10 anos sem Orkut: redes sociais ficaram mais passivas, profissionais e nocivas


Em uma década desde o fim da primeira rede social de muitos brasileiros, serviços do tipo foram profundamente alterados

Por Bruno Romani
Atualização:

O que dizer da rede social que conhecemos tão bem e consideramos para caramba?

Há exatamente uma década, o Orkut silenciou para sempre - em 30 de setembro de 2014, o Google desativou definitivamente o serviço que alfabetizou o Brasil em redes sociais. Nesses 10 anos de ausência, serviços do tipo caíram de vez no gosto das pessoas - e as plataformas passaram por transformações profundas: os usuários ficaram mais passivos, enquanto o conteúdo passou a ser mais nocivo. E toda essa relação, claro, passou a ser empacotada com um nível maior de profissionalismo.

“Estar no Orkut dava trabalho. Você tinha que escrever muito. E você falava com muita gente por texto. Não era uma rede social preguiçosa”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). Parte do trabalho que o serviço demandava do usuário vinha de suas limitações: o Orkut era uma rede social onde o texto predominava e o acesso acontecia quase sempre por PCs. Ou seja, para participar e gerar conteúdo, o usuário tinha que estar disposto.

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Redes sociais mudaram durante a década em que o Orkut esteve ausente  Foto: Ricardo Lima/Estadão

Era também uma limitação da época: o Orkut nasceu quando a banda larga mal havia começado a se espalhar pelo Brasil e smartphones não existiam. A rede atingiu seu auge em 2008, um ano após o lançamento do primeiro iPhone - era uma época que redes de comunicação móvel eram um plano para o futuro. E quando esse futuro chegou, o Orkut falhou: o serviço morreu sem nunca ter tido um aplicativo. O Facebook, por exemplo, ganhou seu primeiro app já em 2008 e era exclusivo do celular da Apple.

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A capacidade de acesso se aprofundou também com a expansão das redes móveis - o 5G já chega a 60% da população brasileira. Já o 4G só foi lançado comercialmente em 2012, quando o Orkut já dava severos sinais de decadência - no ano anterior, a rede foi ultrapassada pelo Facebook como a rede social mais acessada do Brasil. Na década em que esteve ausente, o Orkut perdeu a oportunidade de conexão permanente. A segunda transformação é que as conexões velozes abriram as portas para conteúdos que vão além do texto, principalmente vídeos.

Ainda mais importante: em 2009, o Facebook embutiu em seu serviço o algoritmo de distribuição de conteúdo. Isso mudou a história da internet para sempre. Em vez de receber conteúdo de forma cronológica, os usuários passaram a receber posts que mais poderiam agradar ou gerar reações. Ironicamente, o Orkut ficou parado neste momento fundamental de mudança e deixou de ver um modelo que se estabeleceu na década seguinte. O tripé que alimenta as redes sociais atuais (celular, conexão móvel e algoritmos) demoliu o modelo do Orkut, e criou hordas de usuários que não precisam mais “trabalhar” para encontrar online aquilo que desejam. Ficamos mais passivos.

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“Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão”, afirma Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais. De fato, a ideia de que redes sociais “morreram” e deram lugar a plataformas de mídia é forte entre especialistas da área.

Orkut nunca teve app para celular Foto: Rafael Henrique - stock.adobe.com

Recentemente, usuários que não experimentaram a sensação de navegar por uma rede social livre de algoritmos se espantaram com a ausência de mediação. Com o bloqueio do X no Brasil, parte dos usuários da rede de Elon Musk migrou para o Bluesky - e se chocou com o suposto silêncio da rede, que adota organização cronológica de posts como era na internet orkutiana.

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“Houve uma trend recente no Bluesky de pessoas ‘falando com o algoritmo’ numa tentativa de conectá-las a coisas de seu interesse. Isso é caricato e simbólico. Você não aciona um algoritmo como se estivesse falando com a Alexa”, diz Souza. Realmente, é a antítese da web 2.0, da qual o Orkut foi um grande símbolo: não existe mais construção contínua do espaço digital por parte de sua comunidade. Hoje, o algoritmo faz tudo por você.

Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão

Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais

Profissionalização

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A mudança de modelo foi determinante para a profissionalização não só das plataformas, mas também de seus usuários. “A rede social virou plataforma de entretenimento. É lugar para consumir fotos, vídeos e textos de pessoas que não são necessariamente próximas. São pessoas que você admira e em quem se inspira. É a ascensão das redes sociais como local por excelência dos influenciadores”, explica Souza.

Dessa maneira, “influenciador” virou profissão de desejo de muitos brasileiros. Segundo pesquisa da Nielsen, o País tem 10,5 milhões de influenciadores, com perfis tendo a partir de 1 mil seguidores. Esse número corresponde a um terço de toda a base de usuários do Orkut, quando ele perdeu o posto de rede social mais popular do Brasil.

Lan houses, como essa na favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, em 2009, eram pontos comuns de acesso ao Orkut  Foto: Marcos De Paula/AE
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Para muita gente se comportar profissionalmente desde o primeiro momento em que se pisa numa rede social se tornou peça importante do jogo - é um contraste principalmente aos primeiros anos de Orkut, quando viver de internet parecia um sonho para poucos.

“Entra muita gente nova nas redes já copiando outras pessoas. Copiam a estratégia e o conteúdo inteiros. Muitas vezes, eles nem sabem que copiar pega mal. A pessoa já chega com a ideia de que vai virar influenciador e vai passar por cima de todo mundo. Ela só está sedenta por tirar algum ganho daquela presença ali nas redes”, diz Manuela.

“O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações

Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais

Faz mal

Embora o Orkut represente uma certa inocência na internet, ele não estava livre de problemas sérios. A companhia era inundada de conteúdo ilegal e criminoso.

“Os problemas jurídicos causados pelo compartilhamento ilegal de obras com copyright e conteúdos pornográficos, assim como a criação de comunidades com conteúdos racistas e troca de informações entre pedófilos, homofóbicos e outros tipos de criminosos, sem que houvesse um modo eficaz de coibir essas comunicações dentro da interface do Orkut, mostrou o lado danoso de uma rede social sem uma política eficaz de moderação de conteúdos e proliferação e perfis anônimos ou fakes”, lembra Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

Em 2008, como resultado da ‘CPI da pedofilia’, o Google fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para a remoção e fornecimento de informações sobre contas que promoviam pornografia infantil. Em 2014, dois advogados da gigante no País foram detidos por suposto não cumprimento do acordo. E a fundação em 2005 da SaferNet, uma das principais organizações brasileiras de combate à violação aos direitos humanos, está intimamente ligada ao combate de pornografia infantil no Orkut.

No entanto, o lado nocivo das redes sociais só se agravou na década em que o Orkut esteve ausente e trouxe novos problemas, como polarização, desinformação, extremismo político, ansiedade, cultura do cancelamento e problemas de saúde mental, especialmente em jovens. Três episódios marcantes do período são o caso Cambridge Analytica (2018), o 8 de janeiro em Brasília (2023) e as desculpas de Mark Zuckerberg em audiência no senado americano a pais de crianças que morreram por depressão e bullying originados no Instagram (2024).

Felix Ximenes, representante do Google Brasil em 2008, entrega documentos à CPI da pedofilia Foto: Ed Ferreira/AE

Assim, moderação de conteúdo virou o tema da década - e segue emperrado no Congresso. “O debate sobre moderação de conteúdo nas redes sociais já existia, mas não com a sofisticação que ele vai ganhar na segunda metade dos anos 2010, tanto que o Marco Civil da Internet não fala sobre padrões de moderação de conteúdo. Isso é uma questão que eu acho que aparece em especial nesses anos 10, mas numa segunda metade”, afirma Souza.

Futuro

É difícil prever como será a segunda década sem Orkut - talvez não fosse possível prever tudo o que aconteceu com as redes sociais na primeira década. Mas, o recente bloqueio do X no Brasil, que abriu caminho para que os públicos experimentassem outros espaços, pode oferecer uma pista - e, talvez, ele seja até meio parecido com o Orkut.

Com o iminente retorno do X, grupos que migraram para outras redes, especialmente o Bluesky, ponderam se devem voltar à antiga rede. É como se bolhas específicas tivessem se estabelecendo em plataformas específicas, um pouco como eram as comunidades do Orkut, que se organizavam por gosto e afinidade. Parte da experiência da última década, na qual bolhas diferentes compartilhavam o mesmo espaço digital, pode ter virado uma grande ressaca.

O caminho pode ser o nicho. “O futuro é redes mais fechadas, mais nichadas e com novos recursos que possibilitem o compartilhamento de conteúdos de maneiras mais restritas aos “melhores amigos”, driblando os riscos da cultura do cancelamento e dos julgamentos alheios”, afirma Inagaki.

É um caminho que também já pode ser visto no atual cenário de influenciadores (e seus seguidores). Ser grande em uma plataforma já não resulta gigantismo por osmose em outras. Você pode ter 10 milhões de seguidores no TikTok e 10 mil no Instagram.

Ainda é cedo para dizer se esse é o caminho, pois, em muitos casos, furar a bolha é o único caminho para o avanço da sociedade. As únicas certezas, porém, são a mudança e a necessidade de não aprofundar problemas novamente. “A experiência de estar numa rede social vai mudar e a gente vai ter diversas novas chances de não estragar”, diz Souza.

O que dizer da rede social que conhecemos tão bem e consideramos para caramba?

Há exatamente uma década, o Orkut silenciou para sempre - em 30 de setembro de 2014, o Google desativou definitivamente o serviço que alfabetizou o Brasil em redes sociais. Nesses 10 anos de ausência, serviços do tipo caíram de vez no gosto das pessoas - e as plataformas passaram por transformações profundas: os usuários ficaram mais passivos, enquanto o conteúdo passou a ser mais nocivo. E toda essa relação, claro, passou a ser empacotada com um nível maior de profissionalismo.

“Estar no Orkut dava trabalho. Você tinha que escrever muito. E você falava com muita gente por texto. Não era uma rede social preguiçosa”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). Parte do trabalho que o serviço demandava do usuário vinha de suas limitações: o Orkut era uma rede social onde o texto predominava e o acesso acontecia quase sempre por PCs. Ou seja, para participar e gerar conteúdo, o usuário tinha que estar disposto.

Redes sociais mudaram durante a década em que o Orkut esteve ausente  Foto: Ricardo Lima/Estadão

Era também uma limitação da época: o Orkut nasceu quando a banda larga mal havia começado a se espalhar pelo Brasil e smartphones não existiam. A rede atingiu seu auge em 2008, um ano após o lançamento do primeiro iPhone - era uma época que redes de comunicação móvel eram um plano para o futuro. E quando esse futuro chegou, o Orkut falhou: o serviço morreu sem nunca ter tido um aplicativo. O Facebook, por exemplo, ganhou seu primeiro app já em 2008 e era exclusivo do celular da Apple.

A capacidade de acesso se aprofundou também com a expansão das redes móveis - o 5G já chega a 60% da população brasileira. Já o 4G só foi lançado comercialmente em 2012, quando o Orkut já dava severos sinais de decadência - no ano anterior, a rede foi ultrapassada pelo Facebook como a rede social mais acessada do Brasil. Na década em que esteve ausente, o Orkut perdeu a oportunidade de conexão permanente. A segunda transformação é que as conexões velozes abriram as portas para conteúdos que vão além do texto, principalmente vídeos.

