Violência doméstica na América Latina motiva imigração para o norte


América Latina e Caribe abrigam 14 dos 25 países mais mortíferos do mundo para as mulheres

Por Azam Ahmed

JALAPA, GUATEMALA - Eles escalaram a encosta da colina formando fila única, tocando com as machadinhas as pedras da trilha escura. Gehovany Ramirez, 17 anos, levou o irmão e outro cúmplice até a casa da ex-namorada. Ele bateu na porta de madeira com a machadinha. 

A ex-namorada, Lubia Sasvin Pérez, o tinha deixado um mês antes, fugindo do seu temperamento violento e buscando refúgio na casa dos pais aqui em Jalapa, sudeste da Guatemala. Grávida de cinco meses, a jovem, então com 16 anos, temia perder o bebê para a fúria dele.

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Lubia e a mãe saíram da casa e imploraram a ele que fosse embora, disse ela. Irredutível, ele ergueu a machadinha e acertou a mãe dela na cabeça, matando-a. O pai da jovem chegou correndo. Lubia lembra de observar horrorizada enquanto os outros homens o atacaram, afundando seu rosto. Para os promotores, juízes e até advogados de defesa na Guatemala, o caso é um exemplo do flagelo nacional da violência doméstica, motivada pela ideia arraigada de propriedade das mulheres e do lugar delas nos relacionamentos.

Mas, em vez de receber as penas mais rigorosas que buscam deter os crimes do tipo na Guatemala, Ramirez recebeu uma sentença de apenas quatro anos de prisão. Passados mais de três anos, ele, agora com 21 anos, será libertado no primeiro semestre do ano que vem, ou antes. Pela lei da Guatemala, Ramirez terá o direito de visitar o filho depois de solto, de acordo com autoridades jurídicas do país.

A perspectiva do retorno dele deixou a família tão abalada que o pai de Lubia, que sobreviveu ao ataque em 2015, vendeu a casa deles e usou o dinheiro para pagar a um contrabandista para que os levassem aos Estados Unidos. Vivendo agora nos arredores de San Francisco, ele deposita suas esperanças no processo de obtenção de asilo para proteger sua família.

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Mas esse resultado parece mais distante do que nunca. O governo Trump atacou de frente os pedidos de asilo com base na violência doméstica ou em ameaças contra famílias como a de Lubia. “Como podemos considerar isso justiça?” disse ela antes da fuga do pai. “Tudo que eu fiz foi deixá-lo por me agredir, e ele tirou minha mãe de nós. Que tipo de sistema é esse, que protege mais a ele do que a mim?”

Em toda a América Latina, uma epidemia de assassinatos parece estar em curso. Mais de 100 mil pessoas são mortas na maioria dos anos, principalmente jovens, que se tornam vítimas das gangues e cartéis. A situação caótica obrigou milhões a buscarem refúgio nos EUA.

Mas a violência contra as mulheres, e a violência doméstica em especial, são fatores poderosos e frequentemente subestimados na crise de imigração, ainda que desempenhe um papel central na sua dinâmica. A América Latina e o Caribe abrigam 14 dos 25 países mais mortíferos do mundo para as mulheres.

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Para obter asilo nos EUA, os solicitantes devem mostrar motivos específicos para a perseguição sofrida em casa, como raça, religião, afiliação política ou pertencimento a um grupo social específico. No ano passado, o ex-procurador-geral Jeff Sessions questionou se as mulheres que fogem da violência doméstica podem ser consideradas pertencentes a um grupo social, revertendo uma prática comum nos tribunais de asilo. Em julho, o novo procurador-geral, William P. Barr, foi além, dificultando também o tratamento das famílias como grupo social.

Na Guatemala, o número de homicídios de mulheres é três vezes mais alto que a média global. Em Honduras, esse índice é um dos mais altos do mundo - quase 12 vezes a média global. A violência contra as mulheres na região é tanta que 18 países aprovaram leis para protegê-las, criando uma classe de homicídio chamada feminicídio, com penas mais rigorosas e mais atenção do policiamento para o problema.

Ainda que as gangues e cartéis desempenhem um papel na violência, a maioria das mulheres é morta por amantes, parentes, maridos ou cônjuges - homens enfurecidos pela independência delas ou enlouquecidos pelo ciúme. “Os homens acabam pensando que podem se livrar das mulheres como quiserem", disse Adriana Quiñones, representante das Nações Unidas na Guatemala.

