Berthier Ribeiro-Neto chegou na internet brasileira quando tudo ainda era mato. Diretor de engenharia do Google para a América Latina, o mineiro foi o primeiro funcionário da gigante no País. Do início dos anos 2000 para cá, ele viu a evolução da ferramenta de buscas, viu nascimento e morte do Orkut e observou como nos relacionamos com a tecnologia.
Professor de computação na UFMG, Berthier também é um ativo observador da relação entre humanos e tecnologia. Para ele, caso uma pandemia como a do coronavírus tivesse acontecido por volta de 2005, a trajetória do Orkut e das redes sociais poderia ter sido outra. Mais que isso: ele acredita que superaríamos as deficiências tecnológicas da época para criar conexões. “Existem necessidades humanas mais fundamentais que independem da tecnologia”, diz.
Algumas das gigantes de tecnologia do mundo atual não tinham esse status no início dos anos 2000. Uma pandemia naquela época poderia ter alterado a história de nomes como Google, Amazon, Facebook e Apple?
O produto é fundamental para uma empresa, mas a semente não vai crescer se você não tiver o jardineiro. Toda execução tem um componente de visão. A capacidade de projeção do futuro e a convicção para executar algo numa direção, sem hesitação, é o que define o resultado. Numa crise, a balança fica mais favorável para as empresas que têm visionários. Acho que essas empresas teriam chegado na frente de qualquer maneira, pois elas tinham essas pessoas. Projetar o futuro, ter confiança infinita e executar são coisas que não afetadas pela crise. A crise afeta todo mundo, mas desproporcionalmente os outros.
Que tendências tecnológicas poderiam ter surgido numa pandemia naquela época?
Uma das coisas que aconteceram tardiamente na internet foram os aplicativos de mensagem, que surgiram depois do smartphone. Eles têm duas propriedades que facilitam muito: não precisam criar conta. É baixar o app e acabou. O custo de entrada é baixíssimo. E a outra vantagem é que todo mundo estava lá – algo que o Orkut tinha, porque você entrava com convite dos amigos. São essas duas vantagens que explicam como o WhatsApp foi uma das coisas que cresceram mais rápido na história da web. Mas acredito que isso era possível lá para 2005. E seria feito por voz. Afinal, os contatos já estavam no aparelho. Como seria sem um app? O complicador seria entrar em acordo com os grandes fabricantes de celulares da época, como a Nokia. Mas imagina todos os celulares da Nokia na época terem um serviço do tipo?
De fato, não era simples. A Microsoft tinha o MSN instalado em todos os PCs do mundo com o Windows, tinha o Windows Mobile e mesmo assim não foi capaz de pensar em algo desse tipo...
O espaço de inovação não viria de uma empresa estabelecido. Poderia vir de uma pequena empresa. A dificuldade seria convencer um grande fabricante de fazer isso. Ninguém fez, mas se tivesse uma pandemia as coisas mudariam radicalmente. O curso poderia ter sido bastante diferente.
O sr. falou sobre o Orkut. Ele foi um sucesso no Brasil, mas não cresceu globalmente. Com uma pandemia, o rumo poderia ter sido outro?
No caso do Orkut, foram cometidos erros estratégicos. Na evolução das redes sociais, quase todas começam como grupos e uma área de postagem, o mural. O Facebook também nasceu assim. Mas ele teve a evolução para a “correnteza ativa” (active stream), no qual você faz a postagem, transmite para amigos e nem precisa mais verificar o mural. O Orkut teria tido esse insight? Não sei. Ele poderia explodir no mundo, mas não sei se teria esse passo. Muita gente acha que tecnologia é um momento de inspiração, mas a execução é mais importante.
A infraestrutura do Orkut estava pronta para receber um volume muito maior de pessoas?
Não estava. Mas se houvesse sinais de que o Orkut poderia virar uma plataforma global,o Google teria se mexido. O Orkut nasce em 2004, mas começa a ter muitos usuários em 2005. O Google tinha aberto capital no ano anterior, o foco da empresa ainda era o motor de buscas. A receita estava ali, a sobrevivência do negócio também. A empresa viraria atenção para redes sociais? Não sei.
Uma pandemia naquela época poderia ter dado uma sobrevida aos blogs?
Tendo a achar que não, mas existem necessidades humanas mais fundamentais, que independem da tecnologia. Temos necessidade de reconhecimento por parte dos pares. Essa é uma motivação que parte da espécie que somos e que precede a tecnologia.
Que tipo de conteúdo digital estaríamos consumindo?
Acredito que as lives seriam sucesso também naquela época. A incerteza de uma crise dessas gera uma ansiedade monumental e isso gera problemas de saúde mental. Esses eventos e shows são importantes. Elas dão uma oportunidade para se conectar.
Mas as pessoas comuns estariam fazendo lives? Os smartphones não existiam, as webcams eram horríveis...
Fariam. As câmeras fotográficas já estavam muito disseminadas. Você filmava com a câmera, depois tinha conector especial, mas dava pra fazer em casa. A gente tem a necessidade de compartilhar. Somos uma espécie grupal. Se ficarmos isolados durante muitos anos, nos desestabilizamos emocionalmente. Num momento de crise, de grande dor, suplantariamos as deficiências tecnológicas da época para produzir conexões.