Ted Lasso: personagem é um tolo sagrado dos dias modernos


A pastora anglicana Tish Harrison Warren compara o treinador da série com pessoas que preferem desprezar convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus

Por Tish Harrison Warren

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Todas as quartas-feiras à noite, meu marido e eu assistimos a Ted Lasso, a série cômica da Apple TV+ premiada com o Emmy. O protagonista e personagem-título da série, interpretado por Jason Sudeikis, é exuberante, gentil e, embora esperto, persistentemente bobo. No episódio piloto, Ted, de olhos arregalados e com um ar despretensioso, chega à Inglaterra depois de se mudar do Kansas com seu amigo, o técnico Barba. Eles entram em um carro incrivelmente pequeno e Ted grita para Rebecca, sua nova chefe séria e ardilosa: “Olha! Este carro tem um volante invisível!”, fingindo dirigir do lado esquerdo do carro (como fazemos deste lado do mundo). É claro que ele é uma espécie de palhaço, com essa cena até parecendo um truque de palhaço. Descobrimos ao longo da série que é nesse mesmo campo da tolice que se encontra o seu poder.

Arquétipos religiosos não faltam na literatura e no entretenimento popular. Há famosas “figuras de Cristo” como Gandalf em O Senhor dos Anéis, Dumbledore nas histórias de Harry Potter e Anna em Frozen. Visto por essa lente, Ted Lasso é outro tipo de arquétipo religioso: um tolo sagrado dos dias modernos.

O tolo sagrado, ou yurodivy (também escrito iurodivyi), é um personagem bem conhecido, embora controverso, na espiritualidade ortodoxa russa. Em seu livro Holy Fools in Byzantium and Beyond, o historiador Sergey A. Ivanov escreve que na tradição ortodoxa o termo designa “uma pessoa que finge insanidade, finge ser tola ou que provoca choque ou indignação por sua deliberada indisciplina.” Em outras palavras, o tolo sagrado é uma pessoa que despreza as convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus. Os tolos sagrados vivem a vida secular comum, mas a abordam com valores completamente diferentes. Rejeitando a respeitabilidade e abraçando a humildade e o amor, os tolos sagrados estão tão profundamente fora de sintonia com o mundo mais amplo que parecem ridículos ou mesmo loucos e muitas vezes convidam ao ridículo. E, no entanto, eles ensinam o resto de nós como viver.

continua após a publicidade
Jason Sudeikis em cena como Ted, técnico do time do Richmond, dando entrevista coletiva. Foto: Colin Hutton / Apple TV+

Lasso, um treinador de futebol americano contratado para treinar futebol - um esporte que ele conhece pouco - para o clube de futebol inglês AFC Richmond é frequentemente ridicularizado pelo público e pela imprensa. Ted encara tudo com calma, irritando os torcedores com sua aparente falta de preocupação em vencer. No início da série, Ted diz a um repórter chamado Trent Crimm: “Para mim, o sucesso não tem a ver com vitórias e derrotas. Trata-se de ajudar esses jovens a serem as melhores versões deles mesmos dentro e fora do campo”. É um clichê, é claro, o tipo de coisa dita como uma frase de efeito no ambiente de esportes de colégio. Mas Ted parece realmente querer dizer isso. E os torcedores do time acham isso horrível, não comovente. Crimm chama Ted de “irresponsável”.

De uma perspectiva religiosa, a rejeição das armadilhas do sucesso, de tudo o que a cultura dominante valoriza mais profundamente, pode ser um ato profético - que, como mostra Lasso, raramente recebe aplausos. A chamada tolice dos tolos sagrados está ligada à sua percepção espiritual. Eles oferecem uma mudança de perspectiva. O que parece “normal” e “bem-sucedido” no mundo é revelado pelo tolo como vazio, vão e sem sentido. No entanto, o que parece tolo é o verdadeiro caminho do florescimento. Acima de tudo, um tolo sagrado é um ícone da humildade radical. E é aqui que Lasso incorpora mais claramente essa persona.

continua após a publicidade

Lasso não é um homem perfeito e ele sabe disso. Quando seu interesse “não exatamente amoroso”, Sassy, o rejeita por considerá-lo uma “bagunça” (mess), ele abraça a ideia (ele se autodenomina, em um trocadilho deliciosamente terrível, “um work in prog-mess”) [de work in progress, trabalho em andamento, sendo assim o trocadilho indica um trabalho em andamento, porém bagunçado]. Ele não é dominado pela culpa, mal-humorado ou perfeccionista. Ele é apenas Ted. Ele luta contra ataques de pânico e normaliza nossa necessidade quase universal de terapia, tanto que o presidente Biden apresentou o elenco da série na Casa Branca no mês passado para promover a conscientização sobre saúde mental.

No episódio de abertura desta temporada, Lasso é publicamente insultado por seu ex-amigo e homem dos kits (gestor de equipamentos) que se tornou o malvado treinador “prodígio”, Nathan Shelley. Rebecca, um tanto vingativa, diz a Ted para retaliar, para “lutar”. No entanto, quando questionado pela imprensa, ele chama os comentários de Nathan de “hilários”, elogia-o como “inteligente” e deseja-lhe boa sorte. Ele então passa a fazer essencialmente um stand up com ele mesmo sendo o alvo da piada: “Pareço o Ned Flanders fazendo cosplay como Ned Flanders. Quando falo, parece que o Dr. Phil ainda não passou pela puberdade”. Ele faz piada sobre sua saúde mental: “Já tive mais episódios psicóticos do que Twin Peaks.” Ele encanta a imprensa, faz rir e, com uma humildade efervescente, transforma um momento de conflito em um momento de leveza e até de alegria. Isso também expõe a mesquinhez de Nathan. Na fraqueza de Ted está sua força, enquanto o apego à força de Nate revela uma fraqueza debilitante.

A grande humildade de Lasso, repetidas vezes, faz dele uma fonte de transformação e redenção. Ele desarma as pessoas. No arco da história principal da primeira temporada da série, Rebecca vai da tentativa de usar e humilhar Ted para destruir seu time (em busca de vingança contra seu ex-marido mulherengo, cujo único amor verdadeiro é o clube) para abraçá-lo como um amigo leal. Ele a conquistou com os “biscoitos com a chefe” diários, que, descobrimos, ele mesmo prepara secretamente, o tipo de consideração extravagante que esperamos dele.

continua após a publicidade

Quando, em um clímax emocional da temporada, Rebecca revela seu plano secreto para Ted, confessando “Eu sabotei você em todas as chances que tive”, ela se desculpa às lágrimas e Ted imediatamente a perdoa e vê uma espécie de bondade mesmo em suas intrigas sombrias (“Este trabalho que você me deu mudou minha vida”, diz ele). Os tolos sagrados são marcados por esse tipo de graça opulenta, irracional e prodigiosa. Como Dostoievski delineou o personagem principal de O Idiota, o príncipe Míshkin, talvez o mais famoso tolo sagrado da literatura, ele escreveu: “Sua maneira de ver o mundo: ele perdoa tudo, vê razões para tudo, não aceita que qualquer pecado seja imperdoável”

Há uma espécie de mágica em ação na vida de Ted Lasso. Quando todos parecem ser levados pelas poderosas ondas da ambição, da vaidade, da fama, da desilusão e do desprezo, surpreende-nos quando alguém nada contra a corrente. A ativista social católica Dorothy Day termina seu livro de memórias The Long Loneliness com uma de minhas falas favoritas: “Todos nós conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade”. Lasso carrega consigo uma dolorosa solidão. Seu casamento se dissolveu. Ele deseja estar mais perto de seu filho nos Estados Unidos (eu me vejo perguntando na terceira temporada, assim como Ted, por que ele ainda está na Inglaterra?). No entanto, sua fé incessante e infantil nas pessoas - sua tolice - permite que Ted esbanje amor pelas pessoas ao seu redor. E onde quer que ele vá - do vestiário a uma reunião dos Diamond Dogs, seu grupo improvisado de apoio masculino - a comunidade floresce. Em uma entrevista com Crimm no início da série, Ted olha o jornalista nos olhos e diz: “Gostei muito de passar esse tempo com você”. Crimm fica surpreso. Ele responde, confuso: “Você realmente quer dizer isso, não é?”

Ted Lasso, a série, é desigual. Há partes que amo (como o bromance de Jamie Tartt e Roy Kent) e partes que não gosto (momentos em que os escritores insistem, mesmo em nossa era pós-MeToo, em emparelhar romanticamente patrões e empregados com vastas disparidades de poder). Ainda assim, sou atraída pela série a cada semana por causa da alegria genuína, embora problemática, de Ted, sua tolice redentora e acolhimento incansável das pessoas.

continua após a publicidade

Em uma época em que nossa cultura é marcada pela indignação, divisão e cinismo, Ted Lasso nos chama de volta à humildade. Ele nos pede para relaxar um pouco, para não nos levarmos muito a sério. Ao fazer isso, ele lembra a todos que encontra - incluindo quem assiste em casa - de nossa humanidade compartilhada. Somos todos, no final, não vencedores ou perdedores, sucessos ou fracassos, heróis ou vilões puros, mas pessoas que desejam ser conhecidas, amadas e felizes. Este é o dom de Ted Lasso. Ele nos mostra o que é possível quando desistimos de vencer - jogos de futebol, conquistas de poder, sucesso profissional, guerras culturais ou brigas online - e, por mais tolo que pareça, optamos por torcer pelas pessoas ao nosso redor.

Tish Harrison Warren (@Tish_H_Warren) é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Prayer in the Night: For They Who Work or Watch or Weep. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Todas as quartas-feiras à noite, meu marido e eu assistimos a Ted Lasso, a série cômica da Apple TV+ premiada com o Emmy. O protagonista e personagem-título da série, interpretado por Jason Sudeikis, é exuberante, gentil e, embora esperto, persistentemente bobo. No episódio piloto, Ted, de olhos arregalados e com um ar despretensioso, chega à Inglaterra depois de se mudar do Kansas com seu amigo, o técnico Barba. Eles entram em um carro incrivelmente pequeno e Ted grita para Rebecca, sua nova chefe séria e ardilosa: “Olha! Este carro tem um volante invisível!”, fingindo dirigir do lado esquerdo do carro (como fazemos deste lado do mundo). É claro que ele é uma espécie de palhaço, com essa cena até parecendo um truque de palhaço. Descobrimos ao longo da série que é nesse mesmo campo da tolice que se encontra o seu poder.

Arquétipos religiosos não faltam na literatura e no entretenimento popular. Há famosas “figuras de Cristo” como Gandalf em O Senhor dos Anéis, Dumbledore nas histórias de Harry Potter e Anna em Frozen. Visto por essa lente, Ted Lasso é outro tipo de arquétipo religioso: um tolo sagrado dos dias modernos.

O tolo sagrado, ou yurodivy (também escrito iurodivyi), é um personagem bem conhecido, embora controverso, na espiritualidade ortodoxa russa. Em seu livro Holy Fools in Byzantium and Beyond, o historiador Sergey A. Ivanov escreve que na tradição ortodoxa o termo designa “uma pessoa que finge insanidade, finge ser tola ou que provoca choque ou indignação por sua deliberada indisciplina.” Em outras palavras, o tolo sagrado é uma pessoa que despreza as convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus. Os tolos sagrados vivem a vida secular comum, mas a abordam com valores completamente diferentes. Rejeitando a respeitabilidade e abraçando a humildade e o amor, os tolos sagrados estão tão profundamente fora de sintonia com o mundo mais amplo que parecem ridículos ou mesmo loucos e muitas vezes convidam ao ridículo. E, no entanto, eles ensinam o resto de nós como viver.

