Ler a mente de outras pessoas é um antigo desejo da humanidade que se manifesta há décadas em ficções. Por exemplo, na comédia romântica Do Que as Mulheres Gostam (2000), dirigido por Nancy Meyers, o personagem Nick Marshall, interpretado por Mel Gibson, é um publicitário machista que passa a ler os pensamentos das mulheres depois de um acidente. Ao conhecer melhor a intimidade das mulheres, o publicitário muda o seu estilo de vida.
Pesquisas buscam conectar o cérebro a computadores para que pensamentos sejam decodificados, permitindo que pessoas com deficiências físicas superem suas limitações e controlem objetos mentalmente. Tais estudos existem há mais de meio século. Com os avanços da neurociência, da engenharia e da computação, a ciência deu passos significativos, nos últimos anos, rumo à realização desse desejo. Avanços da inteligência artificial permitiram que modelos mais avançados de aprendizado de máquina trouxessem progressos significativos na correlação de sinais capturados por sensores com pensamentos ou desejos de ações. Atualmente, já é possível encontrar comercialmente uma touca com sensores indutivos magnéticos que permite controlar jogos de computador e até objetos utilizando pensamentos.
Mais recentemente, empresas como a Neuralink e a Synchron passaram a utilizar uma abordagem mais invasiva através de um implante de terminais em fendas sinápticas para trazer sinais a um dispositivo que pode ser conectado a um telefone celular ou computador através de bluetooth. Com isso, se idealiza a criação da brainnet, por meio da qual todos poderemos estar conectados diretamente à internet para comandar objetos e até mesmo receber atualizações de informações no futuro. No entanto, por se tratar de um procedimento invasivo, o teste em humanos possui exigências consideráveis e precisa passar por um período trial regulamentado e aprovado pelo FDA, órgão dos EUA equivalente à Anvisa, responsável por regulamentar e fiscalizar questões de saúde e alimentos. Enquanto a Synchron iniciou o primeiro teste em humano em 2022, a Neuralink espera iniciar tais testes ainda nesse mesmo ano.
Em 29 de setembro de 2022, um time composto por neurocientista e cientista da computação da Universidade do Texas, em Austin, publicou os resultados de um estudo científico que permite decodificar pensamentos à distância, ou seja, sem utilizar métodos invasivos ou sensores colocados na cabeça de uma pessoa. A técnica utiliza imagens gravadas por ressonância magnética para gerar sequências de palavras inteligíveis que recuperam o significado da fala percebida, fala imaginada e até vídeos silenciosos.
Tal avanço é sem dúvida espetacular do ponto de vista científico. Porém, o avanço traz um importante questionamento: estamos caminhando para o fim da privacidade de nossos pensamentos?
Mesmo nos períodos de maior controle e pouca tolerância à diversidade de opiniões da História, a privacidade dos pensamentos foi uma fonte de conforto emocional e equilíbrio para aqueles que pensavam de uma forma diferente. Com o avanço de tecnologias que permitirão decodificar os pensamentos das pessoas mesmo que à distância, talvez estejamos no caminho da queda do último bastião de nossa privacidade.
Os pesquisadores da Universidade do Texas responsáveis pela técnica de decodificação de pensamentos à distância, preocupados com questões de privacidade, testaram se a técnica permitiria uma decodificação bem-sucedida sem a cooperação do sujeito. Os resultados encontrados felizmente indicam que a cooperação do sujeito é necessária para que a decodificação seja bem sucedida.
No entanto, como a técnica pode ser aplicada em gravações cerebrais não invasivas, há caminhos possíveis utilizando inteligência artificial para o desenvolvimento de técnicas que façam a decodificação mesmo sem o consentimento do sujeito.
No filme de ficção A Origem (2010), escrito e dirigido por Christopher Nolan, o personagem Dom Cobb, interpretado por Leonardo DiCaprio, é um ladrão especializado em extrair informações do inconsciente dos seus alvos durante o sonho. Será que algum dia será possível decodificar nossos sonhos sem a nossa permissão enquanto estivermos dormindo? E se isso ocorrer, quais serão as consequências? Correremos o risco de sermos processados por sonharmos com alguém sem a permissão prévia pelo uso de sua imagem? Será que tal tecnologia nos ajudará a conhecer melhor o próximo, aumentando nossa empatia e reduzindo os problemas de comunicação e desentendimentos? Sem dúvida, estamos caminhando para um futuro que exigirá a rediscussão e redefinição de todo o arcabouço de normas, regras e leis para que o equilíbrio social seja mantido.