Dois anos atrás, no início de abril de 2022, enquanto se preparava para comprar o Twitter, Elon Musk fazia enquetes com seus então aproximadamente 80 milhões de seguidores na plataforma para saber como melhorar o serviço. Na ocasião, ele já dizia que a rede social era uma arena importante para a liberdade de expressão no mundo – um conceito constantemente evocado por ele, inclusive em seus recentes ataques à justiça brasileira e australiana.
Uma de suas maiores preocupações antes da aquisição, contudo, era com a quantidade de spam na plataforma: segundo dados do Twitter de maio de 2022, 5% dos 229 milhões de usuários ativos na rede eram de perfis falsos ou bots – ou seja, em torno de 11,5 milhões de contas. Musk, contudo, se mostrou desconfiado com esse número, alegando que a companhia não havia fornecido detalhes para sustentar sua investigação, e temporariamente suspendeu a compra da plataforma. Após sua fala, as ações da companhia caíram em torno de 20%, fazendo com que o milionário retomasse a compra.
“Eu também quero tornar o Twitter melhor do que nunca, aprimorando o produto com novas funcionalidades, tornando a plataforma open source para aumentar a confiança, derrotando os bots de spam e autenticando todos os humanos”, prometeu Elon Musk, em 25 de abril de 2022, em um post com 2,4 milhões de likes no Twitter. Dois anos após Musk iniciar a aquisição da empresa, prometendo desde o início acabar com o problema das contas falsas e spam, o bilionário parece longe de cumprir suas promessas.
Desde meados de fevereiro usuários relatam que é impossível usar a rede social sem se deparar com spams pornográficos, que passaram recentemente a mirar usuários brasileiros com mensagens toscamente traduzidas, como “meus nus no meu perfil” (“nudes in my profile”, nos spams “originais”, em inglês). Outra resposta recorrente é a “my pussy in bio”, seguida de uma foto de uma mulher nua – isso, segundos ou minutos após qualquer tipo de postagem na plataforma. Todas as mensagens são disparadas por contas falsas e recém-criadas.
Os usuários têm feito comentários sobre os spams, incluindo o ator Paulo Vieira.
Abutres de engajamento
Outro tipo de spam são os “abutres de engajamento”. Desde que a plataforma liberou a monetização para assinantes do X Premium, em julho de 2023, perfis “caça-clique” passaram a brotar em qualquer post ou fio com um alto índice de engajamento, em busca de visualizações. É comum, por exemplo, ver nas respostas a posts virais outros posts sem qualquer relação ao conteúdo original, que apenas tentam atrair a atenção dos usuários com mais material de alto potencial de engajamento, como vídeos de animais fofos ou imagens sedutoras – isso quando o conteúdo não é uma réplica do post original ou apenas respostas aleatórias desconexas. As interações genuínas acabam se perdendo em meio a um caos de perfis verificados e bots que são recompensados por sua busca por engajamento e visibilidade a todo custo.
A quantidade de “baits” (iscas) também aumentou consideravelmente, com perfis verificados fazendo perguntas aleatórias, emitindo opiniões absurdas ou postando desinformação na expectativa de atrair respostas (mesmo que agressivas ou grosseiras) e “hitar” pela controvérsia, o que poderia resultar em ganhos financeiros dentro do atual sistema de monetização.
Nestes casos, o problema forçou até o próprio Musk a se manifestar, afirmando que a companhia iria identificar e suspender os abutres do click.
Musk arruinou a moderação
Embora o empresário tenha demonstrado preocupação, a alta quantidade de spam e a queda na qualidade das postagens também é resultado direto de outra decisão de Musk: reduzir a moderação de conteúdo, algo diretamente ligado à sua ideia de liberdade de expressão absoluta.
Em novembro de 2022, menos de um mês após a conclusão da compra da plataforma pelo bilionário, ele passou a pôr seu plano em prática: demitiu grande parte da sua equipe, de cientistas de dados que atuavam em um time de integridade cívica, encontrando desinformação política, a moderadores de conteúdo. Sarah Roberts, uma especialista em moderação de conteúdo que trabalhou como pesquisadora no Twitter em 2022, disse na ocasião que pelo menos 3 mil trabalhadores foram demitidos de uma vez só nos EUA. Em 7 de janeiro de 2023, a Bloomberg noticiou mais cortes em escritórios da companhia pelo mundo, incluindo nas equipes que lidavam com desinformação.
De acordo com uma investigação conduzida pelo eSafety Commissioner, um órgão de segurança online do governo da Austrália, Musk reduziu a equipe global de confiança e segurança em um terço, com uma redução de 80% no número de engenheiros de segurança. A equipe de moderadores internos foi cortada em mais que a metade: de 107 para 51. Já os moderadores terceirizados caíram de 2.613 para 2.305 em 2023. Segundo o relatório, as tentativas da empresa de lidar com mensagens diretas de ódio diminuíram em 70%.
Sob Musk, contas que antes haviam sido advertidas ou bloqueadas por violações relacionadas a condutas violentas e odiosas voltaram a atuar na plataforma, incentivadas pelo próprio bilionário, que costuma responder publicações controversas na plataforma, dando a elas visibilidade. Em uma dessas situações, Musk promoveu uma teoria da conspiração antissemita, de grande reverberação entre supremacistas brancos. Em resposta, além de ter recebido uma reprovação da Casa Branca, Musk viu uma debandada de grandes anunciantes da sua plataforma, incluindo Walt Disney, Warner Bros Discover, Apple, IBM e Paramount.
Conforme o X deixou de atrair anunciantes de peso, a plataforma se sujeitou a todo tipo de anunciantes, incluindo propagandas fraudulentas com links para esquemas de furto de criptomoedas, sites de phishing e páginas com scripts maliciosos. Outras propagandas recorrentes trazem notícias falsas com montagens toscas de figuras populares da TV e da política brasileira, como Sergio Moro, Luciano Huck, Marcos Mion e William Bonner. Na tentativa de denunciar os golpes promovidos pela própria plataforma, tanto no feed quanto nas respostas a publicações, os usuários usam o recurso notas da comunidade, advertindo sobre as propagandas mal intencionadas.
Falar sobre o spam de pornografia pode piorar a situação
A doutora em comunicação Iasminny Thábata Cruz, que pesquisa boatos e desinformação nas redes sociais na Universidade Federal de Minas Gerais, explica que os bots podem causar uma sensação de opiniões relevantes, com interferência em problemas sociais. “Esses bots em discussões sociais atuam para gerar a sensação da existência desse público, um público simulado, para influenciar a criação de públicos reais, legítimos, que vão lá defender ou acusar uma causa determinada.”
Segundo a pesquisadora, o X/Twitter se torna especialmente prejudicial com a presença de bots devido sua arquitetura de mensagens curtas, rápidas e com pouca profundidade. “É uma rede que prioriza a informação ligeira, a quantidade de mensagens distribuídas. Então, quanto mais se fala sobre algo, mais aquilo é falado. O algoritmo de funcionamento do Twitter também funciona dessa forma. Então, tudo que é uma comunicação, que tem aspectos que chamam muita atenção de forma muito rápida, que apelam para o aspecto emocional do nosso comportamento como público, aquilo é distribuído de forma muito rápida.”
Na lógica algorítmica da rede, os próprios comentários dos usuários sobre as respostas de spam pornográfico gerada por bots acabam impulsionando o spam, tornando-o uma espécie de meme e fazendo com que ele pareça mais presente do que pode de fato estar.
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Iniciativas de combate não funcionam
Em outubro de 2023, o bilionário anunciou o programa “Not a Bot” na Nova Zelândia e Filipinas, em fase de testes, passando a cobrar US$ 1 anualmente para que contas novas e não verificadas possam postar e interagir com outras postagens. Usuários existentes não são afetados pela medida, de acordo com Musk. A companhia não divulgou resultados do programa.
Especulações sobre uma implementação global da taxa de US$ 1 voltaram à tona quando, no dia 15 de abril, Musk passou a responder usuários sobre a medida, dizendo que esta seria a “única forma de “conter o ataque implacável de bots” no X.
Dias antes, em 4 de abril, a plataforma anunciou um esforço para remover contas que violam suas regras de manipulação e spam, para “garantir que o X permaneça seguro e livre de bots”. Ao final do mês, contudo, usuários continuavam reclamando da avalanche de spams pornográficos, espalhados por toda parte na plataforma.
Os problemas que a plataforma vem enfrentando com a falta de moderação, abutres de engajamento, propagandas fraudulentas e aumento da quantidade de spams e bots pode estar afugentando o público da plataforma.
Segundo a Sensor Tower, uma empresa de inteligência de mercado de São Francisco, o número de usuários na rede social vem caindo desde novembro de 2022 (o primeiro mês da aquisição de Musk), chegando a uma queda de 23% em fevereiro de 2024, nos EUA. No restante do mundo, houve uma queda de 15% no número de usuários ativos diários em relação ao ano anterior, segundo a pesquisa. Aplicativos rivais tiveram um aumento em suas bases de usuários no mesmo período, como Snapchat (8,8%), Instagram (5,3%), Facebook (1,5%) e TikTok (0,5%).
O banimento de contas falsas poderia afetar o próprio Elon Musk. Desde que comprou a plataforma, o número de seguidores de Elon Musk saltou de 80 milhões para 181 milhões. Contudo, em agosto de 2023, quando esse número girava em torno de 153 milhões, uma análise de dados encomendada pelo site Mashable constatou que 72% (112 milhões) de seus seguidores eram seguidos por menos de 10 pessoas e 42% (65,3 milhões), por ninguém. Se tratando de uso, 41% (62,5 milhões) sequer haviam feito uma única postagem. Ainda, em torno de 25% de todos os seguidores de Musk (38 milhões) nunca haviam trocado a imagem padrão oferecida a contas novas. A pesquisa concluiu que uma parte significativa dos seguidores de Musk eram contas falsas, usuários inativos ou “lurkers” (usuários que apenas consomem conteúdo e nunca postam).