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A grande maioria dos homicídios de mulheres na região termina sem solução. Na Guatemala, apenas cerca de 6% dos casos resultam em condenações, de acordo com os pesquisadores. E, nas raras condenações, como no caso da mãe de Lubia, eles nem sempre são processados com todo o rigor da lei.

No tribunal, o pai de Lubia, Romeo de Jesus Sasvin Dominguez, falou apenas uma vez. Para ele, aquilo não fazia sentido. Como a lei poderia proteger o homem que matou sua mulher e feriu sua filha? “Tínhamos uma vida juntos", disse ele ao juiz, quase às lágrimas. “E ele chegou e tirou tudo de nós.”

Lubia Sasvin Pérez, à esquerda, estava grávida quando o ex-namorado matou a mãe dela em 2015. Visita ao túmulo da mãe com duas de suas irmãs. Foto: Meridith Kohut para The New York Times
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‘É como o pão nosso de cada dia’

Isolada das cidades maiores da Guatemala, Jalapa é uma versão concentrada da desigualdade de gênero que alimenta a crise dos femicídios, dizem os especialistas. Das dúzias de queixas recebidas toda semana pelas autoridades de Jalapa, cerca de metade envolve episódios de violência contra as mulheres.

“É como o pão nosso de cada dia", disse Dora Elizabeth Monson, a promotora dedicada a questões da mulher em Jalapa. “As mulheres são agredidas dia e noite.” Para o juiz Eduardo Alfonso Campos Paz, o que mais chama a atenção é a dificuldade da maioria dos homens em compreender o que fizeram de errado.

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Ele disse que o problema é difícil de combater com leis e policiamento, pois envolve uma mentalidade ensinada logo cedo aos meninos e reforçada ao longo de suas vidas. “Somos criados para sermos servidos e, quando isso não acontece, tem início a violência", disse o juiz.

Em toda a Guatemala, o número de queixas de violência doméstica aumentou muito conforme mais mulheres denunciam os abusos de que são vítimas. Mas, hoje, os países com os mais altos índices de femicídio na região, como a Guatemala, também sofrem com os mais altos índices de homicídios em geral - e, com isso, a morte de mulheres recebe menos atenção, considerada assunto doméstico. 

A lei do feminicídio exige que cada região do país tenha um tribunal especializado para julgar os casos de violência contra a mulher. Mas, passados mais de dez anos, apenas 13 tribunais funcionam em 22 regiões. “O abuso costuma ocorrer em casa", disse Evelyn Espinoza, coordenadora do Observatório da Violência do grupo de pesquisa guatemalteca Diálogos. “E o estado não se envolve naquilo que ocorre no lar.”

Mulheres na rota dos contrabandistas rumo ao norte 

Certo dia, Sasvin Dominguez acordou com uma ideia na cabeça. Em um único dia, tudo foi resolvido. Ele decidiu vender a casa e usar o dinheiro para fugir para os EUA. Os US$ 6,5 mil eram suficientes para comprar passagens para ele e para a filha mais nova, na época com 12 anos. Ele esperava chegar até os dois filhos na Califórnia. Com sorte, encontraria trabalho, sustentaria as filhas no país de origem e conseguiria asilo para toda a família.

Uma semana depois, em outubro do ano passado, ele partiu com a filha. Um guia os ajudou na travessia para o México. Logo, os dois chegaram ao acostamento de uma estrada, onde um caminhão transportando um contêiner os esperava. Os dias se seguiram em um borrão. Viajaram em pelo menos cinco caminhões do tipo, até onde conseguem lembrar.

Em alguns dias, receberam meia maçã para comer. Em outros, nada. No início de novembro, chegaram à cidade de Reynosa, na fronteira americana do México. No dia seguinte, embarcaram em um bote e entraram nos EUA, onde se depararam com uma patrulha da fronteira e se entregaram às autoridades.

Sasvin Dominguez disse que a filha passou quatro dias no Texas, em uma instalação sem janelas. Quando foram soltos, em novembro, Sasvin Dominguez recebeu uma tornozeleira eletrônica e foi instruído a procurar as autoridades de imigração em San Francisco, onde poderia começar o longo processo de solicitação de asilo.

