para protegê-los, promovê-los e se orgulhar deles, e que os tradutores continuem a disponibilizar essas palavras para o público global. Não é apenas vital que as livrarias continuem a vender esses livros, mesmo que seus funcionários discordem ou desaprovem ou mesmo que temam que alguns em suas comunidades se oponham a eles.

Também é vital que os leitores continuem a ler as obras que sustentam esses autores. Em última análise, é a vontade dos leitores de enfrentar livros desafiadores que permite que uma cultura permaneça aberta e florescente.

Afinal, são os leitores de Rushdie que podem ter literalmente ajudado a salvá-lo. “Somos muito gratos a todos os membros da plateia que corajosamente saíram em sua defesa e administraram os primeiros socorros, junto com a polícia e os médicos que cuidaram dele e pela demonstração de amor e apoio de todo o mundo”, disse Zafar, filho de Rushdie em um comunicado após o ataque. São os leitores que continuarão lendo seus romances daqui a alguns anos que sempre manterão vivas as palavras de Salman Rushdie. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Em 1989, eu trabalhava na livraria B. Dalton, no shopping center American Manhasset, em Long Island, Nova York, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu sua fatwa contra Salman Rushdie. Eu tinha 17 anos. O que já era um emprego dos sonhos para uma adolescente estudiosa se transformou em outra coisa: um despertar político.

Como a maioria das crianças daquela época, eu estava ciente da Revolução Islâmica de 1979 e da crise dos reféns que se seguiu, embora eu fosse muito jovem para ler as notícias na época. Uma descrição grosseira do que deveria ser feito com o aiatolá havia sido pintada com spray em grossas letras pretas em uma parede do lado de fora da escola primária que eu frequentava. Olhando para ela todos os dias, eu tinha uma terrível sensação infantil de “Alguém pode ter problemas”.

Salman Rushdie em foto tirada em Paris em 10 de setembro de 2018. Foto: Joel Saget/AFP

Foi só quando a fatwa foi emitida que percebi: esse é o tipo de problema que vale a pena enfrentar. Nosso gerente de loja nos disse que a B. Dalton havia resolvido continuar a vender Versos Satânicos, o romance que havia provocado a fatwa do aiatolá. Alguns dos meus colegas de trabalho talvez não quisessem lidar com isso. Afinal, algumas livrarias nos Estados Unidos foram bombardeadas. Mas, como a maioria dos meus colegas de trabalho, imediatamente mudei do medo para a determinação, inscrevendo-me no maior número de turnos que conseguisse.

A loja tomou precauções. A cada dia que chegávamos ao trabalho, um gerente nos atualizava sobre os protocolos mais recentes. A certa altura, todas as cópias do romance foram retiradas das prateleiras e das vitrines e mantidas em um quarto dos fundos. Mais tarde, guardamos cópias escondidas debaixo de um balcão na parte de trás.

“Se alguém perguntar se temos estoque ou não, pense bem antes de responder”, nos disseram. “Responda caso a caso.”

Vinte e cinco anos depois, a essa altura trabalhando no The New York Times como editora do Book Review, eu estava bebendo com o agente de Salman Rushdie, Andrew Wylie, no dia em que Gabriel García Márquez morreu. Wylie sugeriu que Rushdie escrevesse um texto sobre García Márquez para o Book Review. Não havia outra resposta possível além de sim. O ensaio de Rushdie, que ele apresentou no dia seguinte, não precisou ser editado. Quando foi publicado em nossa capa, a resposta foi gratificante, esmagadoramente positiva.

Nesse ensaio, Rushdie escreveu sobre como, apesar de seus diferentes países de origem e idiomas (para ele, Índia e inglês; para García Márquez, Colômbia e espanhol), ele via sua própria vida no trabalho de seu par: “Conheci os coronéis e generais de García Márquez, ou pelo menos seus homólogos indianos e paquistaneses; seus bispos eram meus mulás; suas ruas de mercado eram meus bazares.” Além disso, ele escreveu, “em ambos os lugares a religião é de grande importância e Deus está vivo, e assim, infelizmente, são os devotos”.

Nunca conseguimos convencer Rushdie a escrever para o Book Review novamente, não importa quantas vezes o perguntássemos. Ele sempre recusou graciosamente; ele estava trabalhando em outro romance ou viajando. Mas publicar Rushdie continua sendo um ponto alto dos meus nove anos de edição no Book Review. Como tivemos sorte.

O que resta a dizer sobre o terrível ataque a Rushdie na Chautauqua Institution em Nova York, um lugar com pouca segurança porque sempre pareceu tão seguro? Sobre o fato de que depois de todos esses anos, o ato de escrever ficção foi punido com violência?

Lembro-me do meu tempo na B. Dalton, quando, após a fatwa, os clientes chegavam em massa. Alguns deixavam suas cópias de Perigo Real e Imediato, A Metade Negra e o último Nelson DeMille no balcão antes de dizer: “Não sei se é meu tipo de coisa, mas gostaria de comprar uma cópia daquele ‘Versos Satânicos’.” Outros iam direto para a caixa registradora e perguntaram se estávamos carregando o que chamávamos de O Livro. “Precisamos apoiá-lo”, diziam. Esses clientes se tornaram outro tipo de inspiração.

Porque não é apenas vital que os autores continuem a escrever livros que possam desafiar e possivelmente ofender a sensibilidade ou santidade de algumas pessoas. Não é apenas vital que os editores continuem apoiando esses autores, para protegê-los, promovê-los e se orgulhar deles, e que os tradutores continuem a disponibilizar essas palavras para o público global. Não é apenas vital que as livrarias continuem a vender esses livros, mesmo que seus funcionários discordem ou desaprovem ou mesmo que temam que alguns em suas comunidades se oponham a eles.

Também é vital que os leitores continuem a ler as obras que sustentam esses autores. Em última análise, é a vontade dos leitores de enfrentar livros desafiadores que permite que uma cultura permaneça aberta e florescente.

Afinal, são os leitores de Rushdie que podem ter literalmente ajudado a salvá-lo. “Somos muito gratos a todos os membros da plateia que corajosamente saíram em sua defesa e administraram os primeiros socorros, junto com a polícia e os médicos que cuidaram dele e pela demonstração de amor e apoio de todo o mundo”, disse Zafar, filho de Rushdie em um comunicado após o ataque. São os leitores que continuarão lendo seus romances daqui a alguns anos que sempre manterão vivas as palavras de Salman Rushdie. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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