Jason Sudeikis em cena como Ted, técnico do time do Richmond, dando entrevista coletiva. Foto: Colin Hutton / Apple TV+

Lasso, um treinador de futebol americano contratado para treinar futebol - um esporte que ele conhece pouco - para o clube de futebol inglês AFC Richmond é frequentemente ridicularizado pelo público e pela imprensa. Ted encara tudo com calma, irritando os torcedores com sua aparente falta de preocupação em vencer. No início da série, Ted diz a um repórter chamado Trent Crimm: “Para mim, o sucesso não tem a ver com vitórias e derrotas. Trata-se de ajudar esses jovens a serem as melhores versões deles mesmos dentro e fora do campo”. É um clichê, é claro, o tipo de coisa dita como uma frase de efeito no ambiente de esportes de colégio. Mas Ted parece realmente querer dizer isso. E os torcedores do time acham isso horrível, não comovente. Crimm chama Ted de “irresponsável”.

De uma perspectiva religiosa, a rejeição das armadilhas do sucesso, de tudo o que a cultura dominante valoriza mais profundamente, pode ser um ato profético - que, como mostra Lasso, raramente recebe aplausos. A chamada tolice dos tolos sagrados está ligada à sua percepção espiritual. Eles oferecem uma mudança de perspectiva. O que parece “normal” e “bem-sucedido” no mundo é revelado pelo tolo como vazio, vão e sem sentido. No entanto, o que parece tolo é o verdadeiro caminho do florescimento. Acima de tudo, um tolo sagrado é um ícone da humildade radical. E é aqui que Lasso incorpora mais claramente essa persona.

Lasso não é um homem perfeito e ele sabe disso. Quando seu interesse “não exatamente amoroso”, Sassy, o rejeita por considerá-lo uma “bagunça” (mess), ele abraça a ideia (ele se autodenomina, em um trocadilho deliciosamente terrível, “um work in prog-mess”) [de work in progress, trabalho em andamento, sendo assim o trocadilho indica um trabalho em andamento, porém bagunçado]. Ele não é dominado pela culpa, mal-humorado ou perfeccionista. Ele é apenas Ted. Ele luta contra ataques de pânico e normaliza nossa necessidade quase universal de terapia, tanto que o presidente Biden apresentou o elenco da série na Casa Branca no mês passado para promover a conscientização sobre saúde mental.

No episódio de abertura desta temporada, Lasso é publicamente insultado por seu ex-amigo e homem dos kits (gestor de equipamentos) que se tornou o malvado treinador “prodígio”, Nathan Shelley. Rebecca, um tanto vingativa, diz a Ted para retaliar, para “lutar”. No entanto, quando questionado pela imprensa, ele chama os comentários de Nathan de “hilários”, elogia-o como “inteligente” e deseja-lhe boa sorte. Ele então passa a fazer essencialmente um stand up com ele mesmo sendo o alvo da piada: “Pareço o Ned Flanders fazendo cosplay como Ned Flanders. Quando falo, parece que o Dr. Phil ainda não passou pela puberdade”. Ele faz piada sobre sua saúde mental: “Já tive mais episódios psicóticos do que Twin Peaks.” Ele encanta a imprensa, faz rir e, com uma humildade efervescente, transforma um momento de conflito em um momento de leveza e até de alegria. Isso também expõe a mesquinhez de Nathan. Na fraqueza de Ted está sua força, enquanto o apego à força de Nate revela uma fraqueza debilitante.

A grande humildade de Lasso, repetidas vezes, faz dele uma fonte de transformação e redenção. Ele desarma as pessoas. No arco da história principal da primeira temporada da série, Rebecca vai da tentativa de usar e humilhar Ted para destruir seu time (em busca de vingança contra seu ex-marido mulherengo, cujo único amor verdadeiro é o clube) para abraçá-lo como um amigo leal. Ele a conquistou com os “biscoitos com a chefe” diários, que, descobrimos, ele mesmo prepara secretamente, o tipo de consideração extravagante que esperamos dele.

Quando, em um clímax emocional da temporada, Rebecca revela seu plano secreto para Ted, confessando “Eu sabotei você em todas as chances que tive”, ela se desculpa às lágrimas e Ted imediatamente a perdoa e vê uma espécie de bondade mesmo em suas intrigas sombrias (“Este trabalho que você me deu mudou minha vida”, diz ele). Os tolos sagrados são marcados por esse tipo de graça opulenta, irracional e prodigiosa. Como Dostoievski delineou o personagem principal de O Idiota, o príncipe Míshkin, talvez o mais famoso tolo sagrado da literatura, ele escreveu: “Sua maneira de ver o mundo: ele perdoa tudo, vê razões para tudo, não aceita que qualquer pecado seja imperdoável”

Há uma espécie de mágica em ação na vida de Ted Lasso. Quando todos parecem ser levados pelas poderosas ondas da ambição, da vaidade, da fama, da desilusão e do desprezo, surpreende-nos quando alguém nada contra a corrente. A ativista social católica Dorothy Day termina seu livro de memórias The Long Loneliness com uma de minhas falas favoritas: “Todos nós conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade”. Lasso carrega consigo uma dolorosa solidão. Seu casamento se dissolveu. Ele deseja estar mais perto de seu filho nos Estados Unidos (eu me vejo perguntando na terceira temporada, assim como Ted, por que ele ainda está na Inglaterra?). No entanto, sua fé incessante e infantil nas pessoas - sua tolice - permite que Ted esbanje amor pelas pessoas ao seu redor. E onde quer que ele vá - do vestiário a uma reunião dos Diamond Dogs, seu grupo improvisado de apoio masculino - a comunidade floresce. Em uma entrevista com Crimm no início da série, Ted olha o jornalista nos olhos e diz: “Gostei muito de passar esse tempo com você”. Crimm fica surpreso. Ele responde, confuso: “Você realmente quer dizer isso, não é?”

