THE NEW YORK TIMES - “Essa coisa de IA está ficando muito louca.”
As vozes de Charlamagne tha God, apresentador do programa de rádio “The Breakfast Club”, e de suas convidadas Mandii B e WeezyWTF preenchiam o carro de Ylonda Sherrod enquanto ela fazia seu caminho diário pela Interstate 10, no Mississippi. O tema do programa de rádio favorito dela naquele dia era inteligência artificial (IA), mais especificamente uma amostra gerada por meio de IA da voz do rapper conhecido como Biggie, já falecido.
“Sonoramente, parece legal”, disse Charlamagne Tha God. “Mas não tem alma.”
Então WeezyWTF respondeu: “Algumas pessoas chegaram a me perguntar se eu substituiria aqueles que trabalham para mim pela IA. Não, cara”.
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Ylonda concordou enfaticamente com a cabeça enquanto passava de carro em frente às casas de tijolinhos e lanchonetes. Ela chegou à central de atendimento da empresa de telecomunicações AT&T, onde trabalha, sentindo um certo incômodo. Então falou da conversa que escutou no rádio sobre IA para um colega.
“Sim, isso é loucura”, ele respondeu. “E quanto a nós?”
Como muitos milhões de trabalhadores americanos, os cerca de 230 atendentes do call center da AT&T, na cidade de Ocean Springs, Mississippi viram a IA surgir de forma veloz no ano passado.
Do nada, os funcionários do serviço de atendimento ao cliente não estavam fazendo suas próprias anotações durante as ligações. Em vez disso, uma ferramenta de IA gerava uma transcrição, que poderia ser verificada pelos gestores posteriormente. A tecnologia de IA estava dando sugestões do que dizer aos clientes. E os consumidores também estavam sendo atendidos em parte pelos sistemas automatizados, que resolviam questões simples e transferiam as complicadas para os atendentes humanos.
Ylonda, 38, vê a nova tecnologia com uma combinação de raiva e medo. “Parte de mim sempre fica se perguntando: estou treinando meu substituto?”
Ela, que é vice-presidente do sindicato local de funcionários de centrais de atendimento ao cliente, parte do Communications Workers of America, o maior sindicato de comunicação e mídia dos EUA, começou a fazer perguntas aos gerentes da AT&T. “Se não falarmos disso, talvez minha família seja prejudicada”, disse ela. “Vou perder meu emprego?”
Nos últimos meses, o ChatGPT passou a estar presente em tribunais, salas de aula, hospitais e em todos os cantos. Com isso veio a especulação sobre o impacto da IA nos empregos. Para muitas pessoas, a IA parece uma bomba-relógio, que com certeza levará o emprego delas embora. Mas para algumas, como Ylonda, a ameaça da IA não é abstrata. Elas já conseguem sentir seus efeitos.
Quando a automação absorve empregos, muitas vezes isso acontece primeiro com as funções de atendimento ao consumidor, que representam cerca de três milhões de empregos nos EUA. A automação tende a impactar aqueles com tarefas repetitivas, como o serviço de apoio ao cliente, que já é um local cheio de terceirização fora dos EUA.
A maioria dos trabalhadores de centrais de atendimento ao consumidor dos EUA entrevistados neste ano disse que seus empregadores estavam automatizando parte de seu trabalho, segundo uma pesquisa com duas mil pessoas de pesquisadores da Universidade Cornell. Quase dois terços dos entrevistados disseram acreditar ser um pouco ou muito provável que o aumento do uso de bots levasse a demissões nos próximos dois anos.
Os executivos da tecnologia chamam a atenção para o fato dos temores da automação existirem há séculos – remontando ao Ludismo, que ficou famoso pela destruição e queima de máquinas usadas na indústria têxtil –, mas, historicamente, terem sido enfraquecidos pela realidade na qual a automação cria mais empregos do que acaba com eles.
Mas essa geração de empregos acontece gradualmente. Os novos postos de trabalho criados pela tecnologia, como cargos de engenharia, exigem qualificação. Isso pode criar um abismo para os trabalhadores como Ylonda, que encontrou o que parecia ser um bilhete premiado na AT&T: um emprego que paga US$ 21,87 por hora e até US$ 3 mil em comissões por mês, disse ela, além de dar direito a plano de saúde e cinco semanas de férias – tudo isso sem a exigência de um diploma universitário. Menos de 5% dos empregos na AT&T exigem nível superior.
Para Ylonda, o atendimento ao cliente significava que alguém como ela – uma mulher negra criada pela avó numa cidade pequena do Mississippi – poderia ter “uma vida muito boa”.
“Estamos interrompendo flagelos geracionais”, diz Ylonda.
Quando um amigo lhe contou do emprego na AT&T, ela achou que a oportunidade parecia boa demais para ser verdade. A central de atendimento tinha ar-condicionado. Ela podia passar o dia todo sentada, descansando os joelhos. Então fez o teste para a vaga na central de atendimento duas vezes. Na segunda vez, em 2006, foi aprovada e começou a ganhar US$ 9,41 por hora.
Maior pesadelo
Recentemente, os legisladores de Washington começaram a conversar com os fabricantes de ferramentas de IA sobre os perigos dos produtos lançados.
“Permita-me perguntar qual é o seu maior pesadelo”, disse o senador democrata Richard Blumenthal ao CEO da OpenAI, Sam Altman, depois de compartilhar que o maior medo dele era a perda de empregos. “Haverá um impacto nos empregos”, disse Altman, cuja empresa desenvolveu o ChatGPT.
Essa realidade já se tornou evidente. A empresa britânica de telecomunicações BT Group anunciou em maio que cortaria até 55 mil postos de emprego até 2030, conforme passasse a depender cada vez mais da IA. O CEO da IBM disse que a IA afetaria certas funções administrativas na empresa, acabando com a necessidade de até 30% de alguns cargos, ao mesmo tempo em que criava outros.
A AT&T começou a incorporar a IA em muitas partes de seu serviço de atendimento ao consumidor, inclusive na transferência de clientes para representantes, oferecendo sugestões de soluções técnicas durante as ligações e produzindo transcrições.
A empresa disse que todos esses usos tinham como objetivo criar uma melhor experiência para os consumidores e trabalhadores. “Estamos realmente tentando focar no uso da IA para aprimorar e ajudar nossos funcionários”, disse Nicole Rafferty, que lidera a operação de atendimento ao cliente da AT&T e trabalha com profissionais em todo o país.
“Vamos precisar sempre da interação com funcionários humanos para resolver as situações complicadas dos clientes”, acrescentou. “É por isso que estamos tão focados em criar uma IA que auxilie nossos funcionários.”
Os economistas estudando a IA defendem que ela muito provavelmente não provocará demissões repentinas e generalizadas. Em vez disso, ela poderia eliminar gradualmente a necessidade de seres humanos para realizar certas tarefas – e tornar as restantes mais desafiadoras.
“As tarefas que sobrariam para os trabalhadores de centrais de atendimento seriam as mais complexas, e os clientes mais frustrados”, disse Virginia Doellgast, professora da Escola do Estado de Nova York de Relações Industriais e Trabalhistas da Universidade Cornell.
Ylonda sempre gostou da interação com os clientes. Ela disse que atendia cerca de 20 ligações por dia, das 9h30 às 18h30. Enquanto resolve questões técnicas, ela escuta o motivo da ligação, os medos dos clientes que acabaram de comprar uma casa nova, passaram por um divórcio ou perderam um familiar.
“É meio como se você fosse um terapeuta”, disse. “Eles contam a história da vida deles.”
Ela já está achando seu trabalho cada vez mais desafiador com a IA. A tecnologia de automatização tem dificuldade em entender o sotaque de Ylonda, segundo ela, então as transcrições de suas ligações estão cheias de erros. Depois que a tecnologia sair da fase piloto, Ylonda não poderá mais fazer correções. (A AT&T disse que estava aperfeiçoando os produtos de IA usados para evitar esse tipo de erro.)
Parece quase certo para Ylonda que, a qualquer hora, conforme o trabalho automatizado se tornar mais eficiente, a empresa não vai mais precisar de tantos humanos atendendo as ligações.
Ela também se pergunta: “Será que a empresa não confia em mim?”.
Propostas de proteção
À medida que empresas como a AT&T adotam a IA, especialistas estão lançando propostas destinadas a proteger os trabalhadores. Existe a possibilidade de programas de formação para ajudar as pessoas a fazer a transição para novos empregos, ou de um imposto de afastamento cobrado aos empregadores quando o trabalho de um profissional for automatizado, mas a pessoa não recebe um novo treinamento.
Os sindicatos estão entrando nessas batalhas. Em Hollywood, aqueles que representam atores e roteiristas de televisão têm lutado para limitar o uso de IA na escrita e produção de roteiros.
Apenas 6% dos trabalhadores do setor privado do país são representados por sindicatos. Ylonda é um deles e começou a brigar para que a AT&T dê mais informações sobre seus planos com a IA. No entanto, pela primeira vez, ela sente que está lidando com algo que afetará não apenas os trabalhadores da AT&T. Há pouco tempo, ela pediu ao seu sindicato para criar uma força-tarefa com foco na IA.
No fim de maio, Ylonda foi convidada pelo Communications Workers of America a viajar para Washington, onde ela e dezenas de outros trabalhadores se reuniram com representantes do Escritório de Engajamento Público da Casa Branca para compartilhar sua experiência com a IA.
Um trabalhador de um armazém descreveu ser monitorado por IA, que controlava a rapidez com que ele movia os pacotes, criando uma pressão para que ele pulasse os períodos de pausa. Um motorista que faz entregas disse que tecnologias de vigilância automatizada estavam sendo usadas para monitorar os trabalhadores e pesquisar por possíveis medidas disciplinares, embora seus registros não fossem confiáveis. Ylonda descreveu como a IA criava resumos incorretos de seu trabalho.
Com seu salário e comissões, ela conseguiu comprar uma casa. Ela vive numa rua ensolarada, cheia de famílias, algumas das quais com pessoas trabalhando em áreas como enfermagem e contabilidade. Ylonda se orgulha por poder comprar tudo o que o filho pede. Ela quer dar a ele a infância que nunca teve.
“O trabalho na central de atendimento mudou minha vida. Será que tudo isso vai ser tirado de mim?”, diz. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA