THE WASHINGTON POST - Os roteiristas de Hollywood dizem que o ChatGPT não consegue criar programas de TV melhores que os humanos. Os radiologistas estão confiantes de que os pacientes vão querer que eles, e não apenas a inteligência artificial (IA), analisem seus exames de imagem. Os pilotos duvidam que as pessoas algum dia vão se sentir confortáveis com a ideia de um algoritmo pilotar um avião.
Embora a IA esteja se aprimorando rapidamente e alguns economistas prevejam que a tecnologia tirará o emprego de milhões de trabalhadores, os sindicatos estão lutando contra ela. Nas reuniões de negociação, a IA está se tornando cada vez mais um tema de discórdia importante, com os líderes sindicais argumentando que as empresas são tacanhas ao substituir trabalhadores do conhecimento por uma tecnologia que não está à altura da criatividade humana e está repleta de erros e preconceitos.
Alguns sindicatos conquistaram avanços recentemente, como o dos diretores de Hollywood que no início deste mês chegaram a um acordo provisório com os estúdios de cinema e receberam promessas de que “não serão substituídos” pela IA. Foi uma das primeiras concessões que os sindicatos conseguiram no que diz respeito às proteções contra a tecnologia.
“Nossa indústria está mudando depressa”, diz Lesli Linka Glatter, presidente da Directors Guild of America, em um comunicado após o conselho da associação aprovar por unanimidade o acordo provisório. “Este acordo é o que precisamos para nos adaptar a essas mudanças.”
Mas será uma luta muito mais confusa e prolongada para outros setores, segundo economistas. A filiação sindical está em queda, as corporações têm mais influência nas negociações e os sindicatos precisam descobrir mensagens que atraiam o interesse dos líderes que querem cortar gastos. Essas batalhas em relação à tecnologia oferecem um vislumbre do quanto os sindicatos serão importantes na proteção dos trabalhadores.
Daron Acemoglu, professor de economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, disse que não há motivos para confiar que os executivos por conta própria vão tomar as decisões certas a respeito de como a IA pode ser usada. “Precisamos das vozes dos trabalhadores”, disse ele.
Na verdade, a associação que representa os roteiristas dos EUA nem sempre se preocupou com a IA, disse um profissional sindicalizado que falou sob condição de anonimato por medo de retaliação. Em uma reunião antes da greve no teatro Hollywood Palladium em fevereiro, as pessoas riram quando a IA foi citada durante uma sessão de perguntas e respostas, disse a fonte.
Cinco ou seis semanas depois, essa história mudou. Notícias, pronunciamentos públicos e cartazes em manifestações eram todos sobre IA. Falar das dificuldades dos trabalhadores em termos de automação tornou isso mais acessível ao público, afirmou o profissional.
Meses depois, os representantes da Writers Guild of America (WGA) disseram que os estúdios nem sequer dialogavam sobre a IA durante as negociações, e foi assim que o sindicato percebeu que isso seria um grande problema. Mas é difícil determinar o quanto isso é uma ameaça atual, segundo a fonte. “Talvez eles estejam prontos para substituir todos nós”, disse o profissional, acrescentando que a IA se tornou um ponto unificador da greve.
A WGA chamou a atenção para um tuíte no qual propôs regulamentar a IA e reconheceu ter realizado reuniões para discutir o acordo de negociação.
Disputa tecnológica não é nova, mas IA muda tudo
Esse não é o primeiro combate aos avanços tecnológicos dos sindicatos. Na década de 1950, os sindicatos dos trabalhadores do setor automotivo lutaram pela incorporação de máquinas para o controle numérico computadorizado na fabricação de automóveis sem substituir as pessoas na linha de montagem. Os trabalhadores dos armazéns têm feito pressão para não serem substituídos por robôs. Os funcionários de escritório correram atrás de proteções após o surgimento da internet e de ferramentas como planilhas.
Mas a IA gerativa, que está por trás dos produtos que criam texto, vídeo e áudio, será um desafio, segundo especialistas do setor. A IA pode produzir conteúdo plausível o suficiente para substituir alguns tipos de trabalho, como o de redatores iniciantes, tradução e certas tarefas paralegais. Algumas empresas estão dispostas a substituir os humanos, apesar da tecnologia talvez oferecer um trabalho de qualidade inferior, acrescentaram os especialistas.
Essa dinâmica exigirá que os sindicatos adaptem suas mensagens, disse Acemoglu. Eles não devem entrar nas discussões dizendo que são totalmente contra a tecnologia. Em vez disso, afirmou, devem enfatizar aos gestores que a IA sem a participação humana pode levar a maiores gastos com erros e ter como consequência um trabalho de segunda categoria que prejudicará sua marca.