Ted Lasso, a série, é desigual. Há partes que amo (como o bromance de Jamie Tartt e Roy Kent) e partes que não gosto (momentos em que os escritores insistem, mesmo em nossa era pós-MeToo, em emparelhar romanticamente patrões e empregados com vastas disparidades de poder). Ainda assim, sou atraída pela série a cada semana por causa da alegria genuína, embora problemática, de Ted, sua tolice redentora e acolhimento incansável das pessoas.

Em uma época em que nossa cultura é marcada pela indignação, divisão e cinismo, Ted Lasso nos chama de volta à humildade. Ele nos pede para relaxar um pouco, para não nos levarmos muito a sério. Ao fazer isso, ele lembra a todos que encontra - incluindo quem assiste em casa - de nossa humanidade compartilhada. Somos todos, no final, não vencedores ou perdedores, sucessos ou fracassos, heróis ou vilões puros, mas pessoas que desejam ser conhecidas, amadas e felizes. Este é o dom de Ted Lasso. Ele nos mostra o que é possível quando desistimos de vencer - jogos de futebol, conquistas de poder, sucesso profissional, guerras culturais ou brigas online - e, por mais tolo que pareça, optamos por torcer pelas pessoas ao nosso redor.

Tish Harrison Warren (@Tish_H_Warren) é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Prayer in the Night: For They Who Work or Watch or Weep. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Todas as quartas-feiras à noite, meu marido e eu assistimos a Ted Lasso, a série cômica da Apple TV+ premiada com o Emmy. O protagonista e personagem-título da série, interpretado por Jason Sudeikis, é exuberante, gentil e, embora esperto, persistentemente bobo. No episódio piloto, Ted, de olhos arregalados e com um ar despretensioso, chega à Inglaterra depois de se mudar do Kansas com seu amigo, o técnico Barba. Eles entram em um carro incrivelmente pequeno e Ted grita para Rebecca, sua nova chefe séria e ardilosa: “Olha! Este carro tem um volante invisível!”, fingindo dirigir do lado esquerdo do carro (como fazemos deste lado do mundo). É claro que ele é uma espécie de palhaço, com essa cena até parecendo um truque de palhaço. Descobrimos ao longo da série que é nesse mesmo campo da tolice que se encontra o seu poder.

Arquétipos religiosos não faltam na literatura e no entretenimento popular. Há famosas “figuras de Cristo” como Gandalf em O Senhor dos Anéis, Dumbledore nas histórias de Harry Potter e Anna em Frozen. Visto por essa lente, Ted Lasso é outro tipo de arquétipo religioso: um tolo sagrado dos dias modernos.

O tolo sagrado, ou yurodivy (também escrito iurodivyi), é um personagem bem conhecido, embora controverso, na espiritualidade ortodoxa russa. Em seu livro Holy Fools in Byzantium and Beyond, o historiador Sergey A. Ivanov escreve que na tradição ortodoxa o termo designa “uma pessoa que finge insanidade, finge ser tola ou que provoca choque ou indignação por sua deliberada indisciplina.” Em outras palavras, o tolo sagrado é uma pessoa que despreza as convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus. Os tolos sagrados vivem a vida secular comum, mas a abordam com valores completamente diferentes. Rejeitando a respeitabilidade e abraçando a humildade e o amor, os tolos sagrados estão tão profundamente fora de sintonia com o mundo mais amplo que parecem ridículos ou mesmo loucos e muitas vezes convidam ao ridículo. E, no entanto, eles ensinam o resto de nós como viver.

Jason Sudeikis em cena como Ted, técnico do time do Richmond, dando entrevista coletiva. Foto: Colin Hutton / Apple TV+

Lasso, um treinador de futebol americano contratado para treinar futebol - um esporte que ele conhece pouco - para o clube de futebol inglês AFC Richmond é frequentemente ridicularizado pelo público e pela imprensa. Ted encara tudo com calma, irritando os torcedores com sua aparente falta de preocupação em vencer. No início da série, Ted diz a um repórter chamado Trent Crimm: “Para mim, o sucesso não tem a ver com vitórias e derrotas. Trata-se de ajudar esses jovens a serem as melhores versões deles mesmos dentro e fora do campo”. É um clichê, é claro, o tipo de coisa dita como uma frase de efeito no ambiente de esportes de colégio. Mas Ted parece realmente querer dizer isso. E os torcedores do time acham isso horrível, não comovente. Crimm chama Ted de “irresponsável”.

De uma perspectiva religiosa, a rejeição das armadilhas do sucesso, de tudo o que a cultura dominante valoriza mais profundamente, pode ser um ato profético - que, como mostra Lasso, raramente recebe aplausos. A chamada tolice dos tolos sagrados está ligada à sua percepção espiritual. Eles oferecem uma mudança de perspectiva. O que parece “normal” e “bem-sucedido” no mundo é revelado pelo tolo como vazio, vão e sem sentido. No entanto, o que parece tolo é o verdadeiro caminho do florescimento. Acima de tudo, um tolo sagrado é um ícone da humildade radical. E é aqui que Lasso incorpora mais claramente essa persona.

Lasso não é um homem perfeito e ele sabe disso. Quando seu interesse “não exatamente amoroso”, Sassy, o rejeita por considerá-lo uma “bagunça” (mess), ele abraça a ideia (ele se autodenomina, em um trocadilho deliciosamente terrível, “um work in prog-mess”) [de work in progress, trabalho em andamento, sendo assim o trocadilho indica um trabalho em andamento, porém bagunçado]. Ele não é dominado pela culpa, mal-humorado ou perfeccionista. Ele é apenas Ted. Ele luta contra ataques de pânico e normaliza nossa necessidade quase universal de terapia, tanto que o presidente Biden apresentou o elenco da série na Casa Branca no mês passado para promover a conscientização sobre saúde mental.

