A forma com que o avanço de tecnologias afeta nosso comportamento pode ser tudo, menos irrelevante. O que começa provocando rejeição acaba normalizado.
Lembremos que, na introdução do automóvel, houve diversas preocupações sobre segurança e direitos dos pedestres, a ponto de se sugerir que um arauto precedesse o veículo anunciando sua chegada. Hoje, isso é certamente risível, mas é óbvio que um novo equilíbrio de direitos e deveres se implantou: ruas, com semáforos e passagem definida para pedestres, estabelecendo-se um novo paradigma.
Nas famílias buscava-se, por exemplo, adquirir uma enciclopédia. Ter uma enciclopédia em casa mudava a quantidade de idas às bibliotecas, já que nos dava acesso ágil a muitas informações. Claro que ir às bibliotecas seguia importante como acesso à literatura e, em muitos casos, como um exercício de serendipidade! Quantas vezes um livro não nos “acenou” da prateleira, e acabamos por levá-lo para casa, mesmo não sendo o que tínhamos ido buscar?
Eis aí outro ponto de inflexão: com as maravilhosas ferramentas de busca eletrônica varremos hoje rapidamente milhões de referências.
Essa mudança nos livra do trabalho de garimpagem em longos textos – basta recolher resultados que o buscador encontrou. E, com a chegada dos aplicativos de conversa e busca munidos de IA, nem mais precisamos examinar as muitas opções trazidas: já há uma resposta formatada, que agrega os conteúdos acessados pelo aplicativo.
Mas será que essa uniformidade também não representaria um empobrecimento da análise de eventuais opções? O novo oráculo não seria o início de uma exposição ainda maior a riscos automáticos de homogeneização? Ou isso será também normalizado? O carro autoguiado é apenas uma extensão do automóvel ou traz novos dilemas éticos e concessões a serem feitas? É aceitável submeter um texto gerado por IA a uma revista científica? E quando IA passar a tomar ainda mais decisões no nosso dia a dia, nossos paradigmas e conceitos mudarão?
Essa espiral, em que ações retornam mas em outro nível, lembrou-me que Karl Marx, no “18 Brumário de Luiz Bonaparte”, e comparando o que ocorria em 1848 com a revolução francesa de 1789, postulou: o que fora originalmente uma tragédia se repete em farsa.
Revendo os interessantes mas perturbadores e distópicos textos de ficção-científica, que todos lemos sabendo ficção e, portanto, farsa, será que constataremos uma inversão da tese de Marx? Será que agora é a farsa que se repetirá como tragédia?