THE NEW YORK TIMES - Em março deste ano, uma equipe de 11 cientistas divulgou na revista Nature, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo, que havia descoberto um supercondutor de temperatura ambiente. Oito desses cientistas agora pediram à revista que se retratasse de seu artigo.
Isso os coloca contra o líder da pesquisa: Ranga P. Dias, professor de engenharia mecânica e física da Universidade de Rochester, em Nova York, EUA. Nos últimos anos, Dias fez várias afirmações científicas que impressionaram, mas também se envolveu em uma série de alegações de má conduta científica.
O pedido de retratação vai aumentar a investigação sobre Dias e a Unearthly Materials, empresa fundada pelo professor para transformar as descobertas sobre supercondutividade em produtos comerciais. A Unearthly Materials chegou a levantar US$ 16,5 milhões com investidores.
Isso também levanta questões sobre como os editores da Nature examinam os artigos enviados e decidem quais são dignos de publicação. A Nature já havia publicado e retirado um artigo anterior do grupo de Dias que descrevia um suposto supercondutor diferente.
Os supercondutores são materiais capazes de conduzir eletricidade sem nenhuma resistência elétrica, e um que funcione em condições cotidianas poderia ser amplamente utilizado na transmissão de eletricidade e em ímãs potentes usados em máquinas de ressonância magnética e em futuros reatores de fusão. Os supercondutores descobertos até o momento requerem temperaturas ultrafrias.
O que diz o artigo de Ranga P. Dias na Nature
No artigo da Nature, Dias e seus coautores descreveram como o hidreto de lutécio (um material feito de lutécio, um metal branco-prateado, e hidrogênio) adquiriu novas propriedades eletrônicas quando uma pequena quantidade de nitrogênio foi adicionada. Quando espremido a uma pressão de 145 mil libras por polegada quadrada, o material não apenas mudou de cor, de azul para vermelho (o que levou Dias a dar a ele o apelido de “matéria vermelha”), mas também se transformou em um supercondutor capaz de transportar eletricidade sem esforço a temperaturas tão quentes quanto 70º Fahrenheit, disseram os cientistas no artigo da Nature.
Os céticos questionaram quase que imediatamente as descobertas, o que levou a revista a reexaminar a pesquisa.
Os coautores disseram que Dias manteve a maioria deles fora do circuito da revisão pós-publicação por vários meses.
Em carta a Tobias Rödel, editor sênior da Nature, de 8 de setembro, os coautores descreveram o que consideravam falhas significativas na pesquisa e disseram que acreditavam que “Dias não agiu de boa-fé em relação à preparação e à apresentação do manuscrito”.
O jornal Wall Street Journal divulgou a carta na terça-feira passada, 26.
Os autores da carta incluíam cinco estudantes de pós-graduação recentes que trabalharam no laboratório de Dias. Eles disseram que levantaram preocupações durante a preparação do artigo científico. “Essas preocupações incluíam representações claramente enganosas e/ou imprecisas no manuscrito”, escreveram eles.
Eles disseram que Dias fez algumas alterações, mas que “nossas preocupações foram em grande parte descartadas por ele, e alguns de nós foram instruídos pelo professor a não investigar mais as questões levantadas e/ou a não se preocupar com tais preocupações”.
A carta dizia que os alunos de pós-graduação se sentiram limitados no que podiam dizer na época porque dependiam de Dias para obter apoio acadêmico e financeiro.
Entre os que assinaram a carta pedindo uma retratação estava Ashkan Salamat, professor de física da Universidade de Nevada, Las Vegas, EUA, e cofundador da Unearthly Materials, atuando como presidente e presidente executivo Isso foi uma mudança em relação a maio, quando Salamat e Dias defenderam o artigo em uma refutação das preocupações levantadas por outros cientistas.
Salamat não respondeu aos pedidos de comentários. Um porta-voz de Dias disse que Salamat não era mais funcionário da Unearthly Materials, mas continuava como acionista.
Os únicos autores do artigo de março que não assinaram a carta foram Dias, um estudante de pós-graduação que atualmente é membro de seu grupo de pesquisa e um ex-aluno de graduação que, de acordo com seu perfil no LinkedIn, agora trabalha na Unearthly Materials.
O que diz o ‘pai da supercondutividade’?
Antes de a carta ser enviada, Dias pediu aos autores que reconsiderassem. “Sou obrigado a me defender e a notificá-los do meu pedido para que parem e desistam de assinar e/ou enviar a carta proposta”, escreveu ele em uma carta compartilhada nas mídias sociais pelo jornalista científico Dan Garisto. O porta-voz de Dias confirmou o conteúdo da carta.
