Antes mesmo de a Jamaica exportar o reggae de Bob Marley para o resto do mundo, ela deu origem a uma cultura musical incrível: os paredões de som, estruturas gigantescas com potentes alto-falantes que permitiam que DJs e MCs travassem épicas batalhas pelo domínio sonoro da região. Do Caribe, essa cultura viajou para o mundo, ajudando a dar nos EUA o pontapé inicial para o hip hop; aqui no Brasil, se enroscou ao reggae do Maranhão, às aparelhagens do Pará e até aos bailes funks do Sudeste, muitas vezes em sistemas de som automotivos potentes. Agora, com a ajuda dos youtubers, ela chegou aos videogames.
Pode parecer uma ideia engraçada apenas para um nicho, mas recentemente, essa onda furou sua pequena bolha e se espalhou pelas redes sociais com um vídeo surpreendente: inimigos no universo Marvel, Thanos e Hulk se unem a Shrek e a princesa Elsa, de Frozen, numa festa na praia. Junto deles, a Mulher-Maravilha e Michael Jackson, todos em versões 3D, dançam uma versão em forró de “They Don’t Care About Us”, hit de 1995 do cantor, executada a partir dos altos-falantes de um carro com a placa brasileiríssima “PASSAZAP”. Para completar a cena, o Homem-Aranha sobe numa lixeira para dançar, enquanto é possível ver uma van amarela do Sedex ao fundo.
Com 1,5 milhão de visualizações, a produção, uma versão virtual de uma Carreta Furacão, viralizou. E era óbvio que a delirante combinação não era obra de nenhum roteirista hollywoodiano, mas sim de um brasileiro que resolveu dar o seu toque pessoal a Grand Theft Auto V (GTA V). Lançado em 2013, o jogo da Rockstar já vendeu mais de 100 milhões de cópias e tem um modo online que, além de interessados em golpes e missões, também atrai quem quer criar sua própria realidade – especialmente se for com o grave batendo forte.
“Eu sempre fiz modificações no GTA, desde o GTA San Andreas [versão do game lançada em 2004]. Instalava uns carros brasileiros com som, rebaixava e ficava só passando o tempo com isso por diversão mesmo”, diz Gabriel Souza, que prefere ser chamado de “Gabriel do Zap”. “Um dia vi um GIF do Hulk dançando no Twitter e não parei de pensar naquilo. E se eu fizesse algo ainda melhor no estilo brasileiro?.”
Souza, claro, não é o único produzindo material do tipo. É possível encontrar no YouTube muitos vídeos brasileiros de paredões de som criados dentro do GTA - eventualmente, esse material também acaba no Twitter e no Facebook. No jogo, como na vida real, o que atrai o público é o tamanho da estrutura sonora: porta-malas de carros populares, reboques que desafiam a gravidade e caminhões inteiros de alto-falantes.
Os vídeos chegam a milhões de visualizações e se dividem informalmente em duas categorias. A primeira são os videoclipes, no quais os carros de som servem de pano de fundo para hits de artistas como Aldair Playboy e Devinho Novaes. A outra são os vídeos focados no roleplay, nos quais os jogadores encarnam personagens e simulam situações, como encontros de carros de som. Um exemplo da segunda categoria é uma verdadeira obra de arte pós-moderna – ou uma salada cultural: “Neymar de Hilux com Paredão foi abordado pela PM”.
Para o pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (Labcult) da Universidade Federal Fluminense, Thiago Pereira, há um diálogo interessante entre a cultura de paredão e as criações no GTA. “Essa cultura do som potente, dos grandes sons, está ligada a uma ideia de som periférico, seja o baile funk, seja o reggae maranhense”, diz Pereira. “Ela tem uma raiz que está ligada a estilos, práticas e gêneros musicais que muitas vezes são marginalizados no Brasil.”
A transposição dos paredões de som para os games, especialmente no GTA, obra que joga com o conceito da subversão aos códigos morais, tem uma coerência narrativa. “É uma conversa de códigos transgressores”, diz o especialista.
Fora do videogame, um dos paredões de som mais conhecidos do Brasil é a Carreta Treme-Treme, de Grataval (SC), titã das paredes de som com 338 alto-falantes, 4 toneladas de fio e mais de 3 milhões de Watts RMS. A fama da carreta rendeu uma recriação digital no jogo, o que agradou os responsáveis por ela. “Gostamos muito. Os fãs demonstram todo o carinho até nesse jogo, que é um ícone nacional”, dizem os responsáveis.
Mas a Treme-Treme não é a única. O paredão Megatron, entidade guarulhense que anima os bailes funk de São Paulo e que herdou o nome (e o tamanho) do principal antagonista da série Transformers, também aprova suas versões digitais. “Achamos muito legal, isso mostra a admiração da galera pelo nosso paredão”, comentam.
referenceFalta de grana
Mas por que alguém se dedica a criar paredões de som em um videogame? O youtuber João Pedro Moscoski, conhecido no YouTube como JP Game, explica: “Eu e muita gente sonhamos em ter um carro rebaixado com som”, diz. “Então, pelo simples fato de não termos condições na vida real, começamos a gravar vídeos com os carros e músicas que gostamos.”
Na internet, uma parede de som como a do jogo pode sair por até R$ 30 mil reais, mas há notícias de equipamentos avaliados na faixa dos milhões de reais. O jogo custa a partir de R$ 70 na versão para PC (via Steam, a maior loja online de games para computador). Já os carros criados por João Pedro estão disponíveis gratuitamente em seu site.