Ele e a filha vivem agora com um dos filhos no modesto apartamento da família dele. Mas Sasvin Dominguez continua preso na tristeza e no medo que deixou para trás na Guatemala. As outras filhas continuam presas lá, e não há dinheiro para a viagem delas. Ele diz que sua única esperança é o pedido de asilo. Dizem a ele que o processo pode durar anos, se tiver o resultado que ele deseja. Os tribunais têm diante de si uma grande pilha de casos acumulados. Ele não sabe nem mesmo a data da audiência inicial.

Deixadas sem nada

Sem poder sair da Guatemala, Lubia e as duas irmãs foram morar em um pequeno apartamento onde dividem uma cama de solteiro. Na parede, um retrato da mãe. Agora todas elas trabalham, fazendo tortillas na cidade. Mas voltam para casa logo depois do trabalho, para não serem vistas. Algum tempo atrás, Lubia encontrou na rua a mãe de Ramirez.

Às vezes elas visitam o túmulo da mãe, uma caixa de concreto verde cercada por cactos. “Fomos deixadas sem nada", disse Lubia. Ela ainda carrega o estigma pelo ocorrido. Os vizinhos (homens e mulheres) ainda a culpam pela morte da mãe. Agora com 20 anos, ela diz entender que as mulheres quase invariavelmente são culpadas pelos problemas de casa.

Ela se preocupa com o mundo no qual o filho será criado, com o que poderá ensiná-lo e em quê ele acabará acreditando. Um dia, terá de contar a ele a respeito do pai, diz ela. Quando esse dia chegar, Lubia espera estar nos EUA, livre da pobreza, da violência e dos limites que sufocam as mulheres na Guatemala. “Aqui na Guatemala", disse ela, “a justiça só existe no papel. Não na vida real". Meridith Kohut e Paulina Villegas contribuíram com a reportagem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

JALAPA, GUATEMALA - Eles escalaram a encosta da colina formando fila única, tocando com as machadinhas as pedras da trilha escura. Gehovany Ramirez, 17 anos, levou o irmão e outro cúmplice até a casa da ex-namorada. Ele bateu na porta de madeira com a machadinha. 

A ex-namorada, Lubia Sasvin Pérez, o tinha deixado um mês antes, fugindo do seu temperamento violento e buscando refúgio na casa dos pais aqui em Jalapa, sudeste da Guatemala. Grávida de cinco meses, a jovem, então com 16 anos, temia perder o bebê para a fúria dele.

Lubia e a mãe saíram da casa e imploraram a ele que fosse embora, disse ela. Irredutível, ele ergueu a machadinha e acertou a mãe dela na cabeça, matando-a. O pai da jovem chegou correndo. Lubia lembra de observar horrorizada enquanto os outros homens o atacaram, afundando seu rosto. Para os promotores, juízes e até advogados de defesa na Guatemala, o caso é um exemplo do flagelo nacional da violência doméstica, motivada pela ideia arraigada de propriedade das mulheres e do lugar delas nos relacionamentos.

Mas, em vez de receber as penas mais rigorosas que buscam deter os crimes do tipo na Guatemala, Ramirez recebeu uma sentença de apenas quatro anos de prisão. Passados mais de três anos, ele, agora com 21 anos, será libertado no primeiro semestre do ano que vem, ou antes. Pela lei da Guatemala, Ramirez terá o direito de visitar o filho depois de solto, de acordo com autoridades jurídicas do país.

A perspectiva do retorno dele deixou a família tão abalada que o pai de Lubia, que sobreviveu ao ataque em 2015, vendeu a casa deles e usou o dinheiro para pagar a um contrabandista para que os levassem aos Estados Unidos. Vivendo agora nos arredores de San Francisco, ele deposita suas esperanças no processo de obtenção de asilo para proteger sua família.

Mas esse resultado parece mais distante do que nunca. O governo Trump atacou de frente os pedidos de asilo com base na violência doméstica ou em ameaças contra famílias como a de Lubia. “Como podemos considerar isso justiça?” disse ela antes da fuga do pai. “Tudo que eu fiz foi deixá-lo por me agredir, e ele tirou minha mãe de nós. Que tipo de sistema é esse, que protege mais a ele do que a mim?”

Em toda a América Latina, uma epidemia de assassinatos parece estar em curso. Mais de 100 mil pessoas são mortas na maioria dos anos, principalmente jovens, que se tornam vítimas das gangues e cartéis. A situação caótica obrigou milhões a buscarem refúgio nos EUA.

Mas a violência contra as mulheres, e a violência doméstica em especial, são fatores poderosos e frequentemente subestimados na crise de imigração, ainda que desempenhe um papel central na sua dinâmica. A América Latina e o Caribe abrigam 14 dos 25 países mais mortíferos do mundo para as mulheres.

