Como representar vozes (e sotaques) dos não-brancos na TV e no cinema?


Hollywood nem sempre fez boas escolhas na hora de pôr na tela a maneira como as pessoas falam. Isso pode estar mudando

Por Reid Singer

Tré Cotten teve sua grande chance na indústria cinematográfica este ano com Uma Noite em Miami, o primeiro longa dirigido por Regina King. Cotten é especialista em treinamento de voz e fala. Ele se descreve como um “nerd da pesquisa” que procura gravações de áudio e outros materiais para identificar os hábitos que fazem da linguagem de uma personagem algo único.

Cotten tinha todas as credenciais para ajudar o ator Eli Goree, que interpreta Cassius Clay no filme, a reproduzir os ritmos e tons da fala do boxeador de Louisville, Kentucky. No entanto, muitos membros da equipe ficaram surpresos ao ver um homem negro fazendo esse tipo de trabalho – ainda mais num filme que narra um encontro imaginário entre Malcolm X, Jim Brown, Sam Cooke e o homem que se tornaria Muhammad Ali, e que foi escrito e dirigido e estrelado por negros.

Tre Cotten, um treinador de sotaque, em Vancouver, Canadá. Foto: Alana Paterson/The New York Times
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Nos últimos cinco meses, os principais estúdios de cinema e televisão sinalizaram novos esforços para retratar os não- brancos de maneira mais cuidadosa e autêntica. Não é possível verificar a sinceridade desses esforços, mas a mudança no papel dos instrutores de dialeto – e na maneira como eles vêm trabalhando – talvez seja um jeito de julgar seu sucesso. Acontece que Cotten, de 32 anos, só soube do trabalho por meio de Liz McLaughlin, uma instrutora de sotaque branca.

“Foi ótimo a Liz me indicar”, disse ele. “Fui abençoado por ouvir a respeito dessa oportunidade. Mas muitas vezes me pergunto se eu ouviria sobre esses empregos de outro jeito”. O que complica as coisas, disse Cotten, é que sua arte é, por definição, imperceptível. Como regra geral, o público só nota o trabalho de sotaque quando os resultados soam estranhos ou falsos.

Os instrutores não têm corporação nem sindicato, e a maior parte de seus trabalhos vêm de recomendações boca a boca ou de círculos profissionais mediados por colegas brancos. Isso pode dificultar a contratação de instrutores não brancos. Erin Washington, presidente do Comitê de Equidade, Diversidade e Inclusão da Associação de Instrutores de Voz e Fala, estimou que mais de 95% dos empregos vão para instrutores brancos, independentemente da etnia do personagem.

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Como disciplina em si, a instrução de sotaque e dialeto é bastante nova. Até por volta da década de 1970, as questões dos sotaques eram deixadas inteiramente a cargo de produtores, roteiristas e diretores, quase todos brancos. Ainda acontece de roteiristas brancos bem-intencionados e supostamente comprometidos com o naturalismo buscarem material nas conversas de amigos ou vizinhos. Outros se baseiam em representações igualmente problemáticas em outros filmes ou programas de TV, gerando um ciclo de retroalimentação vicioso.

“Esses retratos linguísticos errôneos acabaram codificando estereótipos”, disse Cynthia Santos DeCure, instrutora de dialeto, atriz bilíngue e professora de atuação na Yale Drama School. “Os erros foram se repetindo continuamente. Por muito tempo, o público e os escritores os aceitaram como evangelho”.

Muitos instrutores apontaram os descuidos que poderiam ter sido evitados se os estúdios ou salas de audição fossem mais diversificados. Menos personagens latinos enrolariam seus erres. Poucos personagens russos apertariam seu palato e menos personagens irlandeses estenderiam suas vogais.

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Criada em Porto Rico, DeCure é a primeira pessoa negra a ser certificada pelo Knight Thompson Speechwork, um programa que tem uma atitude progressista em relação à etnia e à pronúncia. Sua formação inicial, no entanto, foi no método de Edith Skinner, professora cuja abordagem foi criticada por suprimir os padrões de fala dos imigrantes.

Skinner morreu em 1981, e seu mentor, o foneticista William Tilly, tinha muitos seguidores na década de 1920 entre professores de escolas públicas de Nova York e instrutores de voz que queriam eliminar os “sinais de inferioridade social” detectados no inglês falado pelos recém-chegados. Quando Skinner orientava os alunos em fonética básica, ela prescrevia uma série de treinos e exercícios rígidos que tendiam a eliminar as marcas de classe ou nacionalidade, em busca de um ideal teatral, neutro e confiante que ela chamava de Boa Fala Americana.

