‘A falta de acesso à internet cria castas’, diz Demi Getschko


Pioneiro da internet no País fala sobre expansão do acesso, lei das fake news e defende o uso da criptografia de fim a fim

Por Bruno Capelas
Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) desde 1995 e diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) Foto: Felipe Rau/Estadão

Um dos pioneiros da internet no Brasil, o engenheiro eletricista Demi Getschko acompanhou as transformações da rede nas últimas três décadas – da época das redes acadêmicas até o cenário atual, em que três quartos dos brasileiros acessam a rede, como revelado pela pesquisa TIC Domicílios, divulgada nesta semana. 

Mais que isso, Demi ajudou a escrever história da internet no País – desde 1995, ele é conselheiro por notório saber do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A entidade, que completa 25 anos neste domingo, tem um papel fundamental na digitalização do País, cuidando de aspectos como a infraestrutura da rede, os domínios ".br" e padrões de segurança. Mas, para o engenheiro, que também é colunista do Estadão, ainda há no que avançar: “eu gostaria que todos estivessem conectados à internet, até porque a falta de acesso à internet cria castas”. 

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Na entrevista concedida à reportagem nesta semana, ele fala sobre o acesso à rede e a educação digital, conta como é seu hábito de uso da internet e discute temas em pauta no momento – como a aceleração da digitalização por conta da pandemia, a lei das Fake News em debate no Congresso e o uso de criptografia em apps como o WhatsApp, pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal na última semana. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Hoje, um quarto dos brasileiros ainda não têm acesso à internet. Como aumentar o acesso à rede e fazer os novos usuários entenderem como ela funciona? 

Este não é um número ruim, considerando que só metade dos brasileiros estava conectado há alguns anos. Estamos avançando bem. A internet é um ímã muito forte para as pessoas, todo mundo que puder entrar, vai entrar. E o Brasil, com o tamanho que tem, não é um país trivial de se conectar. Eu gostaria que todos estivessem conectados à internet. E não acredito que se deve parar o esforço de conectar mais pessoas, só porque há malfeitores ou riscos na rede. Seria uma tutela que não faz parte do meu esquema de pensamento. O que é preciso é impedir que se faça o mal às pessoas, indo atrás dos malfeitores e trabalhando na educação das pessoas para que elas sejam cientes dos riscos que a internet tem. A educação dos novos usuários na internet é um dilema mundial, mas o esforço de acesso é prioritário, porque a falta de acesso à internet cria castas. A gente precisa trabalhar para que estas castas não existam – e é melhor que as pessoas ralem o joelho do que elas não possam andar. 

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Como é o teu hábito de uso da internet? 

Eu sou do time que fica bastante grudado no computador. Estou neste momento usando um computador de mesa. Prefiro-o ao celular. A pesquisa TIC Domicílios mostrou um crescimento no uso do celular, tem uma porcentagem grande de brasileiros que só usa a rede pelo celular. Eu gosto dos celulares, mas acredito que seu uso é pouco profundo. É como ler a manchete e não o texto. Tende a ser um uso mais imediatista e superficial, acredito que há certos dispositivos que dão mais introspecção e mais espaço para se digerir algo com calma. Mas acredito que há mudanças de comportamento vindo aí – e espero que quem usa o celular possa ter profundidade também. 

O CGI está completando 25 anos neste domingo. Como o sr. explica a importância dele na vida das pessoas? 

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A contribuição do CGI é maiúscula na legislação da internet que a gente tem hoje no Brasil. O que o CGI faz é proteger a internet e auxiliar o País a ter uma legislação invejada lá fora, com o Marco Civil da Internet e agora, com a Lei Geral de Proteção de Dados. Antes do Marco Civil, as leis que zanzavam no Congresso eram restritivas. O Marco Civil é propositivo, ele veio estabelecer as regras do jogo – afinal, antes de apitar uma falta, é preciso saber o que é uma falta. E acredito que temos uma regulação sólida. É preciso tomar cuidado com novas leis. Mas é preciso deixar claro que o Comitê não tem o papel de regulador. 

Qual é a principal mudança que o sr. vê entre 1995 e agora, na internet? 

Inicialmente, a internet era uma rede de acadêmicos. E a gente acreditava, no final dos anos 1980, que aquilo ficaria restrito à área acadêmica, uma rede aberta, neutra, sem discriminação e descentralizada. Já em 1994 ou 1995 ficou claro para nós que a rede ia mudar de figura, que mais gente ia entrar nela. Mas essa descentralização não é tão clara, hoje, e surgiram a figura dos jardins murados ao redor da rede. É algo que as redes sociais montaram, por exemplo: são plataformas organizadas, estruturadas, e que ficam “dentro de um muro”. O usuário até confunde essas estruturas com a própria internet, mas não, a internet é a estrutura sob a qual podem ser construídos esses domínios. É algo bem diferente da rede, na qual cada um teria seu site. Não havia intermediadores grandes, poderosos. Até porque a internet apareceu para desintermediar as relações, fazerem todas as pontas conversarem. O que aconteceu foi que os intermediários antigos foram trocados por novos. Acredito que a luta, agora, como diz o Tim Berners-Lee, é ter um esquema um pouco mais descentralizado. 

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Corre no Congresso atualmente uma lei para regular as fake news.Como o sr. vê a atual regulação em torno da internet no País? Falta algo? 

Eu acredito nos princípios originais da internet. E acredito numa internet mundial. Não existe a internet do Brasil, mas sim a internet no Brasil. Não há uma rede num único país. E acredito que a regulação na internet deve ser tomada com extremo cuidado. A questão das notícias falsas é ainda mais complexa: é algo que é filosoficamente difícil de se definir. Quem gera notícias deliberadamente enganosas precisa ser punido, mas não é preciso criar uma nova lei para isso. Acreditar em mecanismos que autocontrolem esse aspecto, como inteligência artificial, também é um problema. Especialmente porque é algo que talvez possa só ser feito por grandes, mas não por pequenos, o que geraria um problema de concorrência. Creio que tudo tem que ser visto com um grão de sal. Além disso, querer dar a alguns atores da rede, que têm muito poder, a decisão de decidir o que é bom ou não para os usuários parece algo extremamente perigoso. Desconfio quando uma empresa diz que é favorável à regulação e até a propõe. É assustador, afinal, ele está legislando para ele próprio. O que é preciso haver são medidas para que se impeçam os malfeitos na rede – e ela nos dá ferramentas para isso. Quantos pedófilos não foram presos com ajuda da internet? Eles não viraram pedófilos por causa da internet, mas a internet permitiu rastreá-los. 

O sr. tem escrito bastante sobre a importância da criptografia de fim a fim. É um tema que está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal, no julgamento sobre os bloqueios ao WhatsApp. Por que a criptografia importa tanto? 

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A criptografia é uma forma de preservar a privacidade dos indivíduos. É bastante sofisticada e ela faz parte do direito do cidadão de se comunicar da forma que achar melhor, sem precisar abrir isso para ninguém. Quem está interessado em saber o que houve numa conversa que se esforce em descobrir. Agora, criar uma “porta”, um segredo, para facilitar a investigação não é razoável. Existe o direito à investigação, mas ninguém deixa a chave de casa debaixo do tapete para que a polícia entre quando precise. Até porque esta é uma solução que não ficaria restrita à mão dos homens de bem. 

Tem sido dito que o isolamento está ajudando a acelerar a digitalização. Como o sr. vê esse processo? 

O isolamento nos obrigou a usar a internet de uma forma absurdamente inusitada em todos os setores. Quem já usava para trabalho remoto não teve grandes sobressaltos, mas muita gente que não estava exposta a isso, agora está. Temos consultas médicas e aulas para crianças pela internet. Isso expõe a solidez e a importância da internet como ferramenta, mas também evidencia problemas: quem mora num lugar que não têm acesso à rede ficou sem apoio – uma criança que não tem conexão, por exemplo, não tem como acompanhar suas aulas agora. É preciso cuidar disso. 

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Há especialistas que acreditam que, no futuro, surgirá uma segunda internet, “mais fechada”, impulsionada pela China. Como o sr. vê isso? 

Não sou um especialista em política internacional ou economia, mas a China é um pesado usuário da internet. Ela não está pensando em restringir nem um pouco o uso da internet – afinal, ela vende para todos os lados do mundo pela rede. Mas existem dois aspectos: uma é a briga política; outra é a pragmática. Politicamente, ela gostaria de controlar o que acontece nas fronteiras dela. Pragmaticamente, a China joga o jogo do mundo. Como usuário da internet, prefiro o modelo de uma rede ampla, geral e sem barreiras. Mas sei que o mundo é mais complexo do que isso. Balcanizar a internet seria um retrocesso. 

Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) desde 1995 e diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) Foto: Felipe Rau/Estadão

Um dos pioneiros da internet no Brasil, o engenheiro eletricista Demi Getschko acompanhou as transformações da rede nas últimas três décadas – da época das redes acadêmicas até o cenário atual, em que três quartos dos brasileiros acessam a rede, como revelado pela pesquisa TIC Domicílios, divulgada nesta semana. 

Mais que isso, Demi ajudou a escrever história da internet no País – desde 1995, ele é conselheiro por notório saber do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A entidade, que completa 25 anos neste domingo, tem um papel fundamental na digitalização do País, cuidando de aspectos como a infraestrutura da rede, os domínios ".br" e padrões de segurança. Mas, para o engenheiro, que também é colunista do Estadão, ainda há no que avançar: “eu gostaria que todos estivessem conectados à internet, até porque a falta de acesso à internet cria castas”. 

Na entrevista concedida à reportagem nesta semana, ele fala sobre o acesso à rede e a educação digital, conta como é seu hábito de uso da internet e discute temas em pauta no momento – como a aceleração da digitalização por conta da pandemia, a lei das Fake News em debate no Congresso e o uso de criptografia em apps como o WhatsApp, pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal na última semana. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Hoje, um quarto dos brasileiros ainda não têm acesso à internet. Como aumentar o acesso à rede e fazer os novos usuários entenderem como ela funciona? 

Este não é um número ruim, considerando que só metade dos brasileiros estava conectado há alguns anos. Estamos avançando bem. A internet é um ímã muito forte para as pessoas, todo mundo que puder entrar, vai entrar. E o Brasil, com o tamanho que tem, não é um país trivial de se conectar. Eu gostaria que todos estivessem conectados à internet. E não acredito que se deve parar o esforço de conectar mais pessoas, só porque há malfeitores ou riscos na rede. Seria uma tutela que não faz parte do meu esquema de pensamento. O que é preciso é impedir que se faça o mal às pessoas, indo atrás dos malfeitores e trabalhando na educação das pessoas para que elas sejam cientes dos riscos que a internet tem. A educação dos novos usuários na internet é um dilema mundial, mas o esforço de acesso é prioritário, porque a falta de acesso à internet cria castas. A gente precisa trabalhar para que estas castas não existam – e é melhor que as pessoas ralem o joelho do que elas não possam andar. 

Como é o teu hábito de uso da internet? 

Eu sou do time que fica bastante grudado no computador. Estou neste momento usando um computador de mesa. Prefiro-o ao celular. A pesquisa TIC Domicílios mostrou um crescimento no uso do celular, tem uma porcentagem grande de brasileiros que só usa a rede pelo celular. Eu gosto dos celulares, mas acredito que seu uso é pouco profundo. É como ler a manchete e não o texto. Tende a ser um uso mais imediatista e superficial, acredito que há certos dispositivos que dão mais introspecção e mais espaço para se digerir algo com calma. Mas acredito que há mudanças de comportamento vindo aí – e espero que quem usa o celular possa ter profundidade também. 

O CGI está completando 25 anos neste domingo. Como o sr. explica a importância dele na vida das pessoas? 

A contribuição do CGI é maiúscula na legislação da internet que a gente tem hoje no Brasil. O que o CGI faz é proteger a internet e auxiliar o País a ter uma legislação invejada lá fora, com o Marco Civil da Internet e agora, com a Lei Geral de Proteção de Dados. Antes do Marco Civil, as leis que zanzavam no Congresso eram restritivas. O Marco Civil é propositivo, ele veio estabelecer as regras do jogo – afinal, antes de apitar uma falta, é preciso saber o que é uma falta. E acredito que temos uma regulação sólida. É preciso tomar cuidado com novas leis. Mas é preciso deixar claro que o Comitê não tem o papel de regulador. 

Qual é a principal mudança que o sr. vê entre 1995 e agora, na internet? 

Inicialmente, a internet era uma rede de acadêmicos. E a gente acreditava, no final dos anos 1980, que aquilo ficaria restrito à área acadêmica, uma rede aberta, neutra, sem discriminação e descentralizada. Já em 1994 ou 1995 ficou claro para nós que a rede ia mudar de figura, que mais gente ia entrar nela. Mas essa descentralização não é tão clara, hoje, e surgiram a figura dos jardins murados ao redor da rede. É algo que as redes sociais montaram, por exemplo: são plataformas organizadas, estruturadas, e que ficam “dentro de um muro”. O usuário até confunde essas estruturas com a própria internet, mas não, a internet é a estrutura sob a qual podem ser construídos esses domínios. É algo bem diferente da rede, na qual cada um teria seu site. Não havia intermediadores grandes, poderosos. Até porque a internet apareceu para desintermediar as relações, fazerem todas as pontas conversarem. O que aconteceu foi que os intermediários antigos foram trocados por novos. Acredito que a luta, agora, como diz o Tim Berners-Lee, é ter um esquema um pouco mais descentralizado. 

Corre no Congresso atualmente uma lei para regular as fake news.Como o sr. vê a atual regulação em torno da internet no País? Falta algo? 

Eu acredito nos princípios originais da internet. E acredito numa internet mundial. Não existe a internet do Brasil, mas sim a internet no Brasil. Não há uma rede num único país. E acredito que a regulação na internet deve ser tomada com extremo cuidado. A questão das notícias falsas é ainda mais complexa: é algo que é filosoficamente difícil de se definir. Quem gera notícias deliberadamente enganosas precisa ser punido, mas não é preciso criar uma nova lei para isso. Acreditar em mecanismos que autocontrolem esse aspecto, como inteligência artificial, também é um problema. Especialmente porque é algo que talvez possa só ser feito por grandes, mas não por pequenos, o que geraria um problema de concorrência. Creio que tudo tem que ser visto com um grão de sal. Além disso, querer dar a alguns atores da rede, que têm muito poder, a decisão de decidir o que é bom ou não para os usuários parece algo extremamente perigoso. Desconfio quando uma empresa diz que é favorável à regulação e até a propõe. É assustador, afinal, ele está legislando para ele próprio. O que é preciso haver são medidas para que se impeçam os malfeitos na rede – e ela nos dá ferramentas para isso. Quantos pedófilos não foram presos com ajuda da internet? Eles não viraram pedófilos por causa da internet, mas a internet permitiu rastreá-los. 

O sr. tem escrito bastante sobre a importância da criptografia de fim a fim. É um tema que está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal, no julgamento sobre os bloqueios ao WhatsApp. Por que a criptografia importa tanto? 

A criptografia é uma forma de preservar a privacidade dos indivíduos. É bastante sofisticada e ela faz parte do direito do cidadão de se comunicar da forma que achar melhor, sem precisar abrir isso para ninguém. Quem está interessado em saber o que houve numa conversa que se esforce em descobrir. Agora, criar uma “porta”, um segredo, para facilitar a investigação não é razoável. Existe o direito à investigação, mas ninguém deixa a chave de casa debaixo do tapete para que a polícia entre quando precise. Até porque esta é uma solução que não ficaria restrita à mão dos homens de bem. 

Tem sido dito que o isolamento está ajudando a acelerar a digitalização. Como o sr. vê esse processo? 

O isolamento nos obrigou a usar a internet de uma forma absurdamente inusitada em todos os setores. Quem já usava para trabalho remoto não teve grandes sobressaltos, mas muita gente que não estava exposta a isso, agora está. Temos consultas médicas e aulas para crianças pela internet. Isso expõe a solidez e a importância da internet como ferramenta, mas também evidencia problemas: quem mora num lugar que não têm acesso à rede ficou sem apoio – uma criança que não tem conexão, por exemplo, não tem como acompanhar suas aulas agora. É preciso cuidar disso. 

Há especialistas que acreditam que, no futuro, surgirá uma segunda internet, “mais fechada”, impulsionada pela China. Como o sr. vê isso? 

Não sou um especialista em política internacional ou economia, mas a China é um pesado usuário da internet. Ela não está pensando em restringir nem um pouco o uso da internet – afinal, ela vende para todos os lados do mundo pela rede. Mas existem dois aspectos: uma é a briga política; outra é a pragmática. Politicamente, ela gostaria de controlar o que acontece nas fronteiras dela. Pragmaticamente, a China joga o jogo do mundo. Como usuário da internet, prefiro o modelo de uma rede ampla, geral e sem barreiras. Mas sei que o mundo é mais complexo do que isso. Balcanizar a internet seria um retrocesso. 

Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) desde 1995 e diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) Foto: Felipe Rau/Estadão

Um dos pioneiros da internet no Brasil, o engenheiro eletricista Demi Getschko acompanhou as transformações da rede nas últimas três décadas – da época das redes acadêmicas até o cenário atual, em que três quartos dos brasileiros acessam a rede, como revelado pela pesquisa TIC Domicílios, divulgada nesta semana. 

Mais que isso, Demi ajudou a escrever história da internet no País – desde 1995, ele é conselheiro por notório saber do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A entidade, que completa 25 anos neste domingo, tem um papel fundamental na digitalização do País, cuidando de aspectos como a infraestrutura da rede, os domínios ".br" e padrões de segurança. Mas, para o engenheiro, que também é colunista do Estadão, ainda há no que avançar: “eu gostaria que todos estivessem conectados à internet, até porque a falta de acesso à internet cria castas”. 

Na entrevista concedida à reportagem nesta semana, ele fala sobre o acesso à rede e a educação digital, conta como é seu hábito de uso da internet e discute temas em pauta no momento – como a aceleração da digitalização por conta da pandemia, a lei das Fake News em debate no Congresso e o uso de criptografia em apps como o WhatsApp, pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal na última semana. A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Hoje, um quarto dos brasileiros ainda não têm acesso à internet. Como aumentar o acesso à rede e fazer os novos usuários entenderem como ela funciona? 

Este não é um número ruim, considerando que só metade dos brasileiros estava conectado há alguns anos. Estamos avançando bem. A internet é um ímã muito forte para as pessoas, todo mundo que puder entrar, vai entrar. E o Brasil, com o tamanho que tem, não é um país trivial de se conectar. Eu gostaria que todos estivessem conectados à internet. E não acredito que se deve parar o esforço de conectar mais pessoas, só porque há malfeitores ou riscos na rede. Seria uma tutela que não faz parte do meu esquema de pensamento. O que é preciso é impedir que se faça o mal às pessoas, indo atrás dos malfeitores e trabalhando na educação das pessoas para que elas sejam cientes dos riscos que a internet tem. A educação dos novos usuários na internet é um dilema mundial, mas o esforço de acesso é prioritário, porque a falta de acesso à internet cria castas. A gente precisa trabalhar para que estas castas não existam – e é melhor que as pessoas ralem o joelho do que elas não possam andar. 

Como é o teu hábito de uso da internet? 

Eu sou do time que fica bastante grudado no computador. Estou neste momento usando um computador de mesa. Prefiro-o ao celular. A pesquisa TIC Domicílios mostrou um crescimento no uso do celular, tem uma porcentagem grande de brasileiros que só usa a rede pelo celular. Eu gosto dos celulares, mas acredito que seu uso é pouco profundo. É como ler a manchete e não o texto. Tende a ser um uso mais imediatista e superficial, acredito que há certos dispositivos que dão mais introspecção e mais espaço para se digerir algo com calma. Mas acredito que há mudanças de comportamento vindo aí – e espero que quem usa o celular possa ter profundidade também. 

O CGI está completando 25 anos neste domingo. Como o sr. explica a importância dele na vida das pessoas? 

A contribuição do CGI é maiúscula na legislação da internet que a gente tem hoje no Brasil. O que o CGI faz é proteger a internet e auxiliar o País a ter uma legislação invejada lá fora, com o Marco Civil da Internet e agora, com a Lei Geral de Proteção de Dados. Antes do Marco Civil, as leis que zanzavam no Congresso eram restritivas. O Marco Civil é propositivo, ele veio estabelecer as regras do jogo – afinal, antes de apitar uma falta, é preciso saber o que é uma falta. E acredito que temos uma regulação sólida. É preciso tomar cuidado com novas leis. Mas é preciso deixar claro que o Comitê não tem o papel de regulador. 

Qual é a principal mudança que o sr. vê entre 1995 e agora, na internet? 

Inicialmente, a internet era uma rede de acadêmicos. E a gente acreditava, no final dos anos 1980, que aquilo ficaria restrito à área acadêmica, uma rede aberta, neutra, sem discriminação e descentralizada. Já em 1994 ou 1995 ficou claro para nós que a rede ia mudar de figura, que mais gente ia entrar nela. Mas essa descentralização não é tão clara, hoje, e surgiram a figura dos jardins murados ao redor da rede. É algo que as redes sociais montaram, por exemplo: são plataformas organizadas, estruturadas, e que ficam “dentro de um muro”. O usuário até confunde essas estruturas com a própria internet, mas não, a internet é a estrutura sob a qual podem ser construídos esses domínios. É algo bem diferente da rede, na qual cada um teria seu site. Não havia intermediadores grandes, poderosos. Até porque a internet apareceu para desintermediar as relações, fazerem todas as pontas conversarem. O que aconteceu foi que os intermediários antigos foram trocados por novos. Acredito que a luta, agora, como diz o Tim Berners-Lee, é ter um esquema um pouco mais descentralizado. 

Corre no Congresso atualmente uma lei para regular as fake news.Como o sr. vê a atual regulação em torno da internet no País? Falta algo? 

Eu acredito nos princípios originais da internet. E acredito numa internet mundial. Não existe a internet do Brasil, mas sim a internet no Brasil. Não há uma rede num único país. E acredito que a regulação na internet deve ser tomada com extremo cuidado. A questão das notícias falsas é ainda mais complexa: é algo que é filosoficamente difícil de se definir. Quem gera notícias deliberadamente enganosas precisa ser punido, mas não é preciso criar uma nova lei para isso. Acreditar em mecanismos que autocontrolem esse aspecto, como inteligência artificial, também é um problema. Especialmente porque é algo que talvez possa só ser feito por grandes, mas não por pequenos, o que geraria um problema de concorrência. Creio que tudo tem que ser visto com um grão de sal. Além disso, querer dar a alguns atores da rede, que têm muito poder, a decisão de decidir o que é bom ou não para os usuários parece algo extremamente perigoso. Desconfio quando uma empresa diz que é favorável à regulação e até a propõe. É assustador, afinal, ele está legislando para ele próprio. O que é preciso haver são medidas para que se impeçam os malfeitos na rede – e ela nos dá ferramentas para isso. Quantos pedófilos não foram presos com ajuda da internet? Eles não viraram pedófilos por causa da internet, mas a internet permitiu rastreá-los. 

O sr. tem escrito bastante sobre a importância da criptografia de fim a fim. É um tema que está sendo debatido no Supremo Tribunal Federal, no julgamento sobre os bloqueios ao WhatsApp. Por que a criptografia importa tanto? 

A criptografia é uma forma de preservar a privacidade dos indivíduos. É bastante sofisticada e ela faz parte do direito do cidadão de se comunicar da forma que achar melhor, sem precisar abrir isso para ninguém. Quem está interessado em saber o que houve numa conversa que se esforce em descobrir. Agora, criar uma “porta”, um segredo, para facilitar a investigação não é razoável. Existe o direito à investigação, mas ninguém deixa a chave de casa debaixo do tapete para que a polícia entre quando precise. Até porque esta é uma solução que não ficaria restrita à mão dos homens de bem. 

Tem sido dito que o isolamento está ajudando a acelerar a digitalização. Como o sr. vê esse processo? 

O isolamento nos obrigou a usar a internet de uma forma absurdamente inusitada em todos os setores. Quem já usava para trabalho remoto não teve grandes sobressaltos, mas muita gente que não estava exposta a isso, agora está. Temos consultas médicas e aulas para crianças pela internet. Isso expõe a solidez e a importância da internet como ferramenta, mas também evidencia problemas: quem mora num lugar que não têm acesso à rede ficou sem apoio – uma criança que não tem conexão, por exemplo, não tem como acompanhar suas aulas agora. É preciso cuidar disso. 

Há especialistas que acreditam que, no futuro, surgirá uma segunda internet, “mais fechada”, impulsionada pela China. Como o sr. vê isso? 

Não sou um especialista em política internacional ou economia, mas a China é um pesado usuário da internet. Ela não está pensando em restringir nem um pouco o uso da internet – afinal, ela vende para todos os lados do mundo pela rede. Mas existem dois aspectos: uma é a briga política; outra é a pragmática. Politicamente, ela gostaria de controlar o que acontece nas fronteiras dela. Pragmaticamente, a China joga o jogo do mundo. Como usuário da internet, prefiro o modelo de uma rede ampla, geral e sem barreiras. Mas sei que o mundo é mais complexo do que isso. Balcanizar a internet seria um retrocesso. 

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