Para obter asilo nos EUA, os solicitantes devem mostrar motivos específicos para a perseguição sofrida em casa, como raça, religião, afiliação política ou pertencimento a um grupo social específico. No ano passado, o ex-procurador-geral Jeff Sessions questionou se as mulheres que fogem da violência doméstica podem ser consideradas pertencentes a um grupo social, revertendo uma prática comum nos tribunais de asilo. Em julho, o novo procurador-geral, William P. Barr, foi além, dificultando também o tratamento das famílias como grupo social.

Na Guatemala, o número de homicídios de mulheres é três vezes mais alto que a média global. Em Honduras, esse índice é um dos mais altos do mundo - quase 12 vezes a média global. A violência contra as mulheres na região é tanta que 18 países aprovaram leis para protegê-las, criando uma classe de homicídio chamada feminicídio, com penas mais rigorosas e mais atenção do policiamento para o problema.

Ainda que as gangues e cartéis desempenhem um papel na violência, a maioria das mulheres é morta por amantes, parentes, maridos ou cônjuges - homens enfurecidos pela independência delas ou enlouquecidos pelo ciúme. “Os homens acabam pensando que podem se livrar das mulheres como quiserem", disse Adriana Quiñones, representante das Nações Unidas na Guatemala.

A grande maioria dos homicídios de mulheres na região termina sem solução. Na Guatemala, apenas cerca de 6% dos casos resultam em condenações, de acordo com os pesquisadores. E, nas raras condenações, como no caso da mãe de Lubia, eles nem sempre são processados com todo o rigor da lei.

No tribunal, o pai de Lubia, Romeo de Jesus Sasvin Dominguez, falou apenas uma vez. Para ele, aquilo não fazia sentido. Como a lei poderia proteger o homem que matou sua mulher e feriu sua filha? “Tínhamos uma vida juntos", disse ele ao juiz, quase às lágrimas. “E ele chegou e tirou tudo de nós.”

Lubia Sasvin Pérez, à esquerda, estava grávida quando o ex-namorado matou a mãe dela em 2015. Visita ao túmulo da mãe com duas de suas irmãs. Foto: Meridith Kohut para The New York Times

‘É como o pão nosso de cada dia’

Isolada das cidades maiores da Guatemala, Jalapa é uma versão concentrada da desigualdade de gênero que alimenta a crise dos femicídios, dizem os especialistas. Das dúzias de queixas recebidas toda semana pelas autoridades de Jalapa, cerca de metade envolve episódios de violência contra as mulheres.

“É como o pão nosso de cada dia", disse Dora Elizabeth Monson, a promotora dedicada a questões da mulher em Jalapa. “As mulheres são agredidas dia e noite.” Para o juiz Eduardo Alfonso Campos Paz, o que mais chama a atenção é a dificuldade da maioria dos homens em compreender o que fizeram de errado.

Ele disse que o problema é difícil de combater com leis e policiamento, pois envolve uma mentalidade ensinada logo cedo aos meninos e reforçada ao longo de suas vidas. “Somos criados para sermos servidos e, quando isso não acontece, tem início a violência", disse o juiz.

Em toda a Guatemala, o número de queixas de violência doméstica aumentou muito conforme mais mulheres denunciam os abusos de que são vítimas. Mas, hoje, os países com os mais altos índices de femicídio na região, como a Guatemala, também sofrem com os mais altos índices de homicídios em geral - e, com isso, a morte de mulheres recebe menos atenção, considerada assunto doméstico. 

A lei do feminicídio exige que cada região do país tenha um tribunal especializado para julgar os casos de violência contra a mulher. Mas, passados mais de dez anos, apenas 13 tribunais funcionam em 22 regiões. “O abuso costuma ocorrer em casa", disse Evelyn Espinoza, coordenadora do Observatório da Violência do grupo de pesquisa guatemalteca Diálogos. “E o estado não se envolve naquilo que ocorre no lar.”

Mulheres na rota dos contrabandistas rumo ao norte 

Certo dia, Sasvin Dominguez acordou com uma ideia na cabeça. Em um único dia, tudo foi resolvido. Ele decidiu vender a casa e usar o dinheiro para fugir para os EUA. Os US$ 6,5 mil eram suficientes para comprar passagens para ele e para a filha mais nova, na época com 12 anos. Ele esperava chegar até os dois filhos na Califórnia. Com sorte, encontraria trabalho, sustentaria as filhas no país de origem e conseguiria asilo para toda a família.