Seu livro, Speak With Distinction [algo como “Fale com distinção”], ainda é usado em programas de pós-graduação em teatro de todo o país. DeCure, 54 anos, disse que, embora seja normal que atores norte-americanos brancos no papel de personagens ingleses ou australianos exijam treinamento de sotaque em seus contratos, essa vantagem continua rara para atores não brancos, que têm maior probabilidade de serem escalados por seus traços físicos.

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Atores dominicanos que interpretam chilenos – ou atores jamaicanos que interpretam quenianos – quase sempre precisam se virar sozinhos. “Nós comemoramos quando atores brancos acertam um sotaque”, disse ela. “Comemoramos! Até que possamos oferecer os mesmos detalhes e atenção a todas as identidades linguísticas e a uma miríade de sotaques, ainda estaremos apagando a humanidade dessas histórias e personagens”.

Claudia de Vasco, que mora em Los Angeles, passou quase duas décadas se sentindo periodicamente frustrada pela falta de oportunidades para instrutores de sotaque latino como ela. Ao longo de sua carreira, ela muitas vezes encontrou produtores que duvidavam de sua experiência com a “verdadeira” fala americana, apesar de ela ter nascido nos Estados Unidos. E, embora ela raramente fosse consultada para diálogos não latinos, o inverso era extremamente comum.

“Até agora, a maioria das famílias latinas na TV ainda é treinada por instrutores brancos”, disse de Vasco. “É claro que um instrutor precisa ser capaz de ensinar tudo o que sabe. Mas, se realmente estamos tentando enfrentar o racismo nesta indústria, então é justo dizer que o profissional que prepara não brancos desempenha um grande papel na maneira como essas pessoas são representadas”. De Vasco, 37 anos, disse esperar que as condições de trabalho dos instrutores não brancos acompanhem os tempos.

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O mercado já está exigindo. A produtora executiva Lang Fisher destacou que os sotaques fracos podem afastar uma audiência cada vez mais diversificada e sofisticada numa época em que os serviços de streaming deixaram a programação mais acessível a pessoas do mundo todo. A série da Netflix Eu nunca..., que Fisher criou com Mindy Kaling, centra-se numa filha adolescente de imigrantes do sul da Ásia e tem uma base de fãs considerável na Índia.

“Estamos passando para um público muito maior e mais internacional e queremos criar pessoas totalmente verdadeiras”, disse Fisher. “Não queremos caricaturas. Por isso, é importante não ter atores que só fingem ter sotaque”. Batán Silva, produtor e diretor mexicano, acredita que essa mudança é particularmente relevante para os telespectadores de língua espanhola. Os relatórios da indústria reconhecem que os latinos, apesar de serem grosseiramente sub-representados na tela, são muito fãs de cinema e logo identificam quando um sotaque soa estranho ou pouco convincente.

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Quando trabalhava como coprodutor e diretor de segunda unidade de Narcos, outra série da Netflix, Silva fez questão de evitar as abordagens convencionais ao diálogo não-inglês que tinha visto em outras séries americanas. “Não há nada pior do que um personagem mexicano que soa como argentino ou espanhol”, disse ele.

“Ou atores que dizem sete frases em espanhol e depois, milagrosamente, passam para o inglês. Isso era, supostamente, uma questão de marketing, mas agora os estúdios estão começando a perceber que a diversidade é muito boa para os negócios”. Desde que terminou seu trabalho em Uma Noite em Miami, Cotten disse que o networking ficou um pouco mais fácil.

Além de sua tutoria com Goree, ele ajudou Leslie Odom Jr. a descobrir um jovem Sam Cooke escutando as diferenças de dicção entre os álbuns de estúdio de Cooke e Live at the Harlem Square Club, 1963. (“Era o Mr. Soul cantando na frente de uma plateia negra, então usamos isso como modelo”, disse Cotten). King nunca tinha trabalhado com instrutores de dialeto, mas disse que estava satisfeita com os resultados.