JP conta que a maioria de suas criações é inspirada em carros reais. “Os donos de carros com som na vida real me procuram para fazer os seus carros no jogo, pois eles mesmos gostam dos vídeos”, explica. Mas sobra espaço para invenções ainda mais criativas, como um caminhão do gás equipado com caixas gigantescas que dirige pela cidade ao som do grupo cearense Forró de Front, cujo lançamento mais recente se chama justamente “Especial para Paredão”. O carro favorito de JP, porém, é o Punto Sossego, versão amplificada do carro popular da Fiat que se tornou hit entre os youtubers do gênero.
Victor Salgado, do canal VTR Films, conta que começou assistindo outros canais com esse tipo de conteúdo. Atualmente, o seu é um dos mais acessados nesse nicho, com vídeos que combinam Saveiros e S-10 com o melhor do batidão, gênero favorito de seus inscritos que combina elementos do forró e do brega com o funk. “O que seria de um paredão sem música, não é verdade?”, filosofa.
Em 2018, o produtor eletrônico Omulu lançou o clipe “Paredão”, gravado dentro do jogo e com paredões de som virtuais. O motivo é simples: falta de grana. “Sem orçamento para rodar um clipe real, o clipe dentro do GTA fez todo o sentido”. Omulu conta que já acompanhava há algum tempo os vídeos do tipo no YouTube. Com a ajuda de Johnyy Gamer, um dos maiores youtubers desse nicho, e JP Games, Omulu modelou um paredão parecido com o Megatron. E bolou uma obra na qual policiais chegam a um baile não para acabar a festa, mas sim para se juntarem à ela.
Identificação local
Pelo seu cenário de mundo aberto urbano e cheio de possibilidades, GTA se tornou dos favoritos entre os criadores dos mods, alterações feitas pela comunidade de jogadores para games já existentes que mudam a aparência ou a maneira de jogar. São os mods que permitem que os paredões aterrissem em GTA. Algumas das principais franquias dos games também começaram nesse mesmo esquema. Entre elas estão Player Unknown’s Battleground, Counter Strike e Dota.
No Brasil, mais que em qualquer outro lugar, os mods serviram para transformar o GTA. A cidade de Los Santos, a cidade original do jogo que é uma versão digital de Los Angeles, foi o molde perfeito para que os brasileiros imprimissem sua realidade ao jogo. Assim, ela ganhou jogadores de futebol, favelas, personagens do cenário político e as tais paredes gigantescas de caixas de som.
“Todos os paredões são feitos graças a comunidade de mods que existe no GTA”, diz Gabriel. A tradição brasileira de mods nos games é antiga, e vai até os famosos patches dos jogos de futebol, como o Brazukas e o Bomba Patch – atualizações que colocavam times, jogadores e até mesmo narradores brasileiros dentro do jogo Winning Eleven (hoje, Pro Evolution Soccer). Essa cultura, junto da trollagem e dos memes, é uma das formas de participação brasileira no cenário digital global.
José Messias, professor do curso de estudos de mídia e da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que essas “gambiarras são expressões políticas”. Ele diz: “Essas modificações são afirmações de interesses estéticos e culturais que dão voz e principalmente visibilidade para esses elementos regionais”.
JP explica que a criação de um veículo modificado para o GTA V envolve uma série de ferramentas. Ele cita pelo menos seis, entre programas voltados à modelagem 3D e softwares específicos para editar os dados do jogo. Para criar um único carro com paredão, o processo leva em torno de quatro a cinco horas, segundo o modder.
Veja os melhores paredões de som do jogo GTA
Versão popular
GTA V, porém, não é o único título da franquia que recebe modificações dos brasileiros. No Brasil, onde o acesso tecnológico é distribuído de forma desigual, o jogo GTA San Andreas, lançado em 2004, ainda é bastante popular pois seus requisitos se aproximam mais do que está disponível para uma grande parte dos jogadores. É possível rodar o game quase em qualquer computador e até na maioria dos celulares.
Quando o assunto é San Andreas, a opção mais popular para montar seu próprio paredão é uma ferramenta chamada Tuning Mod. O Tuning Mod é uma modificação criada por Valdir da Costa Júnior, o junior_djjr, que permite alterar veículos dentro do jogo de forma simples e intuitiva. É possível criar de paredes de som que desafiam a engenharia a carros que parecem saídos diretamente do filme Mad Max.
O fato de estar disponível para San Andreas é um trunfo para o criador.“Mesmo pessoas que têm um PC fraco conseguem jogar”. Segundo Valdir, mais de 300 mil downloads de seusoftware já foram feitos. O impacto vai além dos números de download. “Inúmeras pessoas, principalmente em países latinos, voltaram a jogar GTA San Andreas por causa deste mod, e parte destas pessoas começou a se interessar por modelagem, desenvolvimento de jogos ou até mesmo mecânica e instalação de som automotivo”, conta. “Houve um jogador que me disse que começou a ajudar o pai numa oficina após mexer com o Tuning Mod.”
Para ele, o que acontece é que o jogo desperta um interesse ainda maior a respeito desse tema. “No Brasil, há uma cultura muito forte de som automotivo e, sem dúvidas, houve uma boa influência do GTA San Andreas nisso”, diz. Omulu reforça esse elemento de identificação local nos games. “Eles podiam estar dando voltas de Lamborghini escutando música americana, mas preferem modificar o jogo pra andar de Saveiro puxando um paredão com ritmos brasileiros”.
“Os paredões são peças chave na divulgação de músicas na periferia. Você sabe que a música explodiu quando começam a tocar nos paredões e a galera do mod leva isso para o ambiente virtual. Por mais que seja uma subcultura quando se trata de criar as modificações, os vídeos alcançam milhões de pessoas”, explica o músico.