No episódio de abertura desta temporada, Lasso é publicamente insultado por seu ex-amigo e homem dos kits (gestor de equipamentos) que se tornou o malvado treinador “prodígio”, Nathan Shelley. Rebecca, um tanto vingativa, diz a Ted para retaliar, para “lutar”. No entanto, quando questionado pela imprensa, ele chama os comentários de Nathan de “hilários”, elogia-o como “inteligente” e deseja-lhe boa sorte. Ele então passa a fazer essencialmente um stand up com ele mesmo sendo o alvo da piada: “Pareço o Ned Flanders fazendo cosplay como Ned Flanders. Quando falo, parece que o Dr. Phil ainda não passou pela puberdade”. Ele faz piada sobre sua saúde mental: “Já tive mais episódios psicóticos do que Twin Peaks.” Ele encanta a imprensa, faz rir e, com uma humildade efervescente, transforma um momento de conflito em um momento de leveza e até de alegria. Isso também expõe a mesquinhez de Nathan. Na fraqueza de Ted está sua força, enquanto o apego à força de Nate revela uma fraqueza debilitante.

A grande humildade de Lasso, repetidas vezes, faz dele uma fonte de transformação e redenção. Ele desarma as pessoas. No arco da história principal da primeira temporada da série, Rebecca vai da tentativa de usar e humilhar Ted para destruir seu time (em busca de vingança contra seu ex-marido mulherengo, cujo único amor verdadeiro é o clube) para abraçá-lo como um amigo leal. Ele a conquistou com os “biscoitos com a chefe” diários, que, descobrimos, ele mesmo prepara secretamente, o tipo de consideração extravagante que esperamos dele.

Quando, em um clímax emocional da temporada, Rebecca revela seu plano secreto para Ted, confessando “Eu sabotei você em todas as chances que tive”, ela se desculpa às lágrimas e Ted imediatamente a perdoa e vê uma espécie de bondade mesmo em suas intrigas sombrias (“Este trabalho que você me deu mudou minha vida”, diz ele). Os tolos sagrados são marcados por esse tipo de graça opulenta, irracional e prodigiosa. Como Dostoievski delineou o personagem principal de O Idiota, o príncipe Míshkin, talvez o mais famoso tolo sagrado da literatura, ele escreveu: “Sua maneira de ver o mundo: ele perdoa tudo, vê razões para tudo, não aceita que qualquer pecado seja imperdoável”

Há uma espécie de mágica em ação na vida de Ted Lasso. Quando todos parecem ser levados pelas poderosas ondas da ambição, da vaidade, da fama, da desilusão e do desprezo, surpreende-nos quando alguém nada contra a corrente. A ativista social católica Dorothy Day termina seu livro de memórias The Long Loneliness com uma de minhas falas favoritas: “Todos nós conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade”. Lasso carrega consigo uma dolorosa solidão. Seu casamento se dissolveu. Ele deseja estar mais perto de seu filho nos Estados Unidos (eu me vejo perguntando na terceira temporada, assim como Ted, por que ele ainda está na Inglaterra?). No entanto, sua fé incessante e infantil nas pessoas - sua tolice - permite que Ted esbanje amor pelas pessoas ao seu redor. E onde quer que ele vá - do vestiário a uma reunião dos Diamond Dogs, seu grupo improvisado de apoio masculino - a comunidade floresce. Em uma entrevista com Crimm no início da série, Ted olha o jornalista nos olhos e diz: “Gostei muito de passar esse tempo com você”. Crimm fica surpreso. Ele responde, confuso: “Você realmente quer dizer isso, não é?”

Ted Lasso, a série, é desigual. Há partes que amo (como o bromance de Jamie Tartt e Roy Kent) e partes que não gosto (momentos em que os escritores insistem, mesmo em nossa era pós-MeToo, em emparelhar romanticamente patrões e empregados com vastas disparidades de poder). Ainda assim, sou atraída pela série a cada semana por causa da alegria genuína, embora problemática, de Ted, sua tolice redentora e acolhimento incansável das pessoas.

Em uma época em que nossa cultura é marcada pela indignação, divisão e cinismo, Ted Lasso nos chama de volta à humildade. Ele nos pede para relaxar um pouco, para não nos levarmos muito a sério. Ao fazer isso, ele lembra a todos que encontra - incluindo quem assiste em casa - de nossa humanidade compartilhada. Somos todos, no final, não vencedores ou perdedores, sucessos ou fracassos, heróis ou vilões puros, mas pessoas que desejam ser conhecidas, amadas e felizes. Este é o dom de Ted Lasso. Ele nos mostra o que é possível quando desistimos de vencer - jogos de futebol, conquistas de poder, sucesso profissional, guerras culturais ou brigas online - e, por mais tolo que pareça, optamos por torcer pelas pessoas ao nosso redor.

Tish Harrison Warren (@Tish_H_Warren) é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Prayer in the Night: For They Who Work or Watch or Weep. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Todas as quartas-feiras à noite, meu marido e eu assistimos a Ted Lasso, a série cômica da Apple TV+ premiada com o Emmy. O protagonista e personagem-título da série, interpretado por Jason Sudeikis, é exuberante, gentil e, embora esperto, persistentemente bobo. No episódio piloto, Ted, de olhos arregalados e com um ar despretensioso, chega à Inglaterra depois de se mudar do Kansas com seu amigo, o técnico Barba. Eles entram em um carro incrivelmente pequeno e Ted grita para Rebecca, sua nova chefe séria e ardilosa: “Olha! Este carro tem um volante invisível!”, fingindo dirigir do lado esquerdo do carro (como fazemos deste lado do mundo). É claro que ele é uma espécie de palhaço, com essa cena até parecendo um truque de palhaço. Descobrimos ao longo da série que é nesse mesmo campo da tolice que se encontra o seu poder.

Arquétipos religiosos não faltam na literatura e no entretenimento popular. Há famosas “figuras de Cristo” como Gandalf em O Senhor dos Anéis, Dumbledore nas histórias de Harry Potter e Anna em Frozen. Visto por essa lente, Ted Lasso é outro tipo de arquétipo religioso: um tolo sagrado dos dias modernos.

