WASHINGTON - Em um panfleto distribuído no entorno do Capitólio na semana passada, a empresa SpaceX, de Elon Musk, alertava que um projeto de legislação considerado atualmente pretende recompensar “Jeff Bezos com um prêmio de US$ 10 bilhões, sem concorrência”, o que atravancaria planos da Nasa para a Lua e entregaria “a liderança (no campo) espacial para a China”.
A empresa espacial Blue Origin, de Bezos, refutou rapidamente e com veemência: “Mentira. Mentira. Mentira”, afirmou Blue Origin a respeito de cada uma das alegações da SpaceX. E acrescentou: “Do que Elon Musk está com medo… de um pouco de competição?” (Bezos é dono do Washington Post)
Os documentos em disputa são o mais recente ponto de tensão na rivalidade já antiga entre dois dos mais ricos bilionários do mundo, “barões espaciais” que se atracam há anos em busca de privatizar a exploração do espaço sideral. Musk e Bezos brigaram a respeito de uma plataforma de lançamento no Centro Espacial Kennedy, disputaram uma patente de foguetes com sistema de pouso e discutiram a respeito de qual deles dominou primeiro essa tecnologia.
A SpaceX, de Musk, e a Amazon, de Bezos, também competem para colocar milhares de satélites na órbita da Terra, capazes de transmitir sinal de internet para estações na superfície do planeta.
Agora eles estão em guerra por outro prêmio - transportar os primeiros astronautas para a Lua desde que a última missão Apollo visitou o satélite, em 1972.
No mês passado, a SpaceX venceu uma cobiçada licitação da Nasa para construir uma espaçonave para transportar astronautas da Nasa entre a Terra e a Lua, como parte do programa Artemis da agência espacial. Foi uma vitória impressionante - que praticamente ninguém de fora da Nasa havia antecipado, especialmente desde que a Blue Origin e sua “equipe nacional”, formada por Lockheed Martin, Northrop Grumman e Draper, havia se saído melhor na rodada inicial de licitações. Na rodada final da licitação do contrato para próxima missão à Lua, porém, a SpaceX não derrotou somente a Blue Origin: derrotou também a proposta da Dynetics, uma empresa do setor militar com sede no Alabama.
Quase imediatamente, porém, as duas empresas perdedoras se queixaram e procuraram o Escritório de Prestação de Contas do Governo, alegando falhas no processo de contratação. Mas a Blue Origin deu um passo além, fazendo lobby no Congresso para que a Nasa licitasse dois contratos para o que é conhecido como Sistema de Aterrissagem Humana (SAH).
E na semana retrasada, a senadora Maria Cantwell, do Partido Democrata, presidente da Comissão de Comércio, Ciência e Transportes, intercedeu a favor da Blue Origin acrescentando texto a um outro projeto de legislação, conhecido agora como “Lei de Inovação e Competição nos EUA”, exigindo que a Nasa licite um segundo contrato e afirmando que o Congresso deveria gastar outros US$ 10 bilhões para financiá-lo.
A emenda foi aprovada na comissão e será encaminhada para votação no Senado. Para se tornar lei, precisará também ser aprovado pela Câmara dos Deputados, e a designação orçamentária ainda precisaria alocar os US$ 10 bilhões do financiamento - missão complicada em meio a uma pandemia. A disputa continuou nos dias recentes, quando o projeto foi revisado para incluir que a Nasa não poderá “modificar, encerrar ou rescindir” o contrato da SpaceX.
Ainda assim, a emenda de Cantwell demonstra a crescente influência de Bezos na capital americana. A Amazon, de Bezos, foi uma das maiores doadoras de Cantwell durante seu mandato no Senado. A emenda talvez não seja uma surpresa, já que Cantwell representa o Estado de Washington, lar tanto da Amazon quanto da Blue Origin.
Nos anos recentes, a Blue Origin também tem reforçado sua operação na capital do país. A empresa gastou aproximadamente US$ 2 milhões fazendo lobby no ano passado; em 2015, esse gasto foi de pouco mais de US$ 400 mil, de acordo com o site OpenSecrets.org, que rastreia gastos. O comitê de ação política da empresa também elevou suas doações em 2020, para US$ 320 mil, contra US$ 22 mil em 2016.