Uma semana depois, em outubro do ano passado, ele partiu com a filha. Um guia os ajudou na travessia para o México. Logo, os dois chegaram ao acostamento de uma estrada, onde um caminhão transportando um contêiner os esperava. Os dias se seguiram em um borrão. Viajaram em pelo menos cinco caminhões do tipo, até onde conseguem lembrar.

Em alguns dias, receberam meia maçã para comer. Em outros, nada. No início de novembro, chegaram à cidade de Reynosa, na fronteira americana do México. No dia seguinte, embarcaram em um bote e entraram nos EUA, onde se depararam com uma patrulha da fronteira e se entregaram às autoridades.

Sasvin Dominguez disse que a filha passou quatro dias no Texas, em uma instalação sem janelas. Quando foram soltos, em novembro, Sasvin Dominguez recebeu uma tornozeleira eletrônica e foi instruído a procurar as autoridades de imigração em San Francisco, onde poderia começar o longo processo de solicitação de asilo.

Ele e a filha vivem agora com um dos filhos no modesto apartamento da família dele. Mas Sasvin Dominguez continua preso na tristeza e no medo que deixou para trás na Guatemala. As outras filhas continuam presas lá, e não há dinheiro para a viagem delas. Ele diz que sua única esperança é o pedido de asilo. Dizem a ele que o processo pode durar anos, se tiver o resultado que ele deseja. Os tribunais têm diante de si uma grande pilha de casos acumulados. Ele não sabe nem mesmo a data da audiência inicial.

Deixadas sem nada

Sem poder sair da Guatemala, Lubia e as duas irmãs foram morar em um pequeno apartamento onde dividem uma cama de solteiro. Na parede, um retrato da mãe. Agora todas elas trabalham, fazendo tortillas na cidade. Mas voltam para casa logo depois do trabalho, para não serem vistas. Algum tempo atrás, Lubia encontrou na rua a mãe de Ramirez.

Às vezes elas visitam o túmulo da mãe, uma caixa de concreto verde cercada por cactos. “Fomos deixadas sem nada", disse Lubia. Ela ainda carrega o estigma pelo ocorrido. Os vizinhos (homens e mulheres) ainda a culpam pela morte da mãe. Agora com 20 anos, ela diz entender que as mulheres quase invariavelmente são culpadas pelos problemas de casa.

Ela se preocupa com o mundo no qual o filho será criado, com o que poderá ensiná-lo e em quê ele acabará acreditando. Um dia, terá de contar a ele a respeito do pai, diz ela. Quando esse dia chegar, Lubia espera estar nos EUA, livre da pobreza, da violência e dos limites que sufocam as mulheres na Guatemala. “Aqui na Guatemala", disse ela, “a justiça só existe no papel. Não na vida real". Meridith Kohut e Paulina Villegas contribuíram com a reportagem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

JALAPA, GUATEMALA - Eles escalaram a encosta da colina formando fila única, tocando com as machadinhas as pedras da trilha escura. Gehovany Ramirez, 17 anos, levou o irmão e outro cúmplice até a casa da ex-namorada. Ele bateu na porta de madeira com a machadinha. 

A ex-namorada, Lubia Sasvin Pérez, o tinha deixado um mês antes, fugindo do seu temperamento violento e buscando refúgio na casa dos pais aqui em Jalapa, sudeste da Guatemala. Grávida de cinco meses, a jovem, então com 16 anos, temia perder o bebê para a fúria dele.

Lubia e a mãe saíram da casa e imploraram a ele que fosse embora, disse ela. Irredutível, ele ergueu a machadinha e acertou a mãe dela na cabeça, matando-a. O pai da jovem chegou correndo. Lubia lembra de observar horrorizada enquanto os outros homens o atacaram, afundando seu rosto. Para os promotores, juízes e até advogados de defesa na Guatemala, o caso é um exemplo do flagelo nacional da violência doméstica, motivada pela ideia arraigada de propriedade das mulheres e do lugar delas nos relacionamentos.

Mas, em vez de receber as penas mais rigorosas que buscam deter os crimes do tipo na Guatemala, Ramirez recebeu uma sentença de apenas quatro anos de prisão. Passados mais de três anos, ele, agora com 21 anos, será libertado no primeiro semestre do ano que vem, ou antes. Pela lei da Guatemala, Ramirez terá o direito de visitar o filho depois de solto, de acordo com autoridades jurídicas do país.