Ainda mais importante: em 2009, o Facebook embutiu em seu serviço o algoritmo de distribuição de conteúdo. Isso mudou a história da internet para sempre. Em vez de receber conteúdo de forma cronológica, os usuários passaram a receber posts que mais poderiam agradar ou gerar reações. Ironicamente, o Orkut ficou parado neste momento fundamental de mudança e deixou de ver um modelo que se estabeleceu na década seguinte. O tripé que alimenta as redes sociais atuais (celular, conexão móvel e algoritmos) demoliu o modelo do Orkut, e criou hordas de usuários que não precisam mais “trabalhar” para encontrar online aquilo que desejam. Ficamos mais passivos.

“Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão”, afirma Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais. De fato, a ideia de que redes sociais “morreram” e deram lugar a plataformas de mídia é forte entre especialistas da área.

Orkut nunca teve app para celular Foto: Rafael Henrique - stock.adobe.com

Recentemente, usuários que não experimentaram a sensação de navegar por uma rede social livre de algoritmos se espantaram com a ausência de mediação. Com o bloqueio do X no Brasil, parte dos usuários da rede de Elon Musk migrou para o Bluesky - e se chocou com o suposto silêncio da rede, que adota organização cronológica de posts como era na internet orkutiana.

“Houve uma trend recente no Bluesky de pessoas ‘falando com o algoritmo’ numa tentativa de conectá-las a coisas de seu interesse. Isso é caricato e simbólico. Você não aciona um algoritmo como se estivesse falando com a Alexa”, diz Souza. Realmente, é a antítese da web 2.0, da qual o Orkut foi um grande símbolo: não existe mais construção contínua do espaço digital por parte de sua comunidade. Hoje, o algoritmo faz tudo por você.

Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão

Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais

Profissionalização

A mudança de modelo foi determinante para a profissionalização não só das plataformas, mas também de seus usuários. “A rede social virou plataforma de entretenimento. É lugar para consumir fotos, vídeos e textos de pessoas que não são necessariamente próximas. São pessoas que você admira e em quem se inspira. É a ascensão das redes sociais como local por excelência dos influenciadores”, explica Souza.

Dessa maneira, “influenciador” virou profissão de desejo de muitos brasileiros. Segundo pesquisa da Nielsen, o País tem 10,5 milhões de influenciadores, com perfis tendo a partir de 1 mil seguidores. Esse número corresponde a um terço de toda a base de usuários do Orkut, quando ele perdeu o posto de rede social mais popular do Brasil.

Lan houses, como essa na favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, em 2009, eram pontos comuns de acesso ao Orkut  Foto: Marcos De Paula/AE

Para muita gente se comportar profissionalmente desde o primeiro momento em que se pisa numa rede social se tornou peça importante do jogo - é um contraste principalmente aos primeiros anos de Orkut, quando viver de internet parecia um sonho para poucos.

“Entra muita gente nova nas redes já copiando outras pessoas. Copiam a estratégia e o conteúdo inteiros. Muitas vezes, eles nem sabem que copiar pega mal. A pessoa já chega com a ideia de que vai virar influenciador e vai passar por cima de todo mundo. Ela só está sedenta por tirar algum ganho daquela presença ali nas redes”, diz Manuela.

“O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações

Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais

Faz mal

Embora o Orkut represente uma certa inocência na internet, ele não estava livre de problemas sérios. A companhia era inundada de conteúdo ilegal e criminoso.

“Os problemas jurídicos causados pelo compartilhamento ilegal de obras com copyright e conteúdos pornográficos, assim como a criação de comunidades com conteúdos racistas e troca de informações entre pedófilos, homofóbicos e outros tipos de criminosos, sem que houvesse um modo eficaz de coibir essas comunicações dentro da interface do Orkut, mostrou o lado danoso de uma rede social sem uma política eficaz de moderação de conteúdos e proliferação e perfis anônimos ou fakes”, lembra Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

Em 2008, como resultado da ‘CPI da pedofilia’, o Google fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para a remoção e fornecimento de informações sobre contas que promoviam pornografia infantil. Em 2014, dois advogados da gigante no País foram detidos por suposto não cumprimento do acordo. E a fundação em 2005 da SaferNet, uma das principais organizações brasileiras de combate à violação aos direitos humanos, está intimamente ligada ao combate de pornografia infantil no Orkut.

No entanto, o lado nocivo das redes sociais só se agravou na década em que o Orkut esteve ausente e trouxe novos problemas, como polarização, desinformação, extremismo político, ansiedade, cultura do cancelamento e problemas de saúde mental, especialmente em jovens. Três episódios marcantes do período são o caso Cambridge Analytica (2018), o 8 de janeiro em Brasília (2023) e as desculpas de Mark Zuckerberg em audiência no senado americano a pais de crianças que morreram por depressão e bullying originados no Instagram (2024).

Felix Ximenes, representante do Google Brasil em 2008, entrega documentos à CPI da pedofilia Foto: Ed Ferreira/AE

Assim, moderação de conteúdo virou o tema da década - e segue emperrado no Congresso. “O debate sobre moderação de conteúdo nas redes sociais já existia, mas não com a sofisticação que ele vai ganhar na segunda metade dos anos 2010, tanto que o Marco Civil da Internet não fala sobre padrões de moderação de conteúdo. Isso é uma questão que eu acho que aparece em especial nesses anos 10, mas numa segunda metade”, afirma Souza.

Futuro

É difícil prever como será a segunda década sem Orkut - talvez não fosse possível prever tudo o que aconteceu com as redes sociais na primeira década. Mas, o recente bloqueio do X no Brasil, que abriu caminho para que os públicos experimentassem outros espaços, pode oferecer uma pista - e, talvez, ele seja até meio parecido com o Orkut.

Com o iminente retorno do X, grupos que migraram para outras redes, especialmente o Bluesky, ponderam se devem voltar à antiga rede. É como se bolhas específicas tivessem se estabelecendo em plataformas específicas, um pouco como eram as comunidades do Orkut, que se organizavam por gosto e afinidade. Parte da experiência da última década, na qual bolhas diferentes compartilhavam o mesmo espaço digital, pode ter virado uma grande ressaca.

O caminho pode ser o nicho. “O futuro é redes mais fechadas, mais nichadas e com novos recursos que possibilitem o compartilhamento de conteúdos de maneiras mais restritas aos “melhores amigos”, driblando os riscos da cultura do cancelamento e dos julgamentos alheios”, afirma Inagaki.

É um caminho que também já pode ser visto no atual cenário de influenciadores (e seus seguidores). Ser grande em uma plataforma já não resulta gigantismo por osmose em outras. Você pode ter 10 milhões de seguidores no TikTok e 10 mil no Instagram.

Ainda é cedo para dizer se esse é o caminho, pois, em muitos casos, furar a bolha é o único caminho para o avanço da sociedade. As únicas certezas, porém, são a mudança e a necessidade de não aprofundar problemas novamente. “A experiência de estar numa rede social vai mudar e a gente vai ter diversas novas chances de não estragar”, diz Souza.

O que dizer da rede social que conhecemos tão bem e consideramos para caramba?

Há exatamente uma década, o Orkut silenciou para sempre - em 30 de setembro de 2014, o Google desativou definitivamente o serviço que alfabetizou o Brasil em redes sociais. Nesses 10 anos de ausência, serviços do tipo caíram de vez no gosto das pessoas - e as plataformas passaram por transformações profundas: os usuários ficaram mais passivos, enquanto o conteúdo passou a ser mais nocivo. E toda essa relação, claro, passou a ser empacotada com um nível maior de profissionalismo.

“Estar no Orkut dava trabalho. Você tinha que escrever muito. E você falava com muita gente por texto. Não era uma rede social preguiçosa”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). Parte do trabalho que o serviço demandava do usuário vinha de suas limitações: o Orkut era uma rede social onde o texto predominava e o acesso acontecia quase sempre por PCs. Ou seja, para participar e gerar conteúdo, o usuário tinha que estar disposto.

Redes sociais mudaram durante a década em que o Orkut esteve ausente  Foto: Ricardo Lima/Estadão

Era também uma limitação da época: o Orkut nasceu quando a banda larga mal havia começado a se espalhar pelo Brasil e smartphones não existiam. A rede atingiu seu auge em 2008, um ano após o lançamento do primeiro iPhone - era uma época que redes de comunicação móvel eram um plano para o futuro. E quando esse futuro chegou, o Orkut falhou: o serviço morreu sem nunca ter tido um aplicativo. O Facebook, por exemplo, ganhou seu primeiro app já em 2008 e era exclusivo do celular da Apple.

A capacidade de acesso se aprofundou também com a expansão das redes móveis - o 5G já chega a 60% da população brasileira. Já o 4G só foi lançado comercialmente em 2012, quando o Orkut já dava severos sinais de decadência - no ano anterior, a rede foi ultrapassada pelo Facebook como a rede social mais acessada do Brasil. Na década em que esteve ausente, o Orkut perdeu a oportunidade de conexão permanente. A segunda transformação é que as conexões velozes abriram as portas para conteúdos que vão além do texto, principalmente vídeos.

Ainda mais importante: em 2009, o Facebook embutiu em seu serviço o algoritmo de distribuição de conteúdo. Isso mudou a história da internet para sempre. Em vez de receber conteúdo de forma cronológica, os usuários passaram a receber posts que mais poderiam agradar ou gerar reações. Ironicamente, o Orkut ficou parado neste momento fundamental de mudança e deixou de ver um modelo que se estabeleceu na década seguinte. O tripé que alimenta as redes sociais atuais (celular, conexão móvel e algoritmos) demoliu o modelo do Orkut, e criou hordas de usuários que não precisam mais “trabalhar” para encontrar online aquilo que desejam. Ficamos mais passivos.

“Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão”, afirma Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais. De fato, a ideia de que redes sociais “morreram” e deram lugar a plataformas de mídia é forte entre especialistas da área.

Orkut nunca teve app para celular Foto: Rafael Henrique - stock.adobe.com

Recentemente, usuários que não experimentaram a sensação de navegar por uma rede social livre de algoritmos se espantaram com a ausência de mediação. Com o bloqueio do X no Brasil, parte dos usuários da rede de Elon Musk migrou para o Bluesky - e se chocou com o suposto silêncio da rede, que adota organização cronológica de posts como era na internet orkutiana.

“Houve uma trend recente no Bluesky de pessoas ‘falando com o algoritmo’ numa tentativa de conectá-las a coisas de seu interesse. Isso é caricato e simbólico. Você não aciona um algoritmo como se estivesse falando com a Alexa”, diz Souza. Realmente, é a antítese da web 2.0, da qual o Orkut foi um grande símbolo: não existe mais construção contínua do espaço digital por parte de sua comunidade. Hoje, o algoritmo faz tudo por você.

Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão

Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais

Profissionalização

A mudança de modelo foi determinante para a profissionalização não só das plataformas, mas também de seus usuários. “A rede social virou plataforma de entretenimento. É lugar para consumir fotos, vídeos e textos de pessoas que não são necessariamente próximas. São pessoas que você admira e em quem se inspira. É a ascensão das redes sociais como local por excelência dos influenciadores”, explica Souza.

Dessa maneira, “influenciador” virou profissão de desejo de muitos brasileiros. Segundo pesquisa da Nielsen, o País tem 10,5 milhões de influenciadores, com perfis tendo a partir de 1 mil seguidores. Esse número corresponde a um terço de toda a base de usuários do Orkut, quando ele perdeu o posto de rede social mais popular do Brasil.