O tolo sagrado, ou yurodivy (também escrito iurodivyi), é um personagem bem conhecido, embora controverso, na espiritualidade ortodoxa russa. Em seu livro Holy Fools in Byzantium and Beyond, o historiador Sergey A. Ivanov escreve que na tradição ortodoxa o termo designa “uma pessoa que finge insanidade, finge ser tola ou que provoca choque ou indignação por sua deliberada indisciplina.” Em outras palavras, o tolo sagrado é uma pessoa que despreza as convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus. Os tolos sagrados vivem a vida secular comum, mas a abordam com valores completamente diferentes. Rejeitando a respeitabilidade e abraçando a humildade e o amor, os tolos sagrados estão tão profundamente fora de sintonia com o mundo mais amplo que parecem ridículos ou mesmo loucos e muitas vezes convidam ao ridículo. E, no entanto, eles ensinam o resto de nós como viver.

Jason Sudeikis em cena como Ted, técnico do time do Richmond, dando entrevista coletiva. Foto: Colin Hutton / Apple TV+

Lasso, um treinador de futebol americano contratado para treinar futebol - um esporte que ele conhece pouco - para o clube de futebol inglês AFC Richmond é frequentemente ridicularizado pelo público e pela imprensa. Ted encara tudo com calma, irritando os torcedores com sua aparente falta de preocupação em vencer. No início da série, Ted diz a um repórter chamado Trent Crimm: “Para mim, o sucesso não tem a ver com vitórias e derrotas. Trata-se de ajudar esses jovens a serem as melhores versões deles mesmos dentro e fora do campo”. É um clichê, é claro, o tipo de coisa dita como uma frase de efeito no ambiente de esportes de colégio. Mas Ted parece realmente querer dizer isso. E os torcedores do time acham isso horrível, não comovente. Crimm chama Ted de “irresponsável”.

De uma perspectiva religiosa, a rejeição das armadilhas do sucesso, de tudo o que a cultura dominante valoriza mais profundamente, pode ser um ato profético - que, como mostra Lasso, raramente recebe aplausos. A chamada tolice dos tolos sagrados está ligada à sua percepção espiritual. Eles oferecem uma mudança de perspectiva. O que parece “normal” e “bem-sucedido” no mundo é revelado pelo tolo como vazio, vão e sem sentido. No entanto, o que parece tolo é o verdadeiro caminho do florescimento. Acima de tudo, um tolo sagrado é um ícone da humildade radical. E é aqui que Lasso incorpora mais claramente essa persona.

Lasso não é um homem perfeito e ele sabe disso. Quando seu interesse “não exatamente amoroso”, Sassy, o rejeita por considerá-lo uma “bagunça” (mess), ele abraça a ideia (ele se autodenomina, em um trocadilho deliciosamente terrível, “um work in prog-mess”) [de work in progress, trabalho em andamento, sendo assim o trocadilho indica um trabalho em andamento, porém bagunçado]. Ele não é dominado pela culpa, mal-humorado ou perfeccionista. Ele é apenas Ted. Ele luta contra ataques de pânico e normaliza nossa necessidade quase universal de terapia, tanto que o presidente Biden apresentou o elenco da série na Casa Branca no mês passado para promover a conscientização sobre saúde mental.

No episódio de abertura desta temporada, Lasso é publicamente insultado por seu ex-amigo e homem dos kits (gestor de equipamentos) que se tornou o malvado treinador “prodígio”, Nathan Shelley. Rebecca, um tanto vingativa, diz a Ted para retaliar, para “lutar”. No entanto, quando questionado pela imprensa, ele chama os comentários de Nathan de “hilários”, elogia-o como “inteligente” e deseja-lhe boa sorte. Ele então passa a fazer essencialmente um stand up com ele mesmo sendo o alvo da piada: “Pareço o Ned Flanders fazendo cosplay como Ned Flanders. Quando falo, parece que o Dr. Phil ainda não passou pela puberdade”. Ele faz piada sobre sua saúde mental: “Já tive mais episódios psicóticos do que Twin Peaks.” Ele encanta a imprensa, faz rir e, com uma humildade efervescente, transforma um momento de conflito em um momento de leveza e até de alegria. Isso também expõe a mesquinhez de Nathan. Na fraqueza de Ted está sua força, enquanto o apego à força de Nate revela uma fraqueza debilitante.

A grande humildade de Lasso, repetidas vezes, faz dele uma fonte de transformação e redenção. Ele desarma as pessoas. No arco da história principal da primeira temporada da série, Rebecca vai da tentativa de usar e humilhar Ted para destruir seu time (em busca de vingança contra seu ex-marido mulherengo, cujo único amor verdadeiro é o clube) para abraçá-lo como um amigo leal. Ele a conquistou com os “biscoitos com a chefe” diários, que, descobrimos, ele mesmo prepara secretamente, o tipo de consideração extravagante que esperamos dele.

Quando, em um clímax emocional da temporada, Rebecca revela seu plano secreto para Ted, confessando “Eu sabotei você em todas as chances que tive”, ela se desculpa às lágrimas e Ted imediatamente a perdoa e vê uma espécie de bondade mesmo em suas intrigas sombrias (“Este trabalho que você me deu mudou minha vida”, diz ele). Os tolos sagrados são marcados por esse tipo de graça opulenta, irracional e prodigiosa. Como Dostoievski delineou o personagem principal de O Idiota, o príncipe Míshkin, talvez o mais famoso tolo sagrado da literatura, ele escreveu: “Sua maneira de ver o mundo: ele perdoa tudo, vê razões para tudo, não aceita que qualquer pecado seja imperdoável”

Há uma espécie de mágica em ação na vida de Ted Lasso. Quando todos parecem ser levados pelas poderosas ondas da ambição, da vaidade, da fama, da desilusão e do desprezo, surpreende-nos quando alguém nada contra a corrente. A ativista social católica Dorothy Day termina seu livro de memórias The Long Loneliness com uma de minhas falas favoritas: “Todos nós conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade”. Lasso carrega consigo uma dolorosa solidão. Seu casamento se dissolveu. Ele deseja estar mais perto de seu filho nos Estados Unidos (eu me vejo perguntando na terceira temporada, assim como Ted, por que ele ainda está na Inglaterra?). No entanto, sua fé incessante e infantil nas pessoas - sua tolice - permite que Ted esbanje amor pelas pessoas ao seu redor. E onde quer que ele vá - do vestiário a uma reunião dos Diamond Dogs, seu grupo improvisado de apoio masculino - a comunidade floresce. Em uma entrevista com Crimm no início da série, Ted olha o jornalista nos olhos e diz: “Gostei muito de passar esse tempo com você”. Crimm fica surpreso. Ele responde, confuso: “Você realmente quer dizer isso, não é?”

Ted Lasso, a série, é desigual. Há partes que amo (como o bromance de Jamie Tartt e Roy Kent) e partes que não gosto (momentos em que os escritores insistem, mesmo em nossa era pós-MeToo, em emparelhar romanticamente patrões e empregados com vastas disparidades de poder). Ainda assim, sou atraída pela série a cada semana por causa da alegria genuína, embora problemática, de Ted, sua tolice redentora e acolhimento incansável das pessoas.

Em uma época em que nossa cultura é marcada pela indignação, divisão e cinismo, Ted Lasso nos chama de volta à humildade. Ele nos pede para relaxar um pouco, para não nos levarmos muito a sério. Ao fazer isso, ele lembra a todos que encontra - incluindo quem assiste em casa - de nossa humanidade compartilhada. Somos todos, no final, não vencedores ou perdedores, sucessos ou fracassos, heróis ou vilões puros, mas pessoas que desejam ser conhecidas, amadas e felizes. Este é o dom de Ted Lasso. Ele nos mostra o que é possível quando desistimos de vencer - jogos de futebol, conquistas de poder, sucesso profissional, guerras culturais ou brigas online - e, por mais tolo que pareça, optamos por torcer pelas pessoas ao nosso redor.

Tish Harrison Warren (@Tish_H_Warren) é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Prayer in the Night: For They Who Work or Watch or Weep. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Todas as quartas-feiras à noite, meu marido e eu assistimos a Ted Lasso, a série cômica da Apple TV+ premiada com o Emmy. O protagonista e personagem-título da série, interpretado por Jason Sudeikis, é exuberante, gentil e, embora esperto, persistentemente bobo. No episódio piloto, Ted, de olhos arregalados e com um ar despretensioso, chega à Inglaterra depois de se mudar do Kansas com seu amigo, o técnico Barba. Eles entram em um carro incrivelmente pequeno e Ted grita para Rebecca, sua nova chefe séria e ardilosa: “Olha! Este carro tem um volante invisível!”, fingindo dirigir do lado esquerdo do carro (como fazemos deste lado do mundo). É claro que ele é uma espécie de palhaço, com essa cena até parecendo um truque de palhaço. Descobrimos ao longo da série que é nesse mesmo campo da tolice que se encontra o seu poder.

Arquétipos religiosos não faltam na literatura e no entretenimento popular. Há famosas “figuras de Cristo” como Gandalf em O Senhor dos Anéis, Dumbledore nas histórias de Harry Potter e Anna em Frozen. Visto por essa lente, Ted Lasso é outro tipo de arquétipo religioso: um tolo sagrado dos dias modernos.

O tolo sagrado, ou yurodivy (também escrito iurodivyi), é um personagem bem conhecido, embora controverso, na espiritualidade ortodoxa russa. Em seu livro Holy Fools in Byzantium and Beyond, o historiador Sergey A. Ivanov escreve que na tradição ortodoxa o termo designa “uma pessoa que finge insanidade, finge ser tola ou que provoca choque ou indignação por sua deliberada indisciplina.” Em outras palavras, o tolo sagrado é uma pessoa que despreza as convenções sociais para demonstrar fidelidade a Deus. Os tolos sagrados vivem a vida secular comum, mas a abordam com valores completamente diferentes. Rejeitando a respeitabilidade e abraçando a humildade e o amor, os tolos sagrados estão tão profundamente fora de sintonia com o mundo mais amplo que parecem ridículos ou mesmo loucos e muitas vezes convidam ao ridículo. E, no entanto, eles ensinam o resto de nós como viver.

Jason Sudeikis em cena como Ted, técnico do time do Richmond, dando entrevista coletiva. Foto: Colin Hutton / Apple TV+

Lasso, um treinador de futebol americano contratado para treinar futebol - um esporte que ele conhece pouco - para o clube de futebol inglês AFC Richmond é frequentemente ridicularizado pelo público e pela imprensa. Ted encara tudo com calma, irritando os torcedores com sua aparente falta de preocupação em vencer. No início da série, Ted diz a um repórter chamado Trent Crimm: “Para mim, o sucesso não tem a ver com vitórias e derrotas. Trata-se de ajudar esses jovens a serem as melhores versões deles mesmos dentro e fora do campo”. É um clichê, é claro, o tipo de coisa dita como uma frase de efeito no ambiente de esportes de colégio. Mas Ted parece realmente querer dizer isso. E os torcedores do time acham isso horrível, não comovente. Crimm chama Ted de “irresponsável”.

De uma perspectiva religiosa, a rejeição das armadilhas do sucesso, de tudo o que a cultura dominante valoriza mais profundamente, pode ser um ato profético - que, como mostra Lasso, raramente recebe aplausos. A chamada tolice dos tolos sagrados está ligada à sua percepção espiritual. Eles oferecem uma mudança de perspectiva. O que parece “normal” e “bem-sucedido” no mundo é revelado pelo tolo como vazio, vão e sem sentido. No entanto, o que parece tolo é o verdadeiro caminho do florescimento. Acima de tudo, um tolo sagrado é um ícone da humildade radical. E é aqui que Lasso incorpora mais claramente essa persona.

Lasso não é um homem perfeito e ele sabe disso. Quando seu interesse “não exatamente amoroso”, Sassy, o rejeita por considerá-lo uma “bagunça” (mess), ele abraça a ideia (ele se autodenomina, em um trocadilho deliciosamente terrível, “um work in prog-mess”) [de work in progress, trabalho em andamento, sendo assim o trocadilho indica um trabalho em andamento, porém bagunçado]. Ele não é dominado pela culpa, mal-humorado ou perfeccionista. Ele é apenas Ted. Ele luta contra ataques de pânico e normaliza nossa necessidade quase universal de terapia, tanto que o presidente Biden apresentou o elenco da série na Casa Branca no mês passado para promover a conscientização sobre saúde mental.

No episódio de abertura desta temporada, Lasso é publicamente insultado por seu ex-amigo e homem dos kits (gestor de equipamentos) que se tornou o malvado treinador “prodígio”, Nathan Shelley. Rebecca, um tanto vingativa, diz a Ted para retaliar, para “lutar”. No entanto, quando questionado pela imprensa, ele chama os comentários de Nathan de “hilários”, elogia-o como “inteligente” e deseja-lhe boa sorte. Ele então passa a fazer essencialmente um stand up com ele mesmo sendo o alvo da piada: “Pareço o Ned Flanders fazendo cosplay como Ned Flanders. Quando falo, parece que o Dr. Phil ainda não passou pela puberdade”. Ele faz piada sobre sua saúde mental: “Já tive mais episódios psicóticos do que Twin Peaks.” Ele encanta a imprensa, faz rir e, com uma humildade efervescente, transforma um momento de conflito em um momento de leveza e até de alegria. Isso também expõe a mesquinhez de Nathan. Na fraqueza de Ted está sua força, enquanto o apego à força de Nate revela uma fraqueza debilitante.

A grande humildade de Lasso, repetidas vezes, faz dele uma fonte de transformação e redenção. Ele desarma as pessoas. No arco da história principal da primeira temporada da série, Rebecca vai da tentativa de usar e humilhar Ted para destruir seu time (em busca de vingança contra seu ex-marido mulherengo, cujo único amor verdadeiro é o clube) para abraçá-lo como um amigo leal. Ele a conquistou com os “biscoitos com a chefe” diários, que, descobrimos, ele mesmo prepara secretamente, o tipo de consideração extravagante que esperamos dele.

Quando, em um clímax emocional da temporada, Rebecca revela seu plano secreto para Ted, confessando “Eu sabotei você em todas as chances que tive”, ela se desculpa às lágrimas e Ted imediatamente a perdoa e vê uma espécie de bondade mesmo em suas intrigas sombrias (“Este trabalho que você me deu mudou minha vida”, diz ele). Os tolos sagrados são marcados por esse tipo de graça opulenta, irracional e prodigiosa. Como Dostoievski delineou o personagem principal de O Idiota, o príncipe Míshkin, talvez o mais famoso tolo sagrado da literatura, ele escreveu: “Sua maneira de ver o mundo: ele perdoa tudo, vê razões para tudo, não aceita que qualquer pecado seja imperdoável”

Há uma espécie de mágica em ação na vida de Ted Lasso. Quando todos parecem ser levados pelas poderosas ondas da ambição, da vaidade, da fama, da desilusão e do desprezo, surpreende-nos quando alguém nada contra a corrente. A ativista social católica Dorothy Day termina seu livro de memórias The Long Loneliness com uma de minhas falas favoritas: “Todos nós conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor e que o amor vem com a comunidade”. Lasso carrega consigo uma dolorosa solidão. Seu casamento se dissolveu. Ele deseja estar mais perto de seu filho nos Estados Unidos (eu me vejo perguntando na terceira temporada, assim como Ted, por que ele ainda está na Inglaterra?). No entanto, sua fé incessante e infantil nas pessoas - sua tolice - permite que Ted esbanje amor pelas pessoas ao seu redor. E onde quer que ele vá - do vestiário a uma reunião dos Diamond Dogs, seu grupo improvisado de apoio masculino - a comunidade floresce. Em uma entrevista com Crimm no início da série, Ted olha o jornalista nos olhos e diz: “Gostei muito de passar esse tempo com você”. Crimm fica surpreso. Ele responde, confuso: “Você realmente quer dizer isso, não é?”

Ted Lasso, a série, é desigual. Há partes que amo (como o bromance de Jamie Tartt e Roy Kent) e partes que não gosto (momentos em que os escritores insistem, mesmo em nossa era pós-MeToo, em emparelhar romanticamente patrões e empregados com vastas disparidades de poder). Ainda assim, sou atraída pela série a cada semana por causa da alegria genuína, embora problemática, de Ted, sua tolice redentora e acolhimento incansável das pessoas.

Em uma época em que nossa cultura é marcada pela indignação, divisão e cinismo, Ted Lasso nos chama de volta à humildade. Ele nos pede para relaxar um pouco, para não nos levarmos muito a sério. Ao fazer isso, ele lembra a todos que encontra - incluindo quem assiste em casa - de nossa humanidade compartilhada. Somos todos, no final, não vencedores ou perdedores, sucessos ou fracassos, heróis ou vilões puros, mas pessoas que desejam ser conhecidas, amadas e felizes. Este é o dom de Ted Lasso. Ele nos mostra o que é possível quando desistimos de vencer - jogos de futebol, conquistas de poder, sucesso profissional, guerras culturais ou brigas online - e, por mais tolo que pareça, optamos por torcer pelas pessoas ao nosso redor.

Tish Harrison Warren (@Tish_H_Warren) é pastora da Igreja Anglicana na América do Norte e autora de Prayer in the Night: For They Who Work or Watch or Weep. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.