A perspectiva do retorno dele deixou a família tão abalada que o pai de Lubia, que sobreviveu ao ataque em 2015, vendeu a casa deles e usou o dinheiro para pagar a um contrabandista para que os levassem aos Estados Unidos. Vivendo agora nos arredores de San Francisco, ele deposita suas esperanças no processo de obtenção de asilo para proteger sua família.

Mas esse resultado parece mais distante do que nunca. O governo Trump atacou de frente os pedidos de asilo com base na violência doméstica ou em ameaças contra famílias como a de Lubia. “Como podemos considerar isso justiça?” disse ela antes da fuga do pai. “Tudo que eu fiz foi deixá-lo por me agredir, e ele tirou minha mãe de nós. Que tipo de sistema é esse, que protege mais a ele do que a mim?”

Em toda a América Latina, uma epidemia de assassinatos parece estar em curso. Mais de 100 mil pessoas são mortas na maioria dos anos, principalmente jovens, que se tornam vítimas das gangues e cartéis. A situação caótica obrigou milhões a buscarem refúgio nos EUA.

Mas a violência contra as mulheres, e a violência doméstica em especial, são fatores poderosos e frequentemente subestimados na crise de imigração, ainda que desempenhe um papel central na sua dinâmica. A América Latina e o Caribe abrigam 14 dos 25 países mais mortíferos do mundo para as mulheres.

Para obter asilo nos EUA, os solicitantes devem mostrar motivos específicos para a perseguição sofrida em casa, como raça, religião, afiliação política ou pertencimento a um grupo social específico. No ano passado, o ex-procurador-geral Jeff Sessions questionou se as mulheres que fogem da violência doméstica podem ser consideradas pertencentes a um grupo social, revertendo uma prática comum nos tribunais de asilo. Em julho, o novo procurador-geral, William P. Barr, foi além, dificultando também o tratamento das famílias como grupo social.

Na Guatemala, o número de homicídios de mulheres é três vezes mais alto que a média global. Em Honduras, esse índice é um dos mais altos do mundo - quase 12 vezes a média global. A violência contra as mulheres na região é tanta que 18 países aprovaram leis para protegê-las, criando uma classe de homicídio chamada feminicídio, com penas mais rigorosas e mais atenção do policiamento para o problema.

Ainda que as gangues e cartéis desempenhem um papel na violência, a maioria das mulheres é morta por amantes, parentes, maridos ou cônjuges - homens enfurecidos pela independência delas ou enlouquecidos pelo ciúme. “Os homens acabam pensando que podem se livrar das mulheres como quiserem", disse Adriana Quiñones, representante das Nações Unidas na Guatemala.

A grande maioria dos homicídios de mulheres na região termina sem solução. Na Guatemala, apenas cerca de 6% dos casos resultam em condenações, de acordo com os pesquisadores. E, nas raras condenações, como no caso da mãe de Lubia, eles nem sempre são processados com todo o rigor da lei.

No tribunal, o pai de Lubia, Romeo de Jesus Sasvin Dominguez, falou apenas uma vez. Para ele, aquilo não fazia sentido. Como a lei poderia proteger o homem que matou sua mulher e feriu sua filha? “Tínhamos uma vida juntos", disse ele ao juiz, quase às lágrimas. “E ele chegou e tirou tudo de nós.”

Lubia Sasvin Pérez, à esquerda, estava grávida quando o ex-namorado matou a mãe dela em 2015. Visita ao túmulo da mãe com duas de suas irmãs. Foto: Meridith Kohut para The New York Times

‘É como o pão nosso de cada dia’

Isolada das cidades maiores da Guatemala, Jalapa é uma versão concentrada da desigualdade de gênero que alimenta a crise dos femicídios, dizem os especialistas. Das dúzias de queixas recebidas toda semana pelas autoridades de Jalapa, cerca de metade envolve episódios de violência contra as mulheres.

“É como o pão nosso de cada dia", disse Dora Elizabeth Monson, a promotora dedicada a questões da mulher em Jalapa. “As mulheres são agredidas dia e noite.” Para o juiz Eduardo Alfonso Campos Paz, o que mais chama a atenção é a dificuldade da maioria dos homens em compreender o que fizeram de errado.

