Não é todo dia que alguém pode afirmar que participou de algo que pode impactar para sempre a humanidade. O físico brasileiro Fernando Brandão, professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), é uma dessas pessoas. Ele participou da elaboração teórica da pesquisa coordenada pelo Google que resultou num computador quântico realizando pela primeira vez uma operação impossível de ser feita por uma máquina clássica.
Brandão conversou com exclusividade ao Estado e contou mais sobre a descoberta e suas possíveis aplicações, rebateu as críticas da IBM e projetou o papel de empresas e governos no futuro da computação quântica.
Mais ainda: ele foi além do papo científico. Ex-bolsista do CNPq, Brandou usou o holofote de uma descoberta histórica para defender a comunidade científica brasileira. Na visão dele, a academia nacional foi transformada em inimiga pelo atual governo brasileiro. “Tentam desqualificar a ciência por motivos políticos”, disse. Abaixo os principais momentos da conversa:
No projeto do Google, o sr. esteve responsável pela fundamentação teórica de que o computador quântico de fato tinha feito algo impossível para um supercomputador clássico. Como foi provar isso?
Para conseguir comprovar a supremacia quântica, nós precisamos desenvolver e otimizar algoritmos clássicos. Era algo demorado: para atestar os dados, o computador clássico demorava uma semana para entender algo que havia levado dois segundos na máquina quântica. Essa é uma área importante da computação quântica: simular o que ela pode fazer em computadores clássicos. Há vários métodos para se fazer isso, só o Google passou três anos se preparando.
Rival do Google no setor, a IBM questionou a supremacia quântica e disse que o problema resolvido pelo Google não tem afirmação prática. Segundo a empresa, uma verdadeira máquina quântica deveria ser generalista. Qual é a sua resposta?
A IBM está certa quando diz que o experimento não tem nenhuma aplicação prática conhecida. Mas a demonstração é um marco importante. Pela primeira vez, temos um computador quântico programável – isto é, que pode rodar diferentes programas e pode resolver um problema específico em 3 minutos e 20 segundos. O próximo marco da área será demonstrar supremacia para um problema de interesse prático. Temos algumas ideias, mas não se sabe quanto tempo irá levar.
Em quais áreas a computação quântica pode ter impactos?
Ela pode ser usada em ciências de materiais e na indústria farmacêutica para descobrirmos novos materiais e drogas. Algoritmos de otimização também já foram descobertos, podendo ajudar empresas aéreas a alocar melhor os aviões para cada rota, empresas de logística capazes de atender mais clientes em menos tempo. Todo dia tem algo novo sendo descoberto, mas é justo dizer que ainda não sabemos as melhores aplicações. Isso só vai acontecer quando o computador quântico estiver rodando de fato, disponível para testes. Por enquanto, estamos descobrindo essas aplicações apenas usando giz e quadro negro.
Existe entre os cientistas preocupação com usos indevidos da tecnologia, como a quebra da criptografia atual?
Existe. Por causa disso, foi criada uma nova área: criptografia pós-quântica. Nela, pesquisadores buscam criar novos protocolos que não poderão ser quebrados por uma máquina quântica. Isso vai exigir que cada indústria troque o protocolo do RSA, o mais difundido atualmente. Mas é preciso calma: a descoberta desses novos protocolos pode demorar muitos anos, mas também vai demorar muito tempo para que exista um computador com 20 milhões de qubits que seja capaz de quebrar a criptografia atual. A informação quântica permite fazer uma criptografia inquebrável.
IBM e Google têm projetos de computação quântica. O futuro do setor depende das gigantes de tecnologia?
Computação quântica é uma tecnologia nova e cara. Mesmo universidades de ponta, com recursos do governo, não conseguem desenvolvê-la . Em algum momento, é preciso fazer apostas e investir – algo que as empresas de tecnologia sabem fazer muito bem. Google, Microsoft, IBM e Amazon estão interessadas na área e têm nível de investimento maior. É algo parecido com aprendizado de máquina: há trabalhos importantes sendo feitos nas universidades, mas para ter recursos computacionais necessários, é preciso trabalhar com as empresas.
Qual é o papel dos governos no desenvolvimento do setor?
Hoje, os investimentos estão dispersos – e essa é uma área com vários caminhos. O que poderia ser feito é um governo decidir construir um computador quântico nacional, fazendo um projeto de pesquisa envolvendo milhares de pesquisadores e milhões de dólares. É um esforço parecido com o do acelerador de partículas do Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (mais conhecida pela sigla CERN). Isso pode ocorrer, mas não sabemos ainda qual é a tecnologia certa para se investir. Isso torna difícil para os governos se organizarem.
Como o sr. vê o momento da ciência no Brasil? Pensa em voltar?
A pesquisa no Brasil tem cada vez menos recursos e atenção do governo. Com a atual gestão, isso é ainda pior. Parece que a academia e os pesquisadores viraram inimigos, tentam desqualificar os cientistas e a ciência por motivos políticos. Isso é terrível para o Brasil. (Fazer pesquisa) já era difícil em outros governos passados, mesmo com esforços de valorização. Infelizmente, a tendência é piorar. Não basta só ter recursos. É preciso ter um clima de valorização da ciência, no qual cientistas têm tempo para pensar nos problemas e podem se integrar à comunidade internacional. Isso é difícil de fazer no Brasil, mesmo com bons pesquisadores. Nos EUA é muito mais fácil, ainda mais nas universidades de ponta.
O que pode ser feito para melhorar?
O processo tem que parar de ser tão político. É preciso entender que ciência e educação são uma necessidade nacional. Não é algo que se muda em poucos anos, tem que haver um plano de décadas. A Coreia do Sul fez isso muito bem e hoje é um país bem desenvolvido. Mas foi um esforço coerente.