A internet no banco dos réus

Proibindo imagens de Cristiano Araújo na Internet: uma análise


Por Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

Por Mariana Giorgetti Valente

As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.

Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.

Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.

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A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".

 Foto: Estadão
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Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".

Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.

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A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.

Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.

Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!

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Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.

As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.

Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.

Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.

A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".

 Foto: Estadão

Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".

Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.

A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.

Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.

Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!

Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.

As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.

Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.

Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.

A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".

 Foto: Estadão

Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".

Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.

A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.

Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.

Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!

Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.

As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.

Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.

Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.

A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".

 Foto: Estadão

Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".

Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.

A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.

Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.

Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!

Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.

As redes sociais têm sido espaço privilegiado de expressão de sentimentos em momentos de tragédia ou comoção, pessoal ou pública. Os seus usos incorporam-se aos hábitos; já é possível prever que a morte de alguém famoso vai repercutir no nosso feed do Facebook ou Twitter, com homenagens, críticas póstumas, reflexões. Em geral, o WhatsApp costuma ser o lugar onde conteúdos mais controversos são veiculados: piadas, memes, e, quando o mau gosto atinge seu ápice, imagens e vídeos da própria tragédia.

Na semana passada, mais uma no meio do fluxo ininterrupto de de nascimento e morte das polêmicas de Internet, uma ficou um pouco mais. Foi o caso do vazamento das imagens da autópsia e embalsamento do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Ambos faleceram em um acidente de carro na semana passada, e tiveram esse registro veiculado massivamente pelas redes.

Não é preciso ser a pessoa mais sensível do mundo para entender o sofrimento que a viralização de imagens como essa causa nas famílias e em pessoas próximas às vítimas. Desafia também a nossa compreensão que conteúdos tão mórbidos e desrespeitosos ganhem tração tão facilmente na rede.

A empresa que gerenciava a carreira de Cristiano, a CA Produções Artísticas, teve a iniciativa de tentar cortar a cadeia de viralização, derrubando ou bloqueando acesso às imagens. Nessa tentativa, entrou com uma ação na Justiça do Estado de Goiás, contra o Google e o Facebook. Observando que as plataformas controladas por essas empresas estavam repletas de cópias das imagens, a empresa entrou com um pedido de liminar para "a suspensão imediata da veiculação de todos os arquivos com conteúdo relacionado a imagem do cantor Cristiano de Melo Araújo após o seu óbito, nos procedimentos de autópsia e preparação de corpo, bem como imagens e vídeos feitos no local do acidente expondo a imagem dos corpos, sob pena de multa diária".

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Sensibilizado, o juiz do caso não teve dúvidas ao conceder a liminar e determinar que as empresas tomassem "todas as providências cabíveis a fim de fazer cessar, imediatamente, a disseminação de tais imagens degradantes na rede mundial de computadores".

Na ansiedade de proteger as famílias do casal, o juiz sequer citou o Marco Civil da Internet, lei que claramente se aplica ao caso. Em trecho da decisão, o magistrado afirmou, sem explicar muito, que os provedores de Internet seriam solidariamente responsáveis pelo dano causado às famílias. Não é o que diz o Marco Civil. Segundo essa lei, a responsabilidade das plataformas pelo dano causado por conteúdo que é postado pelos usuários só existe caso as plataformas descumpram ordem judicial para retirar a postagem - e não a obedeçam. A regra existe para que plataformas como o YouTube não sejam incentivadas a indisponibilizar conteúdos postados por usuários a seu bel-prazer.

A partir do momento que a decisão do juiz determinou a remoção do conteúdo, aí, sim, de acordo com o Marco Civil, a plataforma torna-se responsável também, se não tornar as providências para cumprir a ordem e tornar o conteúdo indisponível - mas não antes disso, como o juiz dá a entender. Mas não foi só nesse ponto que o Marco Civil foi ignorado: ele determina que, para não ser nula, a ordem judicial deve conter "identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material". Isso quer dizer, por exemplo, indicar os URLs (Uniform Resource Locators) das imagens, seus endereços na rede. É por meio de localizadores como esses, inequívocos, que Googles, Facebooks ou quaisquer outros provedores podem saber que aquele conteúdo está de fato sob seu controle e de qual conteúdo se está falando.

Esse problema, que parece tão pequeno técnico, está imbuído de discussões nada fáceis. Por um lado, a exigência de indicação de todas as URLs para remoção de um conteúdo indesejado pode parecer excessiva, do lado de quem tem um interesse legítimo nisso: imagens e vídeos vão sendo reproduzidos e postados em URLs distintas - enquanto o autor da ação espera o resultado, outras já surgiram. De outro lado, uma ordem que não indica a localização do conteúdo a ser removido com precisão pode fazer com que materiais que não são ilegais sejam removidos das plataformas. Ou, ainda, a generalização de ordens como essa poderia levar as plataformas ao exercício de um controle editorial absoluto sobre tudo que se posta na rede - o que é evidentemente indesejável.

Um outro problema da decisão genérica do juiz nesse caso foi a ordem para que Google e Facebook tomem providências para "fazer cessar a disseminação de imagens da rede mundial computadores". Elas são grandes e importantes, mas não têm poder para fazer cessar a veiculação de algo na Internet como um todo - ainda bem!

Não é simples viver num mundo com as vantagens e desvantagens de qualquer conteúdo poder chegar ao alcance de muitos, e sobretudo não estamos ainda completamente habituados a essa liberdade. Mas se algumas situações são de fato estarrecedoras, parece ser função do Judiciário a análise menos apaixonada dos fatos. É dele que esperamos uma visão conjuntural sobre a consequência das decisões e a consideração às leis que já existem (que foram fruto de debate e deliberação sobre a Internet que queremos ter). Essas discussões não são inócuas: as regras que a Justiça estabelece para casos como esse determinam o grau de liberdade de expressão que teremos também para outros - para fortalecer nossa capacidade de diálogo e nossas qualidades morais. De qualquer perspectiva, é incômodo que pessoas tenham compartilhado as fotos de Cristiano e Allana. Da perspectiva dos demais direitos envolvidos, é incômodo que o Marco Civil tenha sido ignorado para que a questão se resolvesse.

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