“Meu telefone anda ocupado”, disse Cotten recentemente, descrevendo o treinamento que ele fez pelo Zoom. “E isso é bom, mas quero ter certeza de que não sou o único. Uma das coisas mais reprimidas dos negros deste país tem sido nossa voz. Agora estamos vendo se podemos encontrar nossa voz, neste momento, neste momento específico, para contar especificamente essa história – essa coisa linda – da maneira como deve ser contada”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Tré Cotten teve sua grande chance na indústria cinematográfica este ano com Uma Noite em Miami, o primeiro longa dirigido por Regina King. Cotten é especialista em treinamento de voz e fala. Ele se descreve como um “nerd da pesquisa” que procura gravações de áudio e outros materiais para identificar os hábitos que fazem da linguagem de uma personagem algo único.

Cotten tinha todas as credenciais para ajudar o ator Eli Goree, que interpreta Cassius Clay no filme, a reproduzir os ritmos e tons da fala do boxeador de Louisville, Kentucky. No entanto, muitos membros da equipe ficaram surpresos ao ver um homem negro fazendo esse tipo de trabalho – ainda mais num filme que narra um encontro imaginário entre Malcolm X, Jim Brown, Sam Cooke e o homem que se tornaria Muhammad Ali, e que foi escrito e dirigido e estrelado por negros.

Tre Cotten, um treinador de sotaque, em Vancouver, Canadá. Foto: Alana Paterson/The New York Times

Nos últimos cinco meses, os principais estúdios de cinema e televisão sinalizaram novos esforços para retratar os não- brancos de maneira mais cuidadosa e autêntica. Não é possível verificar a sinceridade desses esforços, mas a mudança no papel dos instrutores de dialeto – e na maneira como eles vêm trabalhando – talvez seja um jeito de julgar seu sucesso. Acontece que Cotten, de 32 anos, só soube do trabalho por meio de Liz McLaughlin, uma instrutora de sotaque branca.

“Foi ótimo a Liz me indicar”, disse ele. “Fui abençoado por ouvir a respeito dessa oportunidade. Mas muitas vezes me pergunto se eu ouviria sobre esses empregos de outro jeito”. O que complica as coisas, disse Cotten, é que sua arte é, por definição, imperceptível. Como regra geral, o público só nota o trabalho de sotaque quando os resultados soam estranhos ou falsos.

Os instrutores não têm corporação nem sindicato, e a maior parte de seus trabalhos vêm de recomendações boca a boca ou de círculos profissionais mediados por colegas brancos. Isso pode dificultar a contratação de instrutores não brancos. Erin Washington, presidente do Comitê de Equidade, Diversidade e Inclusão da Associação de Instrutores de Voz e Fala, estimou que mais de 95% dos empregos vão para instrutores brancos, independentemente da etnia do personagem.

Como disciplina em si, a instrução de sotaque e dialeto é bastante nova. Até por volta da década de 1970, as questões dos sotaques eram deixadas inteiramente a cargo de produtores, roteiristas e diretores, quase todos brancos. Ainda acontece de roteiristas brancos bem-intencionados e supostamente comprometidos com o naturalismo buscarem material nas conversas de amigos ou vizinhos. Outros se baseiam em representações igualmente problemáticas em outros filmes ou programas de TV, gerando um ciclo de retroalimentação vicioso.

“Esses retratos linguísticos errôneos acabaram codificando estereótipos”, disse Cynthia Santos DeCure, instrutora de dialeto, atriz bilíngue e professora de atuação na Yale Drama School. “Os erros foram se repetindo continuamente. Por muito tempo, o público e os escritores os aceitaram como evangelho”.

Muitos instrutores apontaram os descuidos que poderiam ter sido evitados se os estúdios ou salas de audição fossem mais diversificados. Menos personagens latinos enrolariam seus erres. Poucos personagens russos apertariam seu palato e menos personagens irlandeses estenderiam suas vogais.

Criada em Porto Rico, DeCure é a primeira pessoa negra a ser certificada pelo Knight Thompson Speechwork, um programa que tem uma atitude progressista em relação à etnia e à pronúncia. Sua formação inicial, no entanto, foi no método de Edith Skinner, professora cuja abordagem foi criticada por suprimir os padrões de fala dos imigrantes.

Skinner morreu em 1981, e seu mentor, o foneticista William Tilly, tinha muitos seguidores na década de 1920 entre professores de escolas públicas de Nova York e instrutores de voz que queriam eliminar os “sinais de inferioridade social” detectados no inglês falado pelos recém-chegados. Quando Skinner orientava os alunos em fonética básica, ela prescrevia uma série de treinos e exercícios rígidos que tendiam a eliminar as marcas de classe ou nacionalidade, em busca de um ideal teatral, neutro e confiante que ela chamava de Boa Fala Americana.

Seu livro, Speak With Distinction [algo como “Fale com distinção”], ainda é usado em programas de pós-graduação em teatro de todo o país. DeCure, 54 anos, disse que, embora seja normal que atores norte-americanos brancos no papel de personagens ingleses ou australianos exijam treinamento de sotaque em seus contratos, essa vantagem continua rara para atores não brancos, que têm maior probabilidade de serem escalados por seus traços físicos.

Atores dominicanos que interpretam chilenos – ou atores jamaicanos que interpretam quenianos – quase sempre precisam se virar sozinhos. “Nós comemoramos quando atores brancos acertam um sotaque”, disse ela. “Comemoramos! Até que possamos oferecer os mesmos detalhes e atenção a todas as identidades linguísticas e a uma miríade de sotaques, ainda estaremos apagando a humanidade dessas histórias e personagens”.

Claudia de Vasco, que mora em Los Angeles, passou quase duas décadas se sentindo periodicamente frustrada pela falta de oportunidades para instrutores de sotaque latino como ela. Ao longo de sua carreira, ela muitas vezes encontrou produtores que duvidavam de sua experiência com a “verdadeira” fala americana, apesar de ela ter nascido nos Estados Unidos. E, embora ela raramente fosse consultada para diálogos não latinos, o inverso era extremamente comum.

“Até agora, a maioria das famílias latinas na TV ainda é treinada por instrutores brancos”, disse de Vasco. “É claro que um instrutor precisa ser capaz de ensinar tudo o que sabe. Mas, se realmente estamos tentando enfrentar o racismo nesta indústria, então é justo dizer que o profissional que prepara não brancos desempenha um grande papel na maneira como essas pessoas são representadas”. De Vasco, 37 anos, disse esperar que as condições de trabalho dos instrutores não brancos acompanhem os tempos.

O mercado já está exigindo. A produtora executiva Lang Fisher destacou que os sotaques fracos podem afastar uma audiência cada vez mais diversificada e sofisticada numa época em que os serviços de streaming deixaram a programação mais acessível a pessoas do mundo todo. A série da Netflix Eu nunca..., que Fisher criou com Mindy Kaling, centra-se numa filha adolescente de imigrantes do sul da Ásia e tem uma base de fãs considerável na Índia.

“Estamos passando para um público muito maior e mais internacional e queremos criar pessoas totalmente verdadeiras”, disse Fisher. “Não queremos caricaturas. Por isso, é importante não ter atores que só fingem ter sotaque”. Batán Silva, produtor e diretor mexicano, acredita que essa mudança é particularmente relevante para os telespectadores de língua espanhola. Os relatórios da indústria reconhecem que os latinos, apesar de serem grosseiramente sub-representados na tela, são muito fãs de cinema e logo identificam quando um sotaque soa estranho ou pouco convincente.

Quando trabalhava como coprodutor e diretor de segunda unidade de Narcos, outra série da Netflix, Silva fez questão de evitar as abordagens convencionais ao diálogo não-inglês que tinha visto em outras séries americanas. “Não há nada pior do que um personagem mexicano que soa como argentino ou espanhol”, disse ele.

“Ou atores que dizem sete frases em espanhol e depois, milagrosamente, passam para o inglês. Isso era, supostamente, uma questão de marketing, mas agora os estúdios estão começando a perceber que a diversidade é muito boa para os negócios”. Desde que terminou seu trabalho em Uma Noite em Miami, Cotten disse que o networking ficou um pouco mais fácil.

Além de sua tutoria com Goree, ele ajudou Leslie Odom Jr. a descobrir um jovem Sam Cooke escutando as diferenças de dicção entre os álbuns de estúdio de Cooke e Live at the Harlem Square Club, 1963. (“Era o Mr. Soul cantando na frente de uma plateia negra, então usamos isso como modelo”, disse Cotten). King nunca tinha trabalhado com instrutores de dialeto, mas disse que estava satisfeita com os resultados.

“Meu telefone anda ocupado”, disse Cotten recentemente, descrevendo o treinamento que ele fez pelo Zoom. “E isso é bom, mas quero ter certeza de que não sou o único. Uma das coisas mais reprimidas dos negros deste país tem sido nossa voz. Agora estamos vendo se podemos encontrar nossa voz, neste momento, neste momento específico, para contar especificamente essa história – essa coisa linda – da maneira como deve ser contada”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Tré Cotten teve sua grande chance na indústria cinematográfica este ano com Uma Noite em Miami, o primeiro longa dirigido por Regina King. Cotten é especialista em treinamento de voz e fala. Ele se descreve como um “nerd da pesquisa” que procura gravações de áudio e outros materiais para identificar os hábitos que fazem da linguagem de uma personagem algo único.

Cotten tinha todas as credenciais para ajudar o ator Eli Goree, que interpreta Cassius Clay no filme, a reproduzir os ritmos e tons da fala do boxeador de Louisville, Kentucky. No entanto, muitos membros da equipe ficaram surpresos ao ver um homem negro fazendo esse tipo de trabalho – ainda mais num filme que narra um encontro imaginário entre Malcolm X, Jim Brown, Sam Cooke e o homem que se tornaria Muhammad Ali, e que foi escrito e dirigido e estrelado por negros.

Tre Cotten, um treinador de sotaque, em Vancouver, Canadá. Foto: Alana Paterson/The New York Times

Nos últimos cinco meses, os principais estúdios de cinema e televisão sinalizaram novos esforços para retratar os não- brancos de maneira mais cuidadosa e autêntica. Não é possível verificar a sinceridade desses esforços, mas a mudança no papel dos instrutores de dialeto – e na maneira como eles vêm trabalhando – talvez seja um jeito de julgar seu sucesso. Acontece que Cotten, de 32 anos, só soube do trabalho por meio de Liz McLaughlin, uma instrutora de sotaque branca.

“Foi ótimo a Liz me indicar”, disse ele. “Fui abençoado por ouvir a respeito dessa oportunidade. Mas muitas vezes me pergunto se eu ouviria sobre esses empregos de outro jeito”. O que complica as coisas, disse Cotten, é que sua arte é, por definição, imperceptível. Como regra geral, o público só nota o trabalho de sotaque quando os resultados soam estranhos ou falsos.

Os instrutores não têm corporação nem sindicato, e a maior parte de seus trabalhos vêm de recomendações boca a boca ou de círculos profissionais mediados por colegas brancos. Isso pode dificultar a contratação de instrutores não brancos. Erin Washington, presidente do Comitê de Equidade, Diversidade e Inclusão da Associação de Instrutores de Voz e Fala, estimou que mais de 95% dos empregos vão para instrutores brancos, independentemente da etnia do personagem.

Como disciplina em si, a instrução de sotaque e dialeto é bastante nova. Até por volta da década de 1970, as questões dos sotaques eram deixadas inteiramente a cargo de produtores, roteiristas e diretores, quase todos brancos. Ainda acontece de roteiristas brancos bem-intencionados e supostamente comprometidos com o naturalismo buscarem material nas conversas de amigos ou vizinhos. Outros se baseiam em representações igualmente problemáticas em outros filmes ou programas de TV, gerando um ciclo de retroalimentação vicioso.

“Esses retratos linguísticos errôneos acabaram codificando estereótipos”, disse Cynthia Santos DeCure, instrutora de dialeto, atriz bilíngue e professora de atuação na Yale Drama School. “Os erros foram se repetindo continuamente. Por muito tempo, o público e os escritores os aceitaram como evangelho”.

Muitos instrutores apontaram os descuidos que poderiam ter sido evitados se os estúdios ou salas de audição fossem mais diversificados. Menos personagens latinos enrolariam seus erres. Poucos personagens russos apertariam seu palato e menos personagens irlandeses estenderiam suas vogais.

Criada em Porto Rico, DeCure é a primeira pessoa negra a ser certificada pelo Knight Thompson Speechwork, um programa que tem uma atitude progressista em relação à etnia e à pronúncia. Sua formação inicial, no entanto, foi no método de Edith Skinner, professora cuja abordagem foi criticada por suprimir os padrões de fala dos imigrantes.

Skinner morreu em 1981, e seu mentor, o foneticista William Tilly, tinha muitos seguidores na década de 1920 entre professores de escolas públicas de Nova York e instrutores de voz que queriam eliminar os “sinais de inferioridade social” detectados no inglês falado pelos recém-chegados. Quando Skinner orientava os alunos em fonética básica, ela prescrevia uma série de treinos e exercícios rígidos que tendiam a eliminar as marcas de classe ou nacionalidade, em busca de um ideal teatral, neutro e confiante que ela chamava de Boa Fala Americana.

Seu livro, Speak With Distinction [algo como “Fale com distinção”], ainda é usado em programas de pós-graduação em teatro de todo o país. DeCure, 54 anos, disse que, embora seja normal que atores norte-americanos brancos no papel de personagens ingleses ou australianos exijam treinamento de sotaque em seus contratos, essa vantagem continua rara para atores não brancos, que têm maior probabilidade de serem escalados por seus traços físicos.

Atores dominicanos que interpretam chilenos – ou atores jamaicanos que interpretam quenianos – quase sempre precisam se virar sozinhos. “Nós comemoramos quando atores brancos acertam um sotaque”, disse ela. “Comemoramos! Até que possamos oferecer os mesmos detalhes e atenção a todas as identidades linguísticas e a uma miríade de sotaques, ainda estaremos apagando a humanidade dessas histórias e personagens”.

Claudia de Vasco, que mora em Los Angeles, passou quase duas décadas se sentindo periodicamente frustrada pela falta de oportunidades para instrutores de sotaque latino como ela. Ao longo de sua carreira, ela muitas vezes encontrou produtores que duvidavam de sua experiência com a “verdadeira” fala americana, apesar de ela ter nascido nos Estados Unidos. E, embora ela raramente fosse consultada para diálogos não latinos, o inverso era extremamente comum.

“Até agora, a maioria das famílias latinas na TV ainda é treinada por instrutores brancos”, disse de Vasco. “É claro que um instrutor precisa ser capaz de ensinar tudo o que sabe. Mas, se realmente estamos tentando enfrentar o racismo nesta indústria, então é justo dizer que o profissional que prepara não brancos desempenha um grande papel na maneira como essas pessoas são representadas”. De Vasco, 37 anos, disse esperar que as condições de trabalho dos instrutores não brancos acompanhem os tempos.

O mercado já está exigindo. A produtora executiva Lang Fisher destacou que os sotaques fracos podem afastar uma audiência cada vez mais diversificada e sofisticada numa época em que os serviços de streaming deixaram a programação mais acessível a pessoas do mundo todo. A série da Netflix Eu nunca..., que Fisher criou com Mindy Kaling, centra-se numa filha adolescente de imigrantes do sul da Ásia e tem uma base de fãs considerável na Índia.

“Estamos passando para um público muito maior e mais internacional e queremos criar pessoas totalmente verdadeiras”, disse Fisher. “Não queremos caricaturas. Por isso, é importante não ter atores que só fingem ter sotaque”. Batán Silva, produtor e diretor mexicano, acredita que essa mudança é particularmente relevante para os telespectadores de língua espanhola. Os relatórios da indústria reconhecem que os latinos, apesar de serem grosseiramente sub-representados na tela, são muito fãs de cinema e logo identificam quando um sotaque soa estranho ou pouco convincente.

Quando trabalhava como coprodutor e diretor de segunda unidade de Narcos, outra série da Netflix, Silva fez questão de evitar as abordagens convencionais ao diálogo não-inglês que tinha visto em outras séries americanas. “Não há nada pior do que um personagem mexicano que soa como argentino ou espanhol”, disse ele.

“Ou atores que dizem sete frases em espanhol e depois, milagrosamente, passam para o inglês. Isso era, supostamente, uma questão de marketing, mas agora os estúdios estão começando a perceber que a diversidade é muito boa para os negócios”. Desde que terminou seu trabalho em Uma Noite em Miami, Cotten disse que o networking ficou um pouco mais fácil.

Além de sua tutoria com Goree, ele ajudou Leslie Odom Jr. a descobrir um jovem Sam Cooke escutando as diferenças de dicção entre os álbuns de estúdio de Cooke e Live at the Harlem Square Club, 1963. (“Era o Mr. Soul cantando na frente de uma plateia negra, então usamos isso como modelo”, disse Cotten). King nunca tinha trabalhado com instrutores de dialeto, mas disse que estava satisfeita com os resultados.

“Meu telefone anda ocupado”, disse Cotten recentemente, descrevendo o treinamento que ele fez pelo Zoom. “E isso é bom, mas quero ter certeza de que não sou o único. Uma das coisas mais reprimidas dos negros deste país tem sido nossa voz. Agora estamos vendo se podemos encontrar nossa voz, neste momento, neste momento específico, para contar especificamente essa história – essa coisa linda – da maneira como deve ser contada”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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