O projeto de lei 2630/2020, que ganhou o apelido de lei ‘das fake news’, deve sofrer alterações para ser votado hoje no Senado Federal. Apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o texto propunha regular a forma como redes sociais e aplicativos de mensagens funcionam no país a fim de impedir a disseminação de desinformação, notícias falsas e manipulação. No início da semana, porém, o texto foi alvo de críticas por especialistas e entidades de direito digital, que alegaram que a proposta poderia levar à censura e aumento do monitoramento na internet brasileira.
Dessa forma, o projeto, que tem coautoria dos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES) deverá ganhar um substitutivo, que será apresentado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA) na tarde desta terça-feira, no plenário do Senado. Em entrevista ao Estadão na tarde da segunda-feira, Amaral, Rigoni e Vieira afirmaram que o novo texto retira o enfoque à desinformação e traz apenas determinações relacionadas à transparência das empresas de redes sociais e sobre ferramentas que são usadas para espalhar notícias falsas.
A nova proposta, dizem os parlamentares, também vai determinar que os assuntos ficarão a cargo de um grupo criado e coordenado pelo Comitê Gestor da Internet. Caberá ao colegiado formular uma proposta legislativa para definir o conceito de desinformação e criar um código de conduta para verificadores. De acordo com Tabata Amaral, o texto também foi modificado para que as empresas de redes sociais sejam obrigadas a fazer uma notificação antes de rotular uma publicação como fake news. A proposta também garante ao usuário o direito de recorrer da decisão.
Projeto recebeu elogios por intenções, mas foi alvo de críticas por censura
O texto do PL foi elogiado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em entrevista coletiva na semana passada. “As plataformas precisam ter responsabilidade e as pessoas que usam de informações falsas de forma absurda a contestar, a desqualificar as nossas instituições democráticas, a honra das pessoas, precisam ter respostas mais fortes da Justiça, mas também uma responsabilização maior das plataformas”, disse.
No entanto, na visão de entidades de direito digital e especialistas no assunto, a ideia de responsabilizar as plataformas, presente no primeiro texto do projeto, pode ser uma má ideia. É algo que vai contra o que está posto no Marco Civil da Internet, sancionado em 2014 e considerado a Constituição da Internet Brasileira – segundo a lei, um conteúdo só pode ser retirado do ar mediante ordem judicial. Segundo o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), que divulgou nota pública na manhã da segunda-feira, sobre o projeto de lei, a alteração poderia levar à censura na rede.
“Com o risco que venham a se responsabilizadas por danos causados por conteúdo desinformativo, essas empresas ganham estímulo ainda maior para controlar o conteúdo que passa por suas plataformas”, declarou a entidade na nota. No comunicado, o ITS-Rio defendeu ainda que o projeto de lei de Vieira tem falhas conceituais e está sendo discutido de forma apressada, sem consultas públicas – desde o início da pandemia do coronavírus, novas leis têm ido para votação sem passar por comissões e processos habituais do Congresso.
No mesmo posicionamento, o ITS-Rio afirmou ainda que a lei tem problemas de redação que congelam a tecnologia na atualidade, sem pensar como sistemas de redes sociais e aplicativos podem mudar no futuro. “A lei também descreve o funcionamento de determinados apps, o que obriga os demais concorrentes a seguirem o modelo do app escolhido, com forte impacto na inovação e na concorrência."
Em nota divulgada na manhã desta segunda-feira, 1, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) pediu mais tempo para o debate sobre o projeto. Na visão do CGI, entidade que supervisiona a governança da internet no País, o texto precisa de mais debates por conta de diversos fatores, como “as complexidades conceituais e técnicas envolvidas pelo projeto” e a “relevância e graves consequências que o objeto dos projetos pode ter para direitos fundamentais como liberdade de expressão e vedação à censura”.
Em comunicado distribuído à imprensa na manhã desta segunda-feira, a entidade disse ainda que enviou ofícios aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal sobre o tema, bem como às lideranças dos partidos no Congresso Nacional.
Quem também se posicionou sobre o tema foi a Coalizão Direitos na Rede, organização que une diversas entidades da sociedade civil, como o Instituto Alana, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a ONG Coding Rights. Em sua conta no Twitter, o grupo tem pedido mais tempo para as discussões, uma vez que ainda não se conhece o teor do relatório do senador Ângelo Coronel (PSD-BA), responsável por analisar o texto de Vieira. Em nota técnica divulgada no final de semana, a Direitos na Rede também levantou problemas existentes no texto do projeto, falando sobre a responsabilização das plataformas, as definições usadas no texto e até mesmo o processo de aprovação do projeto.
Já a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint) também se posicionou contrariamente ao projeto, dizendo que ele pode "causar prejuízos às empresas provedoras de aplicação devido à insegurança jurídica". "Se a sua aprovação se concretizar, o Brasil caminhará na contramão do seu histórico fértil e internacionalmente reconhecido da aprovação do Marco Civil da Internet", afirmou ainda a associação, em comunicado. Em nota enviada à reportagem, o Google afirmou que "compartilha da preocupação de entidades da sociedade civil, grupos acadêmicos e especialistas sobre a necessidade de um debate público mais amplo e informado a respeito de propostas legislativas que busquem soluções para problemas complexos, como o da desinformação".
Em entrevista ao 'Estadão' publicada neste final de semana, o pioneiro da internet brasileira Demi Getschko também levantou ressalvas quanto ao projeto. “Uma notícia falsa é algo difícil, filosoficamente, de se definir. Quem gera notícias deliberadamente enganosas precisa ser punido, mas não é preciso criar uma nova lei para isso”, disse. “Acreditar em mecanismos que autocontrolem esse aspecto, como inteligência artificial, também é um problema. Especialmente porque é algo que talvez possa só ser feito por grandes, mas não por pequenos, o que geraria um problema de concorrência.”