Amor frustrado doendo no peito. Uma noite safada na cama. Muita bebida para consolar a primeira situação ou para turbinar a segunda. No meio disso, alguma tentativa de emplacar um casório ou ao menos um relacionamento estável. Os temas da música popular no Brasil variam pouco, é verdade, mas uma tendência têm se tornado mais presente: os artistas mais ouvidos do País amam tecnologia. Assim como seus fãs, eles curtem, consomem e vivem o meio digital.
Candidata a hit do Carnaval em 2019, Jenifer, do sertanejo Gabriel Diniz, talvez tenha escancarado a relação do mundo tecnológico com o cancioneiro nacional popular ao citar uma moça que o protagonista conheceu no Tinder. É só um exemplo mais recente: no ranking das 100 músicas mais tocadas nas rádios do País em 2018, feito pela empresa de medições Crowley, 18 mencionam tecnologia -- sejam dispositivos, tendências ou linguagem com origem nesse universo --, segundo levantamento feito pela reportagem.
Algumas delas são bem óbvias como TBT de Cleber e Cauan, quase um hino nerd do novo sertanejo. O título faz referência à hashtag #tbt, que, quando usada corretamente nas redes sociais, indica a publicação de fotos antigas às quintas-feiras (tbt é uma abreviação da expressão em inglês “throwback thursday”). Diz o refrão: “Hoje é dia de TBT/tô bebendo todas e lembrando de você/Mas chorando aqui só tem o violão.”
Já é um uso bem habilidoso de um fenômeno digital, mas a música vai além e detalha o sofrimento de muita gente com o celular: a falta de bateria. “Celular descarregado à prova de recaídas/Quero ver ligar com zero de bateria”. Coração pesado e celular descarregado. Puxado.
Outras referências no ranking são mais sutis, mas ainda assim demonstram a relação com dispositivos eletrônicos. “Sempre pegava o busão comigo/a gente dividia o mesmo fone de ouvido”, canta Naiara Azevedo em Buá Buá. É só um detalhe, mas é possível imaginar o fone de ouvido branco ligado em algum smartphone estralando um modão.
A forte presença de elementos tecnológicos na música popular não é nenhuma surpresa. “Isso mostra que a gente tem uma geração que dá importância para relações mediadas pela tecnologia”, diz Adriana Amaral, pesquisadora do CNPq para a área de música e cultura digital e professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). “O sertanejo, que fala muito das relações sociais e amorosas, mostra que hoje não há separação entre a vida na internet e a vida pessoal.”
Alô? Pedra fundamental do sertanejo, Menino da Porteira descrevia um mundo de boiadas, cavalos e porteiras -- cenário bucólico e bem diferente do atual. No levantamento do Estado, 12 canções fazem referência ao telefone de forma genérica, sem necessariamente especificar se tratam ou não de smartphones. Nada inédito até aí: o primeiro samba brasileiro, registrado em 1916, chama-se Pelo Telefone. Um dos maiores ícones do sertanejo dos anos 1990, também homenageia as telecomunicações: Pense em Mim, de Leandro e Leonardo.
As outras citações deixam claro que há uma relação intensa com a tecnologia: cinco citam celulares; três, notificações e mensagens. Outras três falam de redes sociais, enquanto apenas uma canção menciona uma marca específica da tecnologia: YouTube, presente na letra de Beijo de Varanda, dos veteranos Bruno e Marrone.
Falar de tecnologia não é uma exclusividade da música sertaneja, gênero que domina o ranking da Crowley com mais de 80% das posições. Na década de 1970, o Kraftwerk já colocava quase uma lupa científica sobre a relação entre homem e máquina. Na década de 1990, o Radiohead serviu como cronista carrancudo da presença tecnológica na vida humana. Até os Titãs, na década de 1980, bateram no poder de influência que emanava da TV -- que deixava o cantor Sérgio Britto “burro, muito burro demais”.
Porém, o jeito da música de massa nacional tratar da tecnologia é bem diferente dos exemplos acima. Na maior parte da vezes, ela demonstra quase uma relação íntima com gadgets e serviços.
“O sucesso é uma medida do quanto uma canção se comunicou, e a grande sacada da música pop é se comunicar. Se os jovens de hoje se expressam e criam laços afetivos usando a tecnologia, a canção que se comunicará melhor é a que vai fazem referência a isso. É uma pauta absolutamente central e cotidiana”, diz Thiago Pereira, professor e pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (Labcult), da Universidade Federal Fluminense. “Não me lembro de outro momento que tenha os produtos tecnológicos de forma tão evidente nas letras”, afirma.
Uma forma de entender essa presença acentuada é o fato de que o consumo sempre esteve ligado à cultura de massa -- e com o ganho de importância da tecnologia, isso acaba sendo refletido. “O neo-sertanejo trabalha hábitos de consumo e a tecnologia está inserida nesse guarda-chuvas”, explica Pereira. “O Camaro Amarelo, de Munhoz e Mariano, é um momento marcante do estilo, com objetos de desejo e certa ostentação”, lembra o pesquisador. Assim, fica claro como smartphones que podem custar até R$ 10 mil podem virar protagonistas de canções.
Fábrica de hits. Grande parte das músicas mais populares do País não foram escritas por quem as canta - são obras de compositores especialistas em emplacar hits grudentos, geralmente desconhecidos do grande público. Em 2018, o principal nome do cibersertanejo veio de Quixeramobim (CE), a 212 km de Fortaleza. É na cidade cearense que nasceu Júnior Gomes, 28, autor de três sons com menções a gadgets e redes sociais. Entre elas estão Notificação Preferida, cantada por Zé Neto & Cristiano, e Quem Pegou, Pegou, de Henrique & Juliano.
Dono de um iPhone X, ele diz que gosta de trazer elementos tecnológicos às músicas justamente por ser um assunto popular. “Tento pegar os assuntos na boca do povo e as redes sociais me ajudam muito a gravar”, diz ele.
Para ele, porém, mais importante que falar de tecnologia, é a maneira como ela inspira sua obra. “Quando fiz Quem Pegou, Pegou, vi que as pessoas postavam essa hashtag o tempo todo e pensei: ‘Isso daí dá música’”. A origem de Notificação Preferida é parecida. Ele reparou que o assunto era um tema constante em posts no Instagram e no Facebook.
O compositor explica que atualmente os artistas não pedem músicas com temas específicos nas letras -- o foco é maior na encomenda de ritmos. Assim, ele tem liberdade para falar sobre o que quiser, desde que emplaque nos rankings das mais ouvidas. Durante cinco meses em 2018, ele teve três músicas entre as dez mais ouvidas do País.
A falta de pedidos específicos por letras permite os compositores a espalhar músicas de temas parecidos entre artistas diferentes. Isso ajuda explicar a falta de predominância de um único artista com tecnologia. No levantamento do Estado, Wesley Safadão é o único com mais de um som “nerd” - e uma delas, Ar Condicionado no 15,tem apenas referências sutis ao tema.
Outras plataformas. Hoje em dia, a música que mais agrada as pessoas está longe de ser consumida apenas nas rádios - o YouTube, por exemplo, é o lugar onde muita coisa explode em popularidade. Os rankings de outros serviços repetem muitos dos nomes do cancioneiro tecnológico popular do registrado pela Crowley. Porém, existem algumas diferenças interessantes, como a inclusão de ritmos ligados ao funk.
Uma delas é a presença de MC Loma e as Gêmeas Lacração, que cravaram Envolvimento como hitdo carnaval de 2018 . Embora a letra não mencione nada sobre tecnologia, o mesmo não pode ser dito do clipe original, responsável por bombar a música. Nele, MC Loma cita o Uber na parte inicial do vídeo, produzido por Kondzilla, o maior canal do YouTube brasileiro. Envolvimento aparece no ranking dos vídeos musicais mais vistos do YouTube em 2018 e no ranking das mais tocadas do YouTube Music.
Os funkeiros MC Kevinho e MC Kekel, que falam de uma ligação não atendida em O Bebê, aparecem na lista do YouTube Music. Os dois serviços do Google também compartilham a presença de Gusttavo Lima com Mundo de Ilusões.
Já o pequeno ranking tecnológico do Spotify é dominado por Matheus & Kauan. A inclusão de Tô com Moral No Céu! mostra uma outra faceta da música popular tecnológica tupiniquim: o uso de uma palavra com origem no mundo dos computadores: “Eu quase desisti/ Mas o amor gritou, gritou até ela me ouvir/ Quando o primeiro beijo dela resetou meu coração, meu coração/ Eu já tinha beijado ela mil vezes na imaginação”.
Além disso, com Ao Vivo e a Cores, a dupla é a única a aparecer nos quatro rankings analisados pela reportagem. Seja na farra ou no amor, a música popular do Brasil também é digital. E não tem como fugir disso. É como diz Júnior Gomes: “Sem as tais tecnologias não tem como viver, não.”
Edição de Bruno Capelas, infográficos de Diogo Shiraiwa