Além disso, os sindicatos devem chegar nas negociações pedindo por uma participação nas decisões de como a tecnologia é usada em conjunto com os trabalhadores, disse ele, e defendê-la como uma ferramenta que é usada para aumentar o trabalho criativo e não para substituí-lo.
Hollywood pode aprender com outras indústrias
Em meados da década de 2010, pesquisadores de IA alcançaram avanços no uso de redes neurais para reconhecer e categorizar imagens. Ao alimentar os algoritmos com milhões de imagens, o software desenvolveu a sua própria forma de reconhecer padrões. Conforme melhorava, a tecnologia de IA tornou-se popular para o reconhecimento facial e uma grande variedade de outras funções.
Os líderes do setor de tecnologia previram imediatamente que áreas médicas como radiologia e dermatologia, que exigem dos médicos aprender as diferenças sutis nas imagens de raios-X e das manchas na pele de seus pacientes, seriam totalmente afetadas pela IA.
Em 2017, o American College of Radiologists (ACR), sociedade que representa os radiologistas, criou um Instituto de Ciência de Dados para estudar a IA, orientar seus associados sobre os usos e riscos da tecnologia – e ser uma voz pública dos médicos que os líderes do setor de tecnologia disseram estar prestes a perder seus empregos. O grupo não se opõe à IA, mas insiste que os médicos devem estar sempre no centro da decisão.
Embora os executivos da tecnologia ainda citem a radiologia como um área que será abalada pela IA, a maioria dos radiologistas não a usa, apesar das inúmeras ferramentas disponíveis, segundo um estudo de 2021 do Instituto da ACR.
“Apesar do falatório enorme em torno da IA nos últimos cinco anos, nossa pesquisa descobriu que menos de 30% dos membros da ACR estão usando IA em seu processo de trabalho clínico”, escreveu o grupo num post de blog que anunciava o estudo.
Durante anos, os pilotos também fizeram lobby contra as companhias aéreas que tentaram substituí-los por automação. Desde o século 20, os voos comerciais deixaram de ter quatro ou cinco tripulantes na cabine e agora raramente têm mais de dois. Uma tecnologia melhor e automação permitiram às companhias aéreas eliminar navegadores, operadores de rádio e um terceiro piloto, restando apenas o piloto e o copiloto.
Entretanto, mesmo com os avanços tecnológicos do piloto automático, os pilotos humanos se opuseram firmemente às tentativas de reduzir as tripulações de cabine a uma pessoa.
“Dois pilotos experientes, bem treinados e descansados na cabine são o dispositivo de segurança mais crucial em qualquer voo comercial”, disse Joe DePete, presidente da Air Line Pilots Association, sindicato que representa milhares de pilotos dos EUA e do Canadá, em 2022, em resposta a uma leva de notícias sugerindo que os robôs pilotos eram algo prestes a se tornar realidade. “A associação vai continuar a se opor aqueles que almejam reduzir – ou eliminar completamente – esse dispositivo de segurança vital.”
As agências reguladoras da aviação também manifestaram preocupações em relação a como a automação pode tornar os pilotos mais acomodados. O excesso de confiança na tecnologia foi um fator determinante nos casos em que as aeronaves atingiram fios ou caíram antes de chegar às pistas de pouso, de acordo com um memorando de 2022 da Administração Federal de Aviação (FAA, na sigla em inglês).
“O aspecto mais traiçoeiro da automação é sua propensão a gerar complacência e minar a confiança dos pilotos”, escreveu a FAA no memorando. “Quanto mais tempo usamos o piloto automático, menos tempo sobra para manter nossas habilidades práticas.”
Normas
As greves em Hollywood são elucidativas, disse Acemoglu. A WGA propôs normas a respeito de como a IA pode ser usada para criar material original ou reescrever obras literárias, mas os executivos da indústria cinematográfica se opuseram a organizar reuniões anuais para discutir a tecnologia.
Já o sindicato dos diretores chegou a um acordo provisório com cláusulas confirmando que “a IA não é uma pessoa e que as funções desempenhadas pelos associados não podem ser substituídas pela IA generativa”.
Embora seja encorajador que os diretores tenham conquistado concessões dos estúdios de cinema, disse Acemoglu, é mais importante observar como os estúdios negociarão com os roteiristas, que estão em greve desde o início de maio.
“Há bem menos diretores, então eles têm mais poder”, acrescentou. “Há tantos roteiristas... por isso eles talvez não sejam poderosos o bastante.”/ TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA