Para Meredith Whittaker, presidente do Signal, aplicativo de mensagens focado em privacidade, a forma como as empresas de tecnologia coletam dados pessoais para vender anúncios ainda não é bem entendida pela população. “As pessoas estão cansadas das mentiras e meias-verdades das empresas de tecnologia” diz ela ao Estadão. Mas não é só isso que desagrada ela.
Em meio ao debate sobre o PL das Fake News, a executiva, que veio ao País para participar do Web Summit Rio, evento que acontece de 1 a 4 de maio, diz ser veementemente contra iniciativas de governo que promovem algum tipo de vigilância nas conversas privadas da população. Para ela, a privacidade é um direito humano fundamental que precisa ser respeitado.
Outro alvo atual de Meredith é a inteligência artificial. Para ela, a tecnologia e a privacidade são opostos, uma vez que uma IA, como o ChatGPT, requer grandes volumes de dados para ser treinada antes de funcionar. O assunto começa a chamar a atenção de reguladores europeus e deve ganhar força nos próximos meses.
Criado em 2014 por Brian Acton, cofundador do WhatsApp, o Signal é uma espécie de arauto da privacidade. Seu protocolo de criptografia (codificação inquebrável de dados) é utilizado até pelo seu “irmão mais velho”, que hoje pertence a Mark Zuckerberg. Porém, o nível de proteção de informações oferecido pelo Signal é ainda superior, uma vez que mesmo informações como perfil e contatos dos usuários são codificadas para que nem a própria instituição tenha acesso. Leia a entrevista a seguir.
Qual é a importância do mercado brasileiro na estratégia de expansão do Signal?
Assim como em outros países, queremos que os brasileiros tenham acesso à comunicação com privacidade verdadeira. Não somos uma clássica empresa de tecnologia. Não tentamos conquistar novos usuários para exibir anúncios que foram vendidos para marcas. Somos uma instituição sem fins lucrativos e a nossa missão é garantir que haja formas robustas de comunicação digital com privacidade. Queremos que as pessoas no Brasil e no mundo conheçam o Signal e saibam sobre a importância da privacidade.
O Signal não tem formas de rentabilizar o aplicativo hoje. Isso pode mudar no futuro próximo?
Não somos motivados por metas como aumento de receita, aumento do crescimento da operação ou por dinheiro. Nós arrecadamos fundos. Então, pedimos aos nossos usuários que, se tiverem um dinheirinho, façam doações para nós. É assim que mantemos a operação do Signal. Nunca cobraremos pelo uso do Signal. Hoje, nosso modelo de negócio é baseado nas doações.
É fácil conseguir doações para o Signal?
Um dos desafios para conseguir doações é que as pessoas estão acostumadas com a tecnologia gratuita, que é como o modelo de negócio das grandes empresas de tecnologia funciona. Nós usamos o Gmail ou o Instagram e nem pensamos que não pagamos por eles. A forma de rentabilizar esses serviços é vender anúncios para empresas com base na coleta de um grande volume de informações pessoais. Ou então as empresas usam os dados para treinar modelos de inteligência artificial. O dinheiro vem da vigilância de uma forma que as pessoas ainda não entendem completamente até hoje. Para conseguirmos doações, as pessoas precisam entender como isso acontece, quais são os benefícios da privacidade e quais são os riscos da vigilância das companhias de tecnologia.
Como uma instituição sem fins lucrativos, como é para o Signal enfrentar a concorrência de aplicativos que investem bilhões de dólares com marketing?
Nossa vantagem é não ter acionistas nos pressionando para enfraquecer a privacidade dos nossos usuários para ter mais lucros. Como instituição sem fins lucrativos, podemos ser honestos, muito mais honestos do que grandes empresas de tecnologia. Não temos o mesmo dinheiro para investir em anúncios no Super Bowl ou em bons slogans, mas temos a vantagem da autenticidade em um mundo em que as pessoas estão cansadas de mentiras e meias-verdades das big techs. Contamos com a força da privacidade e a nossa vantagem de poder ser real em uma indústria na qual isso é muito raro.
O Signal aprendeu alguma lição com a trajetória dos aplicativos concorrentes WhatsApp e Telegram?
Telegram e WhatsApp são muito diferentes do Signal. Há muitos recursos de redes sociais nesses aplicativos, funções de transmissão em massa. Certamente, foi o WhatsApp que aprendeu com o Signal. A tecnologia que o WhatsApp usa para manter as mensagens privadas foi desenvolvida pelo Signal. É o nosso protocolo de criptografia que protege as mensagens no WhatsApp. Agora, o Telegram não é um aplicativo privado. A empresa diz muito que preza pela privacidade, mas eles não ativam a criptografia por padrão, nem oferecem criptografia de nenhuma forma robusta. O Telegram é muito diferente, é mais parecido com uma rede social. O Signal é, de longe, mais seguro e privado do que Telegram e WhatsApp.
Brian Acton, cofundador do WhatsApp, é chairman do conselho do Signal há alguns anos. O executivo ajudou a mostrar o que fazer e o que não fazer com o Signal?
O Brian trabalha e tem aprendido conosco, especialmente sobre o protocolo de criptografia. Por volta de 2015, o Brian trabalhou para integrar o nosso protocolo para a criptografia no WhatsApp. Depois de ter visto as entranhas da Meta, o modelo de negócio de vigilância, que é o motor do Facebook, é notável que o Brian tenha se dedicado ao Signal. Ele fez grandes contribuições para garantir que a troca de mensagens privadas possa sobreviver e vencer nesse mercado.
O Telegram foi bloqueado pela Justiça brasileira por não entregar dados solicitados de usuários. Quais dados o Signal armazena sobre os usuários do seu aplicativo?
O bloqueio do Telegram é algo que já aconteceu antes. Grande parte dos dados do aplicativo não estão criptografados, portanto, eles têm esses dados. Eles fazem propaganda de oferecer um serviço de mensagens privadas, mas eles não oferecem muita privacidade. Será interessante observar os desdobramentos desse episódio. Uma das razões de o Signal não coletar quase nenhum dado é que, se você coleta, você tem. Se você tem, ele pode ser hackeado, vazado. Ou você pode ser forçado a entregá-lo. Nós criptografamos as mensagens trocadas no nosso aplicativo e também criptografamos os metadados. Isso está além de qualquer outro aplicativo de mensagens. Protegemos as informações sobre o seu perfil, sua lista de contatos, suas informações sobre grupos e os contatos com os quais você conversa. Não coletamos nada disso.
Então, se a Justiça pedisse ao Signal para entregar dados sobre conversas de usuários, vocês não teriam como fornecer essas informações?
Não temos esses dados. Ninguém tem, só as pessoas envolvidas nas conversas. É como a criptografia de ponta a ponta funciona. Se você apontar uma arma para a minha cabeça e pedir os dados dos usuários, você vai ter que atirar, porque nós não temos essas informações.
Qual sua visão sobre as iniciativas de governos para minar a criptografia em aplicativos de mensagens?
São iniciativas muito perigosas. As pessoas contam com a privacidade para ter conversas honestas e íntimas. Elas precisam de aplicativos de mensagens para falar com família e colegas. Um mundo sem privacidade é um mundo onde as relações de poder desiguais estão escritas em pedra. As pessoas precisam se comunicar com privacidade, assim como fizeram por milhões de anos, até cerca de 20 anos atrás, como lançamento do iPhone. A privacidade é uma defesa de um direito humano fundamental.
No Brasil, a PL das Fake News está em processo de aprovação. Ao mesmo tempo, no mundo, grupos radicais têm se reunido online. A moderação de conteúdo e a privacidade parecem trilhar caminhos opostos. A criptografia das conversas pode coexistir com as ações de moderação de conteúdo de um governo?
Quando um aplicativo tem recursos para grandes grupos de usuários, como o Telegram tem há muito tempo e o WhatsApp lançou recentemente, a moderação de conteúdo faz parte do jogo. Se não houver alguma forma de moderação, a plataforma é dominada por coisas horríveis e todos os usuários vão embora. Esse fenômeno acontece desde o começo das mensagens públicas na internet, não é algo novo. Toda rede social, incluindo o Telegram, precisa de moderação. O Signal é um aplicativo de troca de mensagens criptografadas, não somos uma rede social. Há uma grande diferença entre garantir que não haja spam de conteúdo em grupos com milhares de pessoas que nem se conhecem e ter ações de controle e vigilância de comunicação privada entre duas pessoas. Precisamos separar esses assuntos. O que vemos em pauta no Reino Unido e em outros países são iniciativas que irão promover vigilância em massa de conversas antes mesmo que elas sejam enviadas. Desse modo, seria possível analisar o discurso para saber se o conteúdo viola ou não as regras. Isso não é moderação de conteúdo, é vigilância em massa.
Como a inteligência artificial pode impactar o Signal e a privacidade na internet?
Para entender a relação entre a criptografia e a inteligência artificial, é necessário entender que a IA precisa de uma grande quantidade de informações para que sejam criados esses sistemas que têm sido divulgados por Microsoft e Google e outras empresas. Com o hype da IA, vemos um conjunto de tecnologias que requerem vigilância para a coleta de dados e que incentiva ainda mais esse modelo de negócio. Quando você usa um aplicativo que tem criptografia, a coleta de dados para treinar IAs é interrompida. A inteligência artificial é contra a privacidade, e vice-versa.
No Brasil, sempre que o WhatsApp cai, os downloads do Telegram disparam. Vocês planejam se tornar a principal alternativa ao WhatsApp ou mesmo a escolha prioritária dos brasileiros para conversas pelo celular?
Sem dúvidas. Nossa missão é oferecer acesso à comunicação privada. Um aplicativo é mais útil com mais gente usando. O Signal é muito simples de ser usado por qualquer pessoa em qualquer lugar no mundo.
Atualização 02/05/2023 - Em nota ao Estadão, o Telegram afirmou ser um aplicativo privado e que a opção de criar grupos ou canais públicos não o tornam menos privados. “Além disso, tudo enviado pelo Telegram, incluindo mensagens em grupos e postagens em canais, é criptografado de forma segura e tem sido desde o lançamento do Telegram em 2013. A criptografia do Telegram pode ser verificada por especialistas em segurança, como foi feito por pesquisadores da Universidade de Udine, na Itália”, segundo a nota da empresa.