Não é todo dia que um artista consegue vender sua obra por valores superiores aos já atribuídos a trabalhos de Frida Kahlo e Salvador Dalí. No começo do mês, o designer gráfico americano Mike Winkelmann, conhecido como Beeple, conseguiu a proeza ao atingir US$ 69 milhões em uma colagem leiloada pela tradicional casa de leilões Christie’s. Tem um detalhe: a obra não existe no mundo real. Ela é um arquivo do tipo JPEG, o mais comum para imagens digitais. Por trás da cifra assombrosa está o NFT, uma tecnologia que promete mudar a percepção de propriedade e comercialização de bens digitais.
É difícil imaginar como um arquivo, que pode ser replicado infinitas vezes, tenha o status de obra de museus, pois o que caracteriza peças do tipo é a aura de serem únicas. Muitas vezes, o que garante a originalidade dessas obras são certificados de autenticidade. O NFT (sigla para “token não fungível”) funciona da mesma maneira: é um registro de que uma peça é única e tem dono. Ou seja, quem compra uma arte digital via NFT não está levando um arquivo que pode ser submetido com facilidade aos comandos de copiar e colar — está levando um certificado único, que não pode ser substituído.
Os certificados de NFT usam a estrutura da tecnologia de blockchain, que, assim como acontece com o bitcoin, oferece um registro seguro, transparente e descentralizado. Quando o sistema anota que uma pessoa é dona de um bem digital, é impossível apagar ou duplicar o registro — e todo o histórico de transações envolvendo esse NFT fica disponível.
Isso não significa que apenas o dono do NFT possa ter acesso ao arquivo JPEG — a obra recordista do Beeple poderá ser reproduzida em infinitos celulares e computadores. Da mesma forma que a Mona Lisa é reproduzida em diferentes formatos, as obras certificadas com NFT podem ganhar cópias. Porém, assim como o museu do Louvre é dono do certificado de autenticidade da obra mais famosa de Leonardo Da Vinci, apenas uma única pessoa é dona do NFT da obra de Beeple.
Em outras palavras, o NFT nada mais é do que um instrumento para colecionar bens digitais — supostamente oferece o mesmo gostinho de exclusividade e ostentação do que ter uma obra autografada pelo seu artista favorito. No mundo das artes digitais vendidas por NFT, existem até galerias e leilões especializados no segmento, que chegam a cobrar taxas dos artistas para expor.
Tuítes, música e arte
A venda de obras digitais é apenas parte do que o NFT é capaz de precificar. Qualquer tipo de arquivo digital pode ser vendido com a tecnologia, incluindo memes, tuítes e músicas.
O Nyan Cat, um meme de um gatinho colorido, foi vendido por cerca de US$ 590 mil em fevereiro, usando o NFT — outros memes do autor estão à venda. Jack Dorsey, fundador do Twitter, colocou à venda sua primeira postagem na rede social — o leilão termina neste domingo. A simples mensagem de 2006, em que Dorsey diz que está configurando seu Twitter, já recebeu um lance de US$ 2,5 milhões.
Outros nomes conhecidos por experimentar com tecnologia e formatos também já embarcaram: antes de anunciar o fim, a dupla francesa de música eletrônica Daft Punk, disponibilizou para celebridades obras digitais em NFT — uma delas já foi vendida por US$ 15 mil pela atriz Lindsay Lohan. Já o artista visual Banksy digitalizou e a vendeu por US$ 380 mil — a peça original foi queimada durante uma live, em um ato claramente marqueteiro.
De fato, não há limites para o que pode ser vendido por NFT. “Hoje estão vendendo qualquer coisa digital. As pessoas estão explorando até onde existe apetite de compra. No fim, pode ser qualquer coisa que alguém queira comprar e ter um certificado de que é dono”, explica Guilherme Nigri, que está produzindo um game onde os bens digitais vendidos na plataforma serão comercializados em NFT.
No Brasil, um dos primeiros artistas a vender NFTs foi o músico André Abujamra, eterno líder das bandas Os Mulheres Negras e Karnak. Ele fez uma parceria com o artista plástico Uno de Oliveira na animação “Coelhék”, que foi vendida por US$ 3.700 no começo de março (Abujamra ficou com 20%). O resultado animou o músico, que venderá NFTs de músicas que ele não colocará nas plataformas de streaming.
Coleção digital
Como explicar que alguém pague por um selo de exclusividade sobre algo que pode ser replicado? “A humanidade gosta de colecionar diversas coisas e faz isso há milhares de anos no mundo físico. Porém, até o blockchain surgir, não éramos capazes de ter coleções no mundo digital. Agora isso é possível e o NFT está explodindo em popularidade”, diz ao Estadão David Pakman, sócio da firma americana de venture capital Venrock.
Assim, o NFT é visto como um dos possíveis futuros da arte digital, que até então tinha dificuldade para ser monetizada. “Estamos na transição para o mundo online e já começamos a dar valor a algumas coisas, como serviços digitais: hoje, muita gente paga a assinatura Netflix porque reconhece valor. O NFT é o próximo passo para resolver o problema do artista digital”, diz Reinaldo Bianchi, professor do Centro Universitário da FEI.
Do lado dos artistas, vender por NFT pode ser uma nova fonte de receita. “Nunca fui tão ouvindo nas plataformas de streaming, mas a receita vem na forma de centavos”, diz Abujamra. “Com o único NFT vendido, ganhei um valor que levaria muito tempo para acumular nos serviços de streaming. Todo artista deveria estudar o NFT”, diz.
Do lado de quem é fã, o NFT permite uma forma de dar apoio por uma nova via. “Em meio à pandemia, os artistas precisam ter uma maneira de ganhar dinheiro. Comprar um NFT é uma forma de reconhecimento e de apoio ao artista”, afirma Bianchi. “É também por esse motivo que muitas pessoas compram artes normalmente no mundo real”.
Para um outro grupo, o NFT é uma oportunidade de investimento. Ou seja, negocia-se NFTs na expectativa de que determinado artista ou obra se valorize no futuro. Isso também ajuda a explicar por que alguém teria interesse em pagar uma fortuna pelo primeiro tuíte de Jack Dorsey. Imagine ter nas mãos o registro da primeira obra do Banksy da nova geração?
Para quem planeja entrar nesse mercado com expectativas de lucros nas mais variadas frentes possíveis, os especialistas lembram que o NFT não garante o direito autoral da obra em questão — embora ainda existam muitas questões a serem debatidas na área. A princípio, o NFT é apenas o registro de compra de um item colecionável, como acontece na aquisição de um quadro no mundo físico — a não ser que no contrato esteja especificado algum direito em relação à obra. Olhando para o mundo real: ter uma foto original de Sebastião Salgado não garante ao detentor o direito de vender livros e camisetas com aquela imagem.
“É um mercado que ainda está em fase de experimentação. Mas há uma boa razão para acreditar que colecionáveis digitais podem valer mais que colecionáveis físicos. Eles são mais líquidos: a venda é mais simples (qualquer um na internet pode participar) e a aquisição é instantânea, sem necessidade de logística”, explica Pakman. Pode parecer loucura, mas o NFT não altera uma premissa básica da arte: a beleza — e o valor — está nos olhos de quem vê.