Ele disse que o problema é difícil de combater com leis e policiamento, pois envolve uma mentalidade ensinada logo cedo aos meninos e reforçada ao longo de suas vidas. “Somos criados para sermos servidos e, quando isso não acontece, tem início a violência", disse o juiz.

Em toda a Guatemala, o número de queixas de violência doméstica aumentou muito conforme mais mulheres denunciam os abusos de que são vítimas. Mas, hoje, os países com os mais altos índices de femicídio na região, como a Guatemala, também sofrem com os mais altos índices de homicídios em geral - e, com isso, a morte de mulheres recebe menos atenção, considerada assunto doméstico. 

A lei do feminicídio exige que cada região do país tenha um tribunal especializado para julgar os casos de violência contra a mulher. Mas, passados mais de dez anos, apenas 13 tribunais funcionam em 22 regiões. “O abuso costuma ocorrer em casa", disse Evelyn Espinoza, coordenadora do Observatório da Violência do grupo de pesquisa guatemalteca Diálogos. “E o estado não se envolve naquilo que ocorre no lar.”

Mulheres na rota dos contrabandistas rumo ao norte 

Certo dia, Sasvin Dominguez acordou com uma ideia na cabeça. Em um único dia, tudo foi resolvido. Ele decidiu vender a casa e usar o dinheiro para fugir para os EUA. Os US$ 6,5 mil eram suficientes para comprar passagens para ele e para a filha mais nova, na época com 12 anos. Ele esperava chegar até os dois filhos na Califórnia. Com sorte, encontraria trabalho, sustentaria as filhas no país de origem e conseguiria asilo para toda a família.

Uma semana depois, em outubro do ano passado, ele partiu com a filha. Um guia os ajudou na travessia para o México. Logo, os dois chegaram ao acostamento de uma estrada, onde um caminhão transportando um contêiner os esperava. Os dias se seguiram em um borrão. Viajaram em pelo menos cinco caminhões do tipo, até onde conseguem lembrar.

Em alguns dias, receberam meia maçã para comer. Em outros, nada. No início de novembro, chegaram à cidade de Reynosa, na fronteira americana do México. No dia seguinte, embarcaram em um bote e entraram nos EUA, onde se depararam com uma patrulha da fronteira e se entregaram às autoridades.

Sasvin Dominguez disse que a filha passou quatro dias no Texas, em uma instalação sem janelas. Quando foram soltos, em novembro, Sasvin Dominguez recebeu uma tornozeleira eletrônica e foi instruído a procurar as autoridades de imigração em San Francisco, onde poderia começar o longo processo de solicitação de asilo.

Ele e a filha vivem agora com um dos filhos no modesto apartamento da família dele. Mas Sasvin Dominguez continua preso na tristeza e no medo que deixou para trás na Guatemala. As outras filhas continuam presas lá, e não há dinheiro para a viagem delas. Ele diz que sua única esperança é o pedido de asilo. Dizem a ele que o processo pode durar anos, se tiver o resultado que ele deseja. Os tribunais têm diante de si uma grande pilha de casos acumulados. Ele não sabe nem mesmo a data da audiência inicial.

Deixadas sem nada

Sem poder sair da Guatemala, Lubia e as duas irmãs foram morar em um pequeno apartamento onde dividem uma cama de solteiro. Na parede, um retrato da mãe. Agora todas elas trabalham, fazendo tortillas na cidade. Mas voltam para casa logo depois do trabalho, para não serem vistas. Algum tempo atrás, Lubia encontrou na rua a mãe de Ramirez.

Às vezes elas visitam o túmulo da mãe, uma caixa de concreto verde cercada por cactos. “Fomos deixadas sem nada", disse Lubia. Ela ainda carrega o estigma pelo ocorrido. Os vizinhos (homens e mulheres) ainda a culpam pela morte da mãe. Agora com 20 anos, ela diz entender que as mulheres quase invariavelmente são culpadas pelos problemas de casa.

Ela se preocupa com o mundo no qual o filho será criado, com o que poderá ensiná-lo e em quê ele acabará acreditando. Um dia, terá de contar a ele a respeito do pai, diz ela. Quando esse dia chegar, Lubia espera estar nos EUA, livre da pobreza, da violência e dos limites que sufocam as mulheres na Guatemala. “Aqui na Guatemala", disse ela, “a justiça só existe no papel. Não na vida real". Meridith Kohut e Paulina Villegas contribuíram com a reportagem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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