Três dias após o naufrágio do Titanic, em abril de 1912, cerca de 700 sobreviventes desembarcaram em Nova York vindos de outro navio, o Carpathia, que os resgatou do gelo do Oceano Atlântico.
Alguns se reuniram com seus entes queridos. Outros receberam atendimento médico ou simplesmente suspiraram de alívio por estar de volta em terra firme após um desastre que matou 1.500 pessoas. Mas nem todos saíram do Carpathia.
Seis dos sobreviventes, todos marinheiros chineses, tiveram que permanecer no navio, proibidos de entrar nos Estados Unidos por uma lei anti-imigração chamada Lei de Exclusão Chinesa. No dia seguinte, funcionários da imigração os escoltaram por Manhattan e colocaram todos a bordo de um navio cargueiro com destino a Cuba, no qual foram contratados para trabalhar. E, então, eles aparentemente desapareceram.
Embora o desastre do Titanic e as vidas de muitos de seus sobreviventes tenham sido exaustivamente documentadas, a história de seus passageiros chineses há muito tempo foi esquecida. The Six, um documentário que agora está sendo exibido em festivais internacionais de cinema após ser lançado na China, busca rastrear as vidas daqueles que sobreviveram: Lee Bing, Fang Lang, Chang Chip, Ah Lam, Chung Foo e Ling Hee.
“Eu pensei:‘ Não é possível que seis caras simplesmente tenham sumido e nunca se casaram, nunca tiveram filhos, nunca contaram a ninguém sobre essa história’”, disse Steven Schwankert, o principal pesquisador do filme, em uma entrevista em Pequim.
Sobreviver ao Titanic foi apenas um dos muitos obstáculos que os seis homens enfrentaram como imigrantes chineses no início do século 20, quando eram alvos de políticas discriminatórias em países como Reino Unido, Canadá e Estados Unidos. O impacto dessas políticas continua a ser sentido gerações depois, inclusive na onda de racismo anti-asiático e xenofobia desencadeada pela pandemia do coronavírus.
“Não é algo que começou com o último presidente dizendo coisas sobre nosso relacionamento com a China”, disse Schwankert, referindo-se às políticas e comentários do ex-presidente Donald Trump. “Essas são questões que abordamos há mais de 100 anos”.
A história dos marinheiros é pouco conhecida até na China, onde o filme Titanic, de James Cameron de 1997, foi um grande sucesso e uma réplica em tamanho real do navio está sendo construída em um parque temático. Quando um trailer de The Six foi postado em 2017 na rede social chinesa Weibo, teve milhões de visualizações e rapidamente chamou a atenção de distribuidores que ofereceram um lançamento em todo o país.
As correntes da história tiveram muita influência sobre a vida dos marinheiros chineses, incluindo sua presença no Titanic. Greves trabalhistas no Reino Unido os deixaram sem trabalho, então seu empregador os transferiu para uma rota norte-americana. O Titanic deveria levar oito marinheiros como passageiros de terceira classe de Southampton, Inglaterra, para seu novo navio em Nova York.
Quando o navio atingiu um iceberg no final de 14 de abril, os oito homens agiram rapidamente. Cinco conseguiram subir em botes salva-vidas, mas os outros três caíram na água abaixo de zero com centenas de outros quando o navio foi engolido pelo mar.
Acredita-se que dois desses três marinheiros, Lee Ling e Len Lam, morreram na água. O terceiro, Fang, agarrou-se a um pedaço de entulho e esperou até que um único bote salva-vidas voltasse para procurar sobreviventes, tornando-se um dos últimos a serem salvos.
O resgate de Fang foi a inspiração para o final do filme Titanic e até retratado em uma cena excluída. (Cameron, produtor executivo de The Six, é entrevistado no filme.) Mas, durante décadas após o naufrágio, os sobreviventes chineses foram retratados pelo construtor do navio e pela mídia de maneira negativa, o que pode ter sido um dos motivos de sua história permanecer desconhecida até mesmo para alguns de seus descendentes.
Quando o navio afundou, quatro dos homens chegaram a um bote salva-vidas lotado, que incluía J. Bruce Ismay, o proprietário do Titanic, que mais tarde foi criticado por não afundar com seu navio. Falando aos investigadores após o desastre, Ismay descreveu os homens chineses como clandestinos. A mídia também os acusou de se vestirem como mulheres para que seu resgate fosse priorizado.
Embora os cineastas planejassem relatar tudo, "descobrimos que não encontramos nenhuma evidência direta de que eles estivessem fazendo coisas de que foram acusados, e havia uma explicação muito melhor", disse Arthur Jones, o diretor do filme.
Como parte de sua investigação, os cineastas construíram uma réplica do bote salva-vidas em que os quatro marinheiros chineses se encontravam e encheram-na de pessoas para simular o que aconteceu. Eles concluíram que Ismay e outros em sua extremidade do barco simplesmente não podiam ver todos os outros que estavam nele.
Ao fazer The Six, uma equipe de pesquisadores na China e em todo o mundo procurou por pistas sobre os sobreviventes, que provavelmente eram da província de Guangdong ou de outro lugar no sul da China. Nos anos após o desastre do Titanic, alguns dos sobreviventes provavelmente acabaram voltando para o Reino Unido, onde os marinheiros eram escassos porque os homens que trabalhavam em navios mercantes haviam sido convocados durante a 1ª Guerra.
Após a 1ª Guerra e novamente após a 2ª Guerra, quando seu trabalho não era mais necessário, milhares de marinheiros chineses foram repatriados à força pelo governo britânico, às vezes deixando as famílias que haviam começado no Reino Unido sem nenhuma explicação para seu desaparecimento. Segundo os cineastas, é possível que tenha sido o que aconteceu com alguns dos sobreviventes chineses do naufrágio do Titanic.
Outros sobreviventes chineses seguiram para os Estados Unidos ou Canadá, apesar das leis contra a imigração de trabalhadores chineses que só seriam revogadas décadas depois.
Para contornar as leis, milhares de pessoas nascidas na China entraram com documentos falsos. Proteger suas novas identidades frequentemente exigia manter suas vidas passadas em segredo até mesmo de parceiros e filhos. “Ainda há pessoas para quem esta é uma história familiar muito íntima”, disse Schwankert. / TRADUÇÃO DE RODRIGO TURRER
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