Mesmo assim, o pedido de retratação foi enviado à Nature. O Wall Street Journal informou que Rödel respondeu em um e-mail: “Estamos absolutamente de acordo com sua solicitação de que o artigo seja retratado”.
Karl Ziemelis, editor-chefe de ciências físicas da Nature, disse em comunicado: “No momento, estamos investigando cuidadosamente as preocupações relacionadas à confiabilidade dos dados desse artigo. Também podemos confirmar que estamos nos correspondendo com os autores a respeito de todas as preocupações”.
Ele acrescentou: “Esperamos tomar medidas em um futuro próximo”.
Uma retratação do artigo sobre hidreto de lutécio seria a terceira retratação no ano passado para Dias.
Em 2020, Dias e seus colaboradores descreveram em um artigo, também publicado na Nature, um material diferente que era supercondutor à temperatura ambiente, mas somente a pressões de esmagamento semelhantes às encontradas perto do centro da Terra.
Depois que alguns cientistas questionaram os dados do artigo de 2020, a Nature realizou uma revisão e, em seguida, retirou o artigo em setembro de 2022, apesar das objeções do professor e de todos os outros autores.
Em agosto, a revista Physical Review Letters retirou outro artigo de Dias, um publicado em 2021 que descrevia as transformações eletrônicas do sulfeto de manganês sob pressão variável. Os críticos novamente apontaram para dados que pareciam suspeitos e, depois que revisores externos deram uma olhada mais de perto, os editores da revista concordaram.
“As descobertas confirmam de forma convincente as alegações de fabricação/falsificação de dados”, escreveram os editores em um e-mail para os autores do artigo em julho. Nove dos dez autores do artigo sobre o sulfeto de manganês concordaram com a retratação. Dias foi o único que não concordou, insistindo que o trabalho não continha manipulação ou fabricação.
Uma sequência semelhante de eventos está ocorrendo novamente com o artigo sobre hidreto de lutécio. Brad J. Ramshaw, professor de física da Universidade de Cornell, EUA, participou da revisão que levou à retratação do artigo da Nature de 2020.
Depois que o artigo sobre hidreto de lutécio foi publicado, Ramshaw notou estranhezas nas medições de resistência elétrica.
Brad J. Ramshaw, professor de física da Universidade de Cornell
Ele entrou em contato com James J. Hamlin, professor de física da Universidade da Flórida, EUA, que havia publicado anteriormente uma análise do artigo sobre supercondutividade de 2020. No início de maio, Hamlin e Ramshaw escreveram suas preocupações sobre os dados do hidreto de lutécio e os enviaram à Nature.
Sem revelar as identidades de Hamlin e de Ramshaw, as preocupações foram enviadas a Dias e, no final de maio, Dias e Salamat enviaram sua refutação. Em 26 de junho, Hamlin e Ramshaw responderam à refutação, detalhando como o procedimento descrito no artigo de Dias para subtrair um sinal de fundo nas medições de resistência não poderia ter produzido os gráficos mostrados no artigo.
“Não conheço ninguém no campo da supercondutividade que faria o que eles fizeram com os dados”, disse em uma entrevista.
A Nature recrutou quatro árbitros para avaliar as alegações. Em grande parte, eles ficaram do lado de Hamlin e de Ramshaw. Um árbitro escreveu que Dias e Salamat “não forneceram respostas satisfatórias a várias questões” e questionou por que os autores “não estão dispostos ou não são capazes de fornecer respostas claras e oportunas”.
Na carta de 8 de setembro, os coautores disseram que a maioria deles não sabia das preocupações até 6 de julho, depois que Dias e Salamat já haviam respondido.
A carta dos coautores descrevia problemas com os dados ou com a análise de várias das figuras do artigo. A carta também revelou que quase todas as amostras de hidreto de lutécio foram compradas comercialmente - algumas continham algumas impurezas de nitrogênio - e não foram feitas no laboratório de Dias usando a receita descrita no artigo da Nature.
Em abril de 2022, os alunos de pós-graduação procuraram Dias para expressar suas preocupações, e ele respondeu que eles poderiam remover seus nomes como autores ou permitir que o artigo fosse publicado.
“Naquele momento, nenhuma das opções parecia sustentável, já que Dias estava no controle de nossas circunstâncias pessoais, acadêmicas e financeiras, como nosso mentor e supervisor”, disseram os autores da carta.
O porta-voz de Dias disse que o professor nunca intimidou seus alunos. “Todas as discussões eram abertas e disponíveis a todos os coautores”, reforçou. “Os coautores tomaram decisões coletivas sobre a publicação.” / TRADUÇÃO POR ALICE LABATE