Lan houses, como essa na favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, em 2009, eram pontos comuns de acesso ao Orkut  Foto: Marcos De Paula/AE

Para muita gente se comportar profissionalmente desde o primeiro momento em que se pisa numa rede social se tornou peça importante do jogo - é um contraste principalmente aos primeiros anos de Orkut, quando viver de internet parecia um sonho para poucos.

“Entra muita gente nova nas redes já copiando outras pessoas. Copiam a estratégia e o conteúdo inteiros. Muitas vezes, eles nem sabem que copiar pega mal. A pessoa já chega com a ideia de que vai virar influenciador e vai passar por cima de todo mundo. Ela só está sedenta por tirar algum ganho daquela presença ali nas redes”, diz Manuela.

“O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações

Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais

Faz mal

Embora o Orkut represente uma certa inocência na internet, ele não estava livre de problemas sérios. A companhia era inundada de conteúdo ilegal e criminoso.

“Os problemas jurídicos causados pelo compartilhamento ilegal de obras com copyright e conteúdos pornográficos, assim como a criação de comunidades com conteúdos racistas e troca de informações entre pedófilos, homofóbicos e outros tipos de criminosos, sem que houvesse um modo eficaz de coibir essas comunicações dentro da interface do Orkut, mostrou o lado danoso de uma rede social sem uma política eficaz de moderação de conteúdos e proliferação e perfis anônimos ou fakes”, lembra Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

Em 2008, como resultado da ‘CPI da pedofilia’, o Google fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para a remoção e fornecimento de informações sobre contas que promoviam pornografia infantil. Em 2014, dois advogados da gigante no País foram detidos por suposto não cumprimento do acordo. E a fundação em 2005 da SaferNet, uma das principais organizações brasileiras de combate à violação aos direitos humanos, está intimamente ligada ao combate de pornografia infantil no Orkut.

No entanto, o lado nocivo das redes sociais só se agravou na década em que o Orkut esteve ausente e trouxe novos problemas, como polarização, desinformação, extremismo político, ansiedade, cultura do cancelamento e problemas de saúde mental, especialmente em jovens. Três episódios marcantes do período são o caso Cambridge Analytica (2018), o 8 de janeiro em Brasília (2023) e as desculpas de Mark Zuckerberg em audiência no senado americano a pais de crianças que morreram por depressão e bullying originados no Instagram (2024).

Felix Ximenes, representante do Google Brasil em 2008, entrega documentos à CPI da pedofilia Foto: Ed Ferreira/AE

Assim, moderação de conteúdo virou o tema da década - e segue emperrado no Congresso. “O debate sobre moderação de conteúdo nas redes sociais já existia, mas não com a sofisticação que ele vai ganhar na segunda metade dos anos 2010, tanto que o Marco Civil da Internet não fala sobre padrões de moderação de conteúdo. Isso é uma questão que eu acho que aparece em especial nesses anos 10, mas numa segunda metade”, afirma Souza.

Futuro

É difícil prever como será a segunda década sem Orkut - talvez não fosse possível prever tudo o que aconteceu com as redes sociais na primeira década. Mas, o recente bloqueio do X no Brasil, que abriu caminho para que os públicos experimentassem outros espaços, pode oferecer uma pista - e, talvez, ele seja até meio parecido com o Orkut.

Com o iminente retorno do X, grupos que migraram para outras redes, especialmente o Bluesky, ponderam se devem voltar à antiga rede. É como se bolhas específicas tivessem se estabelecendo em plataformas específicas, um pouco como eram as comunidades do Orkut, que se organizavam por gosto e afinidade. Parte da experiência da última década, na qual bolhas diferentes compartilhavam o mesmo espaço digital, pode ter virado uma grande ressaca.

O caminho pode ser o nicho. “O futuro é redes mais fechadas, mais nichadas e com novos recursos que possibilitem o compartilhamento de conteúdos de maneiras mais restritas aos “melhores amigos”, driblando os riscos da cultura do cancelamento e dos julgamentos alheios”, afirma Inagaki.

É um caminho que também já pode ser visto no atual cenário de influenciadores (e seus seguidores). Ser grande em uma plataforma já não resulta gigantismo por osmose em outras. Você pode ter 10 milhões de seguidores no TikTok e 10 mil no Instagram.

Ainda é cedo para dizer se esse é o caminho, pois, em muitos casos, furar a bolha é o único caminho para o avanço da sociedade. As únicas certezas, porém, são a mudança e a necessidade de não aprofundar problemas novamente. “A experiência de estar numa rede social vai mudar e a gente vai ter diversas novas chances de não estragar”, diz Souza.

O que dizer da rede social que conhecemos tão bem e consideramos para caramba?

Há exatamente uma década, o Orkut silenciou para sempre - em 30 de setembro de 2014, o Google desativou definitivamente o serviço que alfabetizou o Brasil em redes sociais. Nesses 10 anos de ausência, serviços do tipo caíram de vez no gosto das pessoas - e as plataformas passaram por transformações profundas: os usuários ficaram mais passivos, enquanto o conteúdo passou a ser mais nocivo. E toda essa relação, claro, passou a ser empacotada com um nível maior de profissionalismo.

“Estar no Orkut dava trabalho. Você tinha que escrever muito. E você falava com muita gente por texto. Não era uma rede social preguiçosa”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). Parte do trabalho que o serviço demandava do usuário vinha de suas limitações: o Orkut era uma rede social onde o texto predominava e o acesso acontecia quase sempre por PCs. Ou seja, para participar e gerar conteúdo, o usuário tinha que estar disposto.

Redes sociais mudaram durante a década em que o Orkut esteve ausente  Foto: Ricardo Lima/Estadão

Era também uma limitação da época: o Orkut nasceu quando a banda larga mal havia começado a se espalhar pelo Brasil e smartphones não existiam. A rede atingiu seu auge em 2008, um ano após o lançamento do primeiro iPhone - era uma época que redes de comunicação móvel eram um plano para o futuro. E quando esse futuro chegou, o Orkut falhou: o serviço morreu sem nunca ter tido um aplicativo. O Facebook, por exemplo, ganhou seu primeiro app já em 2008 e era exclusivo do celular da Apple.

A capacidade de acesso se aprofundou também com a expansão das redes móveis - o 5G já chega a 60% da população brasileira. Já o 4G só foi lançado comercialmente em 2012, quando o Orkut já dava severos sinais de decadência - no ano anterior, a rede foi ultrapassada pelo Facebook como a rede social mais acessada do Brasil. Na década em que esteve ausente, o Orkut perdeu a oportunidade de conexão permanente. A segunda transformação é que as conexões velozes abriram as portas para conteúdos que vão além do texto, principalmente vídeos.

Ainda mais importante: em 2009, o Facebook embutiu em seu serviço o algoritmo de distribuição de conteúdo. Isso mudou a história da internet para sempre. Em vez de receber conteúdo de forma cronológica, os usuários passaram a receber posts que mais poderiam agradar ou gerar reações. Ironicamente, o Orkut ficou parado neste momento fundamental de mudança e deixou de ver um modelo que se estabeleceu na década seguinte. O tripé que alimenta as redes sociais atuais (celular, conexão móvel e algoritmos) demoliu o modelo do Orkut, e criou hordas de usuários que não precisam mais “trabalhar” para encontrar online aquilo que desejam. Ficamos mais passivos.

“Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão”, afirma Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais. De fato, a ideia de que redes sociais “morreram” e deram lugar a plataformas de mídia é forte entre especialistas da área.

Orkut nunca teve app para celular Foto: Rafael Henrique - stock.adobe.com

Recentemente, usuários que não experimentaram a sensação de navegar por uma rede social livre de algoritmos se espantaram com a ausência de mediação. Com o bloqueio do X no Brasil, parte dos usuários da rede de Elon Musk migrou para o Bluesky - e se chocou com o suposto silêncio da rede, que adota organização cronológica de posts como era na internet orkutiana.

“Houve uma trend recente no Bluesky de pessoas ‘falando com o algoritmo’ numa tentativa de conectá-las a coisas de seu interesse. Isso é caricato e simbólico. Você não aciona um algoritmo como se estivesse falando com a Alexa”, diz Souza. Realmente, é a antítese da web 2.0, da qual o Orkut foi um grande símbolo: não existe mais construção contínua do espaço digital por parte de sua comunidade. Hoje, o algoritmo faz tudo por você.

Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão

Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais

Profissionalização

A mudança de modelo foi determinante para a profissionalização não só das plataformas, mas também de seus usuários. “A rede social virou plataforma de entretenimento. É lugar para consumir fotos, vídeos e textos de pessoas que não são necessariamente próximas. São pessoas que você admira e em quem se inspira. É a ascensão das redes sociais como local por excelência dos influenciadores”, explica Souza.

Dessa maneira, “influenciador” virou profissão de desejo de muitos brasileiros. Segundo pesquisa da Nielsen, o País tem 10,5 milhões de influenciadores, com perfis tendo a partir de 1 mil seguidores. Esse número corresponde a um terço de toda a base de usuários do Orkut, quando ele perdeu o posto de rede social mais popular do Brasil.

Lan houses, como essa na favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, em 2009, eram pontos comuns de acesso ao Orkut  Foto: Marcos De Paula/AE

Para muita gente se comportar profissionalmente desde o primeiro momento em que se pisa numa rede social se tornou peça importante do jogo - é um contraste principalmente aos primeiros anos de Orkut, quando viver de internet parecia um sonho para poucos.

“Entra muita gente nova nas redes já copiando outras pessoas. Copiam a estratégia e o conteúdo inteiros. Muitas vezes, eles nem sabem que copiar pega mal. A pessoa já chega com a ideia de que vai virar influenciador e vai passar por cima de todo mundo. Ela só está sedenta por tirar algum ganho daquela presença ali nas redes”, diz Manuela.

“O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações

Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais

Faz mal

Embora o Orkut represente uma certa inocência na internet, ele não estava livre de problemas sérios. A companhia era inundada de conteúdo ilegal e criminoso.

“Os problemas jurídicos causados pelo compartilhamento ilegal de obras com copyright e conteúdos pornográficos, assim como a criação de comunidades com conteúdos racistas e troca de informações entre pedófilos, homofóbicos e outros tipos de criminosos, sem que houvesse um modo eficaz de coibir essas comunicações dentro da interface do Orkut, mostrou o lado danoso de uma rede social sem uma política eficaz de moderação de conteúdos e proliferação e perfis anônimos ou fakes”, lembra Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

Em 2008, como resultado da ‘CPI da pedofilia’, o Google fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para a remoção e fornecimento de informações sobre contas que promoviam pornografia infantil. Em 2014, dois advogados da gigante no País foram detidos por suposto não cumprimento do acordo. E a fundação em 2005 da SaferNet, uma das principais organizações brasileiras de combate à violação aos direitos humanos, está intimamente ligada ao combate de pornografia infantil no Orkut.

No entanto, o lado nocivo das redes sociais só se agravou na década em que o Orkut esteve ausente e trouxe novos problemas, como polarização, desinformação, extremismo político, ansiedade, cultura do cancelamento e problemas de saúde mental, especialmente em jovens. Três episódios marcantes do período são o caso Cambridge Analytica (2018), o 8 de janeiro em Brasília (2023) e as desculpas de Mark Zuckerberg em audiência no senado americano a pais de crianças que morreram por depressão e bullying originados no Instagram (2024).

Felix Ximenes, representante do Google Brasil em 2008, entrega documentos à CPI da pedofilia Foto: Ed Ferreira/AE

Assim, moderação de conteúdo virou o tema da década - e segue emperrado no Congresso. “O debate sobre moderação de conteúdo nas redes sociais já existia, mas não com a sofisticação que ele vai ganhar na segunda metade dos anos 2010, tanto que o Marco Civil da Internet não fala sobre padrões de moderação de conteúdo. Isso é uma questão que eu acho que aparece em especial nesses anos 10, mas numa segunda metade”, afirma Souza.

Futuro

É difícil prever como será a segunda década sem Orkut - talvez não fosse possível prever tudo o que aconteceu com as redes sociais na primeira década. Mas, o recente bloqueio do X no Brasil, que abriu caminho para que os públicos experimentassem outros espaços, pode oferecer uma pista - e, talvez, ele seja até meio parecido com o Orkut.

Com o iminente retorno do X, grupos que migraram para outras redes, especialmente o Bluesky, ponderam se devem voltar à antiga rede. É como se bolhas específicas tivessem se estabelecendo em plataformas específicas, um pouco como eram as comunidades do Orkut, que se organizavam por gosto e afinidade. Parte da experiência da última década, na qual bolhas diferentes compartilhavam o mesmo espaço digital, pode ter virado uma grande ressaca.

O caminho pode ser o nicho. “O futuro é redes mais fechadas, mais nichadas e com novos recursos que possibilitem o compartilhamento de conteúdos de maneiras mais restritas aos “melhores amigos”, driblando os riscos da cultura do cancelamento e dos julgamentos alheios”, afirma Inagaki.

É um caminho que também já pode ser visto no atual cenário de influenciadores (e seus seguidores). Ser grande em uma plataforma já não resulta gigantismo por osmose em outras. Você pode ter 10 milhões de seguidores no TikTok e 10 mil no Instagram.

Ainda é cedo para dizer se esse é o caminho, pois, em muitos casos, furar a bolha é o único caminho para o avanço da sociedade. As únicas certezas, porém, são a mudança e a necessidade de não aprofundar problemas novamente. “A experiência de estar numa rede social vai mudar e a gente vai ter diversas novas chances de não estragar”, diz Souza.

O que dizer da rede social que conhecemos tão bem e consideramos para caramba?

Há exatamente uma década, o Orkut silenciou para sempre - em 30 de setembro de 2014, o Google desativou definitivamente o serviço que alfabetizou o Brasil em redes sociais. Nesses 10 anos de ausência, serviços do tipo caíram de vez no gosto das pessoas - e as plataformas passaram por transformações profundas: os usuários ficaram mais passivos, enquanto o conteúdo passou a ser mais nocivo. E toda essa relação, claro, passou a ser empacotada com um nível maior de profissionalismo.

“Estar no Orkut dava trabalho. Você tinha que escrever muito. E você falava com muita gente por texto. Não era uma rede social preguiçosa”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). Parte do trabalho que o serviço demandava do usuário vinha de suas limitações: o Orkut era uma rede social onde o texto predominava e o acesso acontecia quase sempre por PCs. Ou seja, para participar e gerar conteúdo, o usuário tinha que estar disposto.

Redes sociais mudaram durante a década em que o Orkut esteve ausente  Foto: Ricardo Lima/Estadão

Era também uma limitação da época: o Orkut nasceu quando a banda larga mal havia começado a se espalhar pelo Brasil e smartphones não existiam. A rede atingiu seu auge em 2008, um ano após o lançamento do primeiro iPhone - era uma época que redes de comunicação móvel eram um plano para o futuro. E quando esse futuro chegou, o Orkut falhou: o serviço morreu sem nunca ter tido um aplicativo. O Facebook, por exemplo, ganhou seu primeiro app já em 2008 e era exclusivo do celular da Apple.

A capacidade de acesso se aprofundou também com a expansão das redes móveis - o 5G já chega a 60% da população brasileira. Já o 4G só foi lançado comercialmente em 2012, quando o Orkut já dava severos sinais de decadência - no ano anterior, a rede foi ultrapassada pelo Facebook como a rede social mais acessada do Brasil. Na década em que esteve ausente, o Orkut perdeu a oportunidade de conexão permanente. A segunda transformação é que as conexões velozes abriram as portas para conteúdos que vão além do texto, principalmente vídeos.

Ainda mais importante: em 2009, o Facebook embutiu em seu serviço o algoritmo de distribuição de conteúdo. Isso mudou a história da internet para sempre. Em vez de receber conteúdo de forma cronológica, os usuários passaram a receber posts que mais poderiam agradar ou gerar reações. Ironicamente, o Orkut ficou parado neste momento fundamental de mudança e deixou de ver um modelo que se estabeleceu na década seguinte. O tripé que alimenta as redes sociais atuais (celular, conexão móvel e algoritmos) demoliu o modelo do Orkut, e criou hordas de usuários que não precisam mais “trabalhar” para encontrar online aquilo que desejam. Ficamos mais passivos.

“Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão”, afirma Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais. De fato, a ideia de que redes sociais “morreram” e deram lugar a plataformas de mídia é forte entre especialistas da área.

Orkut nunca teve app para celular Foto: Rafael Henrique - stock.adobe.com

Recentemente, usuários que não experimentaram a sensação de navegar por uma rede social livre de algoritmos se espantaram com a ausência de mediação. Com o bloqueio do X no Brasil, parte dos usuários da rede de Elon Musk migrou para o Bluesky - e se chocou com o suposto silêncio da rede, que adota organização cronológica de posts como era na internet orkutiana.

“Houve uma trend recente no Bluesky de pessoas ‘falando com o algoritmo’ numa tentativa de conectá-las a coisas de seu interesse. Isso é caricato e simbólico. Você não aciona um algoritmo como se estivesse falando com a Alexa”, diz Souza. Realmente, é a antítese da web 2.0, da qual o Orkut foi um grande símbolo: não existe mais construção contínua do espaço digital por parte de sua comunidade. Hoje, o algoritmo faz tudo por você.

Com os algoritmos tão fortes, você fica sentado e espera o serviço trazer alguma coisa. E você reage e comenta. Nem parece rede social. O TikTok é uma plataforma de transmissão

Manuela Barem, jornalista e especialista em redes sociais

Profissionalização

A mudança de modelo foi determinante para a profissionalização não só das plataformas, mas também de seus usuários. “A rede social virou plataforma de entretenimento. É lugar para consumir fotos, vídeos e textos de pessoas que não são necessariamente próximas. São pessoas que você admira e em quem se inspira. É a ascensão das redes sociais como local por excelência dos influenciadores”, explica Souza.

Dessa maneira, “influenciador” virou profissão de desejo de muitos brasileiros. Segundo pesquisa da Nielsen, o País tem 10,5 milhões de influenciadores, com perfis tendo a partir de 1 mil seguidores. Esse número corresponde a um terço de toda a base de usuários do Orkut, quando ele perdeu o posto de rede social mais popular do Brasil.

Lan houses, como essa na favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, em 2009, eram pontos comuns de acesso ao Orkut  Foto: Marcos De Paula/AE

Para muita gente se comportar profissionalmente desde o primeiro momento em que se pisa numa rede social se tornou peça importante do jogo - é um contraste principalmente aos primeiros anos de Orkut, quando viver de internet parecia um sonho para poucos.

“Entra muita gente nova nas redes já copiando outras pessoas. Copiam a estratégia e o conteúdo inteiros. Muitas vezes, eles nem sabem que copiar pega mal. A pessoa já chega com a ideia de que vai virar influenciador e vai passar por cima de todo mundo. Ela só está sedenta por tirar algum ganho daquela presença ali nas redes”, diz Manuela.

“O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

O fim do Orkut também representou o fim da inocência de toda uma era antes da monetização de conteúdos e o advento dos algoritmos ditando o alcance de publicações

Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais

Faz mal

Embora o Orkut represente uma certa inocência na internet, ele não estava livre de problemas sérios. A companhia era inundada de conteúdo ilegal e criminoso.

“Os problemas jurídicos causados pelo compartilhamento ilegal de obras com copyright e conteúdos pornográficos, assim como a criação de comunidades com conteúdos racistas e troca de informações entre pedófilos, homofóbicos e outros tipos de criminosos, sem que houvesse um modo eficaz de coibir essas comunicações dentro da interface do Orkut, mostrou o lado danoso de uma rede social sem uma política eficaz de moderação de conteúdos e proliferação e perfis anônimos ou fakes”, lembra Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais.

Em 2008, como resultado da ‘CPI da pedofilia’, o Google fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para a remoção e fornecimento de informações sobre contas que promoviam pornografia infantil. Em 2014, dois advogados da gigante no País foram detidos por suposto não cumprimento do acordo. E a fundação em 2005 da SaferNet, uma das principais organizações brasileiras de combate à violação aos direitos humanos, está intimamente ligada ao combate de pornografia infantil no Orkut.

No entanto, o lado nocivo das redes sociais só se agravou na década em que o Orkut esteve ausente e trouxe novos problemas, como polarização, desinformação, extremismo político, ansiedade, cultura do cancelamento e problemas de saúde mental, especialmente em jovens. Três episódios marcantes do período são o caso Cambridge Analytica (2018), o 8 de janeiro em Brasília (2023) e as desculpas de Mark Zuckerberg em audiência no senado americano a pais de crianças que morreram por depressão e bullying originados no Instagram (2024).

Felix Ximenes, representante do Google Brasil em 2008, entrega documentos à CPI da pedofilia Foto: Ed Ferreira/AE

Assim, moderação de conteúdo virou o tema da década - e segue emperrado no Congresso. “O debate sobre moderação de conteúdo nas redes sociais já existia, mas não com a sofisticação que ele vai ganhar na segunda metade dos anos 2010, tanto que o Marco Civil da Internet não fala sobre padrões de moderação de conteúdo. Isso é uma questão que eu acho que aparece em especial nesses anos 10, mas numa segunda metade”, afirma Souza.

Futuro

É difícil prever como será a segunda década sem Orkut - talvez não fosse possível prever tudo o que aconteceu com as redes sociais na primeira década. Mas, o recente bloqueio do X no Brasil, que abriu caminho para que os públicos experimentassem outros espaços, pode oferecer uma pista - e, talvez, ele seja até meio parecido com o Orkut.

Com o iminente retorno do X, grupos que migraram para outras redes, especialmente o Bluesky, ponderam se devem voltar à antiga rede. É como se bolhas específicas tivessem se estabelecendo em plataformas específicas, um pouco como eram as comunidades do Orkut, que se organizavam por gosto e afinidade. Parte da experiência da última década, na qual bolhas diferentes compartilhavam o mesmo espaço digital, pode ter virado uma grande ressaca.

O caminho pode ser o nicho. “O futuro é redes mais fechadas, mais nichadas e com novos recursos que possibilitem o compartilhamento de conteúdos de maneiras mais restritas aos “melhores amigos”, driblando os riscos da cultura do cancelamento e dos julgamentos alheios”, afirma Inagaki.

É um caminho que também já pode ser visto no atual cenário de influenciadores (e seus seguidores). Ser grande em uma plataforma já não resulta gigantismo por osmose em outras. Você pode ter 10 milhões de seguidores no TikTok e 10 mil no Instagram.

Ainda é cedo para dizer se esse é o caminho, pois, em muitos casos, furar a bolha é o único caminho para o avanço da sociedade. As únicas certezas, porém, são a mudança e a necessidade de não aprofundar problemas novamente. “A experiência de estar numa rede social vai mudar e a gente vai ter diversas novas chances de não estragar”, diz Souza.

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