Joaquim Maria Machado de Assis, filho e irônico cronista do Rio de Janeiro do século 19, desperta descrições entusiasmadas e totalmente inconsistentes em outros autores e críticos.
Para Susan Sontag, ele foi “o maior autor saído da América Latina”.
Para Stefan Zweig, Machado era a resposta brasileira a Dickens. Para Allen Ginsberg, ele era outro Kafka. Philip Roth o comparou a Beckett. No prefácio de “The Collected Stories of Machado de Assis", publicado no mês passado, o crítico Michael Wood evoca Henry James, Henry Fielding, Chekhov, Sterne, Nabokov e Calvino.
O que está acontecendo? Que tipo de autor pode ser o astro de tantas fantasias diferentes?
O variado e inclassificável Machado de Assis (1839-1908) nasceu pobre, neto mestiço de escravos libertos. Não recebeu ensino formal nem treinamento; como seu contemporâneo Mark Twain, ele começou como aprendiz numa gráfica. Graças a um rigoroso regime de estudo autônomo, estabeleceu-se como autor, publicando inicialmente romances que retratavam as damas da elite e a elas se destinavam.
Mas, em 1879, seu estilo mudou - ou melhor, começou. A doença prolongada (era epiléptico), e a quase perda de sua visão o fizeram mudar de foco. O doce romântico amadureceu e se tornou um mestre da ironia cujas intervenções autorais, saltos narrativos e humor influenciaram experimentalistas americanos como John Barth e Donald Barthelme.
Cinco romances produzidos no período - incluindo sua obra-prima, “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) - consolidaram sua reputação. Se este acervo de 76 contos não alcança esse nível, ainda assim revela a trajetória da carreira de Machado de Assis. Começando com as histórias de amor mais clássicas, a coletânea passa às obras posteriores, mais cerebrais e imprevisíveis. Um dos contos é narrado do ponto de vista de uma agulha. A sátira política começa a aparecer. Em outro conto, um ditador, calvo desde a juventude, decreta que todos os habitantes devem também raspar suas cabeças.
As histórias de Machado de Assis são vibrantes. Os desfechos são frequentemente obscuros e estranhos, e frequentemente truncados. Certas preocupações persistem: janelas encantadoras, jovens ingênuos, um gosto pela coincidência. Acima de tudo, paira a figura do bibliômano. “Essa é minha família", diz um personagem, apontando para a estante de livros. São personagens moldados pelas próprias leituras, às vezes até fisicamente (“a cabeça dele se projetava um pouco em decorrência desse antigo hábito”).
É curioso observar que, nas histórias de Machado de Assis, o Brasil seja pouco citado. São mencionados poucos marcos, pouco do clima. Como seus personagens, Machado de Assis era um ser da literatura; a tinta corria em suas veias. Embora nunca se afastasse muito da cidade natal, o autor lia muito, reivindicando toda a cultura, toda a Europa - e conferindo à sua obra uma atmosfera notadamente aberta e cosmopolita.
Embora nunca lide explicitamente com a escravidão, que terminou no Brasil somente em 1888, Machado de Assis escreve constantemente a respeito da libertação, que, para ele, começa com a liberdade de pensamento. As ideias e fixações elevam e distorcem essas histórias. Numa delas, um homem consumido pelo pássaro de estimação se torna um “canário puro“. Em outra, um pai que prepara o filho para ser doutor exige dele a superficialidade necessária: “Eu o proíbo de chegar a qualquer conclusão que ainda não tenha sido apresentada por outros. Evite qualquer coisa que tenha cheiro de reflexão, originalidade e coisa parecida”.
Para Machado de Assis, nossa identidade não é formada apenas pelas nossas circunstâncias, mas por aquilo que pensamos. Somos aquilo que contemplamos e, por isso, é necessário escolher com sabedoria. Esses contos são um ótimo ponto de partida.