Na última quarta-feira, o mundo acordou com um marco na computação. Pesquisadores liderados pelo Google anunciaram que um computador quântico pode realizar, em 200 segundos, uma operação que levaria 10 mil anos no supercomputador clássico mais potente do mundo. O feito agitou a comunidade científica. Professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), o físico mineiro Fernando Brandão, de 36 anos, porém, teve um dia normal: acordou, tomou café e foi “fazer suas coisas”. A tranquilidade tinha motivo: único brasileiro entre os 76 pesquisadores do experimento do Google, Brandão já conhecia os resultados há tempos.
“Foi meio anticlimático, porque a repercussão já tinha acontecido”, disse Brandão, em entrevista exclusiva. Explica-se: um mês antes da publicação, o artigo já havia sido vazado no site da Nasa – como antecipou o Estado, foi um erro de procedimento interno na agência espacial americana. O que não diminuiu o feito do grupo de cientistas liderados pela gigante americana.
Brandão fez parte do time que buscava provar, por meio de fórmulas complexas, que o Google alcançou a supremacia quântica – algo que ocorre quando uma máquina do tipo faz uma operação impossível de ser realizada em tempo razoável por um computador clássico.
Pesquisador teórico, ele se uniu ao time do Google em junho de 2018, a tempo de testemunhar a história. “O momento mais emocionante foi quando rodamos o computador pela primeira vez no regime no qual poderíamos obter a supremacia”, conta. A festa, porém, só ocorreria dias depois, em uma emoção fragmentada por estatísticas – afinal, era preciso esperar a comprovação de que o experimento tinha dado certo. “Dias depois, recebemos um gráfico por e-mail com o resultado. Quem estava no escritório se reuniu e se cumprimentou.”
Os cálculos do projeto já têm sido questionados. Rival do Google na corrida pela nova era da computação, a IBM afirma que um de seus supercomputadores poderia fazer o mesmo cálculo em dois dias e meio. Brandão rebate: “A IBM está otimista. Eles não executaram o cálculo ainda. Haverá métodos mais eficientes para se resolver o problema em computadores clássicos, diminuindo a estimativa de 10 mil anos”, diz. “Mas na melhor das hipóteses, um supercomputador clássico precisaria de dias para reproduzir o que o computador quântico faz.”
“Eu sou da América do Sul”
Nascido em Belo Horizonte, Brandão é o filho do meio de um casal de professores universitários – o pai é professor de literatura e língua grega; a mãe, de filosofia. No Ensino Médio, ele descobriu sua vocação para os números. Em 2000, teve a segunda maior nota geral no vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quando foi aprovado no curso de Engenharia de Controles de Automação – ao todo, eram mais de 70 mil candidatos.
Quando o curso atingiu a metade, ficando cada vez mais perto da prática, Brandão congelou os estudos. Ficou seis meses sem ir às aulas, mas descobriu um novo caminho pela internet. “Foi pesquisando na rede que descobri a computação quântica, que une os dois maiores avanços do século XX: a mecânica quântica e as ciências da computação”, conta. “Ali, tive certeza de que seria físico.”
No novo curso, ele se destacou desde cedo. “Recebi o Fernando na graduação em física e fiz sua iniciação científica. Ele era brilhante”, diz Reinaldo Vianna, pesquisador em física quântica da UFMG e orientador de Brandão no mestrado concluído em 2005 sobre emaranhamento, um dos conceitos mais complexos da física quântica.
Com um pontapé desses numa carreira tão específica, é fácil imaginar Brandão como um “nerd de laboratório”, sem vida social. Errado. Casado com uma ex-colega de colégio e pai de um menino de quatro anos, ele é descrito como “doce” por amigos.“Se você estiver numa mesa de boteco com o Fernando, e ele falar que é um dos físicos mais importantes do mundo, você vai achar que é papo de bêbado”, diz Vianna.
Por pouco, Brandão não seguiu outra carreira: guitarrista desde os 12 anos, ele chegou a ter um trio de jazz com um dos irmãos, o Soluço, no meio dos anos 2000. Além dos acordes complexos do jazz, ele também curte o metal progressivo de bandas como Dream Theater – grupo que ele pretende ver ao vivo em breve, com o filho. E ainda que não tenha virado um rockstar, o físico viveu recentemente um momento de glória: em 2018, dividiu o palco com Steve Vai, um dos mais virtuosos guitarristas do mundo. Enquanto tocavam juntos “Little Wing”, um clássico de Jimi Hendrix, uma das cordas da guitarra de Brandão arrebentou. Vai não titubeou: entregou sua própria guitarra para que o físico continuasse a apresentação.
“Mas agora eu sou caubói”
O Brasil ficou pequeno para o físico mineiro quando ele encerrou o mestrado. Era preciso correr mundo e buscar conhecimento lá fora. “Após resultados muito sofisticados no mestrado, recomendei ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica que ele fizesse um doutorado pleno no exterior”, lembra Vianna. Na época, uma bolsa dessas era algo raro – hoje, praticamente impensável.
Entre 2005 e 2008, com os estudos pagos pelo governo federal, Brandão fez o doutorado no Imperial College de Londres, instituição com 15 vencedores do Prêmio Nobel. Na Inglaterra, também fez seu pós-doutorado. Depois, ele rodou o mundo como pesquisador, passando pela Suíça e por Redmond (EUA), onde trabalhou no braço de pesquisas da Microsoft.
Há três anos e meio, ele ocupa a cadeira máxima da Divisão de Teoria Física, Física, Matemática e Astronomia do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). A escolha não é à toa: professor do Caltech e prêmio Nobel de Física de 1965, o americano Richard Feynman foi quem deu os primeiros passos na computação quântica.
Com tudo isso, Brandão virou uma estrela na área – na semana passada, além da pesquisa do Google, ele também recebeu um prêmio da Associação Americana de Fìsica (APS, na sigla em inglês). “Ele é uma referência para todos nós”, diz Bárbara Amaral, pesquisadora de informação quântica do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. “E é um cara super acessível.”
Com o prestígio que alcançou nos últimos anos, Brandão já conhecia diversos pesquisadores envolvidos na pesquisa do Google – afinal, a computação quântica de ponta ainda não é uma área tão grande assim. Durante algum tempo, ele teve um convite em aberto para se juntar ao projeto, feito por Harmmut Neven, diretor de engenharia do Google. Quando seus interesses de pesquisa passaram a se alinhar com os do projeto da gigante, o mineiro embarcou nesse trem.
“Sou do mundo, sou Minas Gerais”
Enquanto trabalhou com o Google, Brandão ia, em média, três vezes por semana para o prédio da empresa em Venice Beach, na região metropolitana de Los Angeles (EUA). Sua rotina poderia ser considerada perda de tempo para quem não conhece a rotina de um pesquisador: conversava com colegas e fazia muitos cálculos na ponta do lápis, em busca de construir o estofo teórico que justificaria a supremacia quântica.
O anúncio do Google está longe de ser um ponto final nessa rotina para quem trabalha na área – a empresa afirma já ter quatro chips quânticos no laboratório e um processo de automação robusto para que eles funcionem com maior velocidade. A meta é ter chips com número cada vez maior de qubits, o componente responsável pelo processamento. É um crescimento fundamental para que a computação quântica seja aplicada a problemas práticos.
Segundo Brandão, os chips quânticos do futuro terão de ter uma função específica, o “código de correção de erro”. O funcionamento fica mais claro quando explicado como isso funciona na computação clássica. Nela, cada bit é expressado por 0 ou 1. Erros no funcionamento podem fazer com que o 0 se transforme em 1 e vice-versa. Para evitar esse problema, o sistema trabalha com redundâncias – assim, um bit armazena dez vezes o 0 e dez vezes o 1, em vez de uma vez só. Dessa forma, mesmo que ocorram erros, o sistema consegue extrair corretamente a informação.
Quando isso é aplicado à computação quântica, na qual o qubit pode apresentar qualquer estado entre 0 e 1 ao mesmo tempo, isso se torna ainda mais complexo. Para cada qubit lógico, construído com a redundância, são necessários 5 qubits. O processador do Google, que tem 53 qubits, não foi construído com redundância. Se isso for feito, porém, será possível construir chips mais confiáveis e mais próximos de serem aplicados em problemas da vida real.
Já de volta ao Caltech, Brandão também vai continuar sua busca por novos marcos da computação quântica. Mas ele trocou de lado: desde agosto, ele faz parte do grupo de pesquisadores da Amazon na área de computação quântica. Ele está entusiasmado com a nova fronteira quântica. “Até agora, todas as possibilidades eram imaginadas apenas no quadro negro e na ponta do giz”, diz o mineiro.
Voltar ao Brasil, hoje, não é uma possibilidade para o físico. “Não tem a mínima chance, ainda mais com o governo atual”, diz. “A sociedade precisa reagir para mostrar que a ideologia desse governo em relação à ciência é totalmente errada. Senão, teremos 20 anos perdidos no futuro. Entre os pesquisadores, quem puder, vai sair do País.” Mas isso não significa que os laços do físico com sua terra estejam cortados – ele vem duas vezes por ano ao Brasil e mantém contato com os cientistas daqui. Hoje, Brandão é referência no mundo, mas também é Minas Gerais.