A emenda se tornou rapidamente outro ponto em disputa. A SpaceX atacou primeiro. “A emenda de Cantwell mina o processo de licitações do governo federal, recompensa Jeff Bezos com um prêmio de US$ 10 bilhões, sem concorrência, e jogará o programa Artemis da Nasa em anos de litígios”, afirmou o panfleto da empresa.
"Blue Origin e seus fornecedores perderam a competição pelo SAH depois de propor uma solução inferior e de preço mais de duas vezes maior do que a proposta ganhadora”, afirmou. E acrescentou que, apesar de a SpaceX ter vencido a competição, a emenda “cria o que é, na verdade, um prêmio para a Blue Origin, sem licitação, o que viola a Lei de Concorrência nos Contratos."
O panfleto ressaltou que a Blue Origin recebeu centenas de milhões de dólares da Nasa e do Pentágono por contratos preliminares, mas que o governo “escolheu não seguir com aBlue Origin após os principais desdobramentos do contrato”.
A SpaceX disse que a empresa de Bezos “não produziu nenhum foguete nem espaçonave capaz de entrar em órbita”. Esse ponto foi amplificado por Musk no Twitter, afirmando que a empresa “não consegue nem voar”.
A Blue Origin contra-atacou com um panfleto próprio endereçado aos legisladores. “Elon Musk fala repetidamente a respeito do valor da competição, mas, quando se trata do Sistema de Aterrissagem Humana da Nasa, ele quer tudo só para si”, afirmou o texto. E o panfleto notou que Musk processou a Força Aérea pelo direito de competir contra a United Launch Alliance por contratos de plataformas de lançamento do Pentágono.
A empresa qualificou como “mentira" a acusação da SpaceX de que a emenda teve intenção de beneficiar a Blue Origin e afirmou que a emenda permitiria que duas equipes construíssem módulos de aterrissagem. “Dois provedores promovem uma competição que garante maior segurança e uma missão bem-sucedida por meio de suas diferentes abordagens, enquanto, ao mesmo tempo, isso controla gastos.”
A empresa alegou que o processo de seleção da Nasa “foi diferente para cada proponente” e que a SpaceX teve oportunidade de “reajustar o valor” de seu lance “com base em nova informação sobre orçamento fornecida pela Nasa, que não foi disponibilizada para os outros proponentes”.
A preferência da Nasa pela SpaceX não acabou aí, afirmou a Blue Origin. A Blue Origin acusou a agência espacial de rebaixar incorretamente a avaliação de vários de seus projetos técnicos, que a Nasa “havia previamente revisado, aprovado e aceitado”. A empresa acrescentou que, ao escolher somente a SpaceX “a Nasa coloca o retorno do país à Lua inteiramente nas mãos da SpaceX e sua capacidade de realizar a proposta que sugeriu - a Starship e o novo propulsor Super Heavy - apesar da ‘imensa complexidade’ e ‘elevado risco’ que a própria Nasa registrou” no documento da seleção.
A Nasa afirmou que pretendia financiar dois contratos, mas tinha dinheiro somente para um. Inicialmente, a Nasa afirmou que o “atual orçamento deste ano fiscal não previa nem mesmo uma contratação”. Como resultado, foi permitido à SpaceX atualizar sua agenda de pagamentos para a proposta de US$ 2,9 bilhões, para que o valor se adequasse “ao atual orçamento da Nasa”.
A Nasa notou que a nova agenda de pagamentos da SpaceX “não propôs uma redução no preço total” e que a SpaceX “foi proibida de alterar o conteúdo de suas propostas técnicas e gerenciais”. A SpaceX também se saiu melhor do que a Blue Origin em sua “avaliação de gerenciamento”, de acordo com a Nasa.
História
Musk e Bezos fundaram suas empresas de exploração espacial mais ou menos na mesma época - a Blue Origin em 2000; e a SpaceX em 2002. Mas a SpaceX avançou muito mais rapidamente e conquistou muito mais. A empresa colocou seu primeiro foguete em órbita em 2008 e depois ganhou lucrativos contratos da Nasa e do Pentágono. A Nasa usa a empresa para transportