O Clubhouse é a rede social do momento: a possibilidade de realizar bate-papos ao vivo causou uma onda de adesões ao serviço. Apesar disso, muita gente ainda está fora da conversa. Disponível apenas em formato de áudio — e ignorando mensagens de texto ou de fotos —, o novo app sofre com a falta de recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência (PCDs).
A coordenadora do Movimento Web para Todos, Suzeli Damaceno, diz que a nova rede social causou surpresa entre os integrantes do grupo por ter sido criada com apenas uma possibilidade de comunicação — neste caso, o áudio.
“O Clubhouse acabou exacerbando iniciativas muito ruins, de organizações que criam produtos ou serviços sem considerar as milhares de pessoas com deficiência no mundo. É um pensamento de criar algo com um viés muito antigo e muito focado em um grupo muito menor de pessoas, e não na coletividade”, diz.
Para ela, a rede deveria ter alternativas que permitissem a todos os públicos acessar os conteúdos. “Por tratar só de áudio, você já elimina as pessoas surdas. Um dos princípios da acessibilidade é sempre dar opção para as pessoas. Se tem a base em áudio, ofereça também uma possibilidade tecnológica que transcreva esses áudios”, afirma.
Suzeli lembra que muitas pessoas com deficiência auditiva se comunicam prioritariamente por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras), desta forma, é necessário criar, além do mecanismo de transcrição de áudio, funcionalidades que transmitam as conversas em Libras.
A coordenadora sugere um plug-in que abra o conteúdo em Libras e destaca que existem formas de traduzir os bate-papos automaticamente para a linguagem de sinais. De acordo com ela, faltou empatia e visão de acessibilidade na concepção do produto.
A escritora e cientista social Paula Pfeifer, autora de Crônicas da Surdez, foi diagnosticada com deficiência auditiva bilateral neurossensorial e progressiva na adolescência e, após usar aparelhos auditivos por anos, utiliza atualmente um implante coclear bilateral. O implante permite às pessoas com deficiência auditiva melhorar ou recuperar a capacidade de escutar os sons.
Paula diz que o Clubhouse foi recebido com críticas por pessoas com deficiência auditiva. “Muito se fala em diversidade e inclusão hoje, porém, parece que para 99% das pessoas, diversidade e inclusão se resume apenas a raça e gênero”, afirma.
A escritora explica que mecanismos de acessibilidade são necessários ainda que as pessoas com deficiência auditiva usem aparelhos auditivos ou implantes cocleares, uma vez que estes recursos não são um “ouvido novo”.
Deficiência visual
Assim como as pessoas com deficiência auditiva, Gustavo Torniero sentiu falta de ferramentas que auxiliassem sua experiência na rede social. O jornalista e ativista tem deficiência visual e compartilhou no Twitter as dificuldades que teve ao usar o Clubhouse.
No relato, Torniero afirma que ficou duas horas em uma sala da rede social e, quando decidiu falar, não conseguiu acessar o botão para aceitar o convite do moderador do bate-papo para abrir seu microfone por causa da falta de acessibilidade para pessoas com deficiência visual.
“Eu sou um entusiasta da inovação. Nesse sentido, portanto, eu gosto da proposta do Clubhouse. O que eu lamento, na verdade, é que os criadores não incluíram a perspectiva da inclusão e da acessibilidade desde o início do projeto”, afirma ele ao Estadão.
Apesar de ainda não conseguir aceitar os convites enviados por moderadores por meio da notificação que aparece no topo da tela, o jornalista aponta um caminho alternativo para pessoas com deficiência visual conseguirem falar nos bate-papos.
“Quando você está em uma sala e alguém te manda um convite para participar, se você entrar no seu perfil, na parte inferior tem um botão para você aceitar o convite para falar na sala”, diz.
Torniero também destaca algumas melhorias de acessibilidade que foram feitas na mídia social. “Os botões do aplicativo estão mais descritivos. Quando um desenvolvedor vai fazer um aplicativo, ele precisa etiquetar aquele botão. Além de colocar o código, ele precisa colocar o nome daquele botão, e eles não estavam etiquetados corretamente. Eles melhoraram isso”, explica. “Algumas mudanças são mais complexas de serem implementadas, outras podem ser feitas com poucas linhas de código”, complementa.
O jornalista afirma que incluir ferramentas de descrição de imagens das fotos dos participantes e tornar a plataforma navegável por um leitor de tela são alternativas que ajudariam o Clubhouse a ser mais inclusivo.
Torniero ressalta torcer para as melhorias de inclusão serem feitas continuamente porque deseja participar da rede social. Ele também fala sobre a importância de expor o que precisa mudar e apresentar as alternativas.
“Além de fazer duas threads [no Twitter], em português e inglês, também publiquei no fórum de suporte da plataforma e formalizei um e-mail com esses feedbacks. Não basta só reclamar: é necessário também dialogar e propor soluções”, afirma Torniero.
Acessibilidade nas redes sociais: problema antigo
Para Paula, a pandemia da covid-19 ajudou a expor a falta de acessibilidade digital e exibiu as falhas de todas as redes sociais no quesito inclusão. As big techs, segundo a escritora, tiveram que correr atrás do prejuízo porque surgiram em uma época em que este assunto não era discutido ou lembrado.
“O Instagram disponibilizou legendas geradas automaticamente de boa qualidade nos vídeos do IGTV, mas ainda não há ferramentas para legendar stories ou lives”, diz.
“O YouTube melhorou a qualidade das legendas geradas automaticamente dos seus vídeos, mas ainda não possui legendas em tempo real nas lives. O Facebook disponibilizou legendas geradas automaticamente nas lives e nos vídeos. O Twitter anunciou para 2021 um recurso de legendagem de áudios e vídeos”, relembra a cientista social.
Como mudar
Suzeli Damaceno afirma que o melhor modo de evitar que produtos pouco inclusivos e inacessíveis para uma parte da população seja disponibilizado é reclamar e reivindicar acessibilidade em todas as plataformas digitais.
“Começar a questionar, falar sobre isso. É preciso questionar porquê que tem que ser só em áudio”, diz. Isso, segundo ela, é uma missão de todos, não apenas de pessoas com deficiência. “É uma questão de empatia”, afirma.
Paula Pfeifer conclui que a discussão em torno da falta de ferramentas de acessibilidade no Clubhouse mostra que a sociedade acha que estes recursos são um favor.
“Lançar um produto ou serviço sem acessibilidade é o mesmo que colocar uma placa na porta: ‘você não é bem-vindo aqui’. Pessoas com deficiência são consumidores e ajudam a girar a roda da economia mundial. Se tivéssemos mais PCDs em cargos de liderança nas grandes companhias, já teríamos avançado”, afirma.