No circo existe uma rede de proteção que fica lá embaixo enquanto o trapezista faz mil piruetas no ar. Ela existe para evitar danos maiores caso alguma coisa dê errado. De certa forma, o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12965/2014), cuja constitucionalidade começa a ser julgada nesta quarta, 27, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), desempenha o mesmo papel.
O artigo 19 determina que provedores de aplicações na internet que publicam conteúdos de terceiros, das redes sociais à Wikipédia, apenas serão responsabilizados caso descumpram uma ordem judicial que determina a remoção do conteúdo reputado como ilícito.
Essa norma surgiu para superar um contexto em que cada tribunal decidia de maneira distinta sobre a responsabilidade dos provedores, ora sancionando aqueles que receberam uma notificação e nada fizeram, ora punindo as plataformas porque um conteúdo danoso foi publicado.
O regime do Marco Civil da Internet possui exceções, como o caso da veiculação de cenas de sexo e nudez não consentidas. Para essas situações basta a vítima notificar e a plataforma será responsabilizada caso não retire o conteúdo do ar. Para esses materiais não há o que se falar sobre liberdade de expressão.
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Mas será que o mesmo regime deveria valer para outros casos, como a ofensa à honra e à imagem? Esse modelo, que era aplicado pelos tribunais antes do Marco Civil, abriria a possibilidade para que qualquer pessoa pudesse ser ao mesmo tempo vítima e juiz, apontando um conteúdo nas redes que a ofende e conseguindo que ele fosse removido por plataformas temerosas de serem responsabilizadas pela publicação feita por seus usuários.
A solução dada pelo Marco Civil da Internet em 2014 refletiu um juízo de equilíbrio entre a liberdade de expressão e demais direitos. Ela serve como uma rede de proteção que remete ao Judiciário a competência última de dizer o que é lícito e ilícito no direito brasileiro.
Isso não significa dizer, contudo, que as plataformas não possam remover conteúdos antes de uma ordem judicial. Aqui talvez resida uma das principais críticas ao modelo desenhado pelo Marco Civil: ele traçou uma linha sobre responsabilidade, mas falhou em oferecer as ferramentas que pudessem estimular as plataformas a moderar conteúdos de forma mais transparente, coerente e informativa.
O julgamento que começa no STF vai definir se a regra do Marco Civil deve cair ou se ela deve ser interpretada sob novas luzes, talvez acrescentando novas exceções à regra geral. O Supremo, em diversos momentos, vem afirmando que nem todo discurso é cabível de proteção debaixo da liberdade de expressão. Desinformação sobre medidas sanitárias, desafios à integridade eleitoral, além de publicações incentivando a abolição violenta do Estado de Direito estiveram no radar do tribunal.
A decisão que vai sair do Supremo pode ter cara de uma nova regulação sobre o tema da liberdade de expressão na internet. A matéria, que deveria caber ao Congresso, não encontrou consenso para aprovação no Legislativo. Sendo assim, seja qual for o resultado, a decisão sobre o Marco Civil fatalmente será mais um episódio de tensão entre os Poderes.
No picadeiro das disputas entre os Poderes, a Constituição serve como rede de proteção. Vamos torcer para que a sua fina costura continue a segurar as piruetas que dão errado.
*Carlos Affonso Souza é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade. Ele é também considerado o “pai” do artigo 19 do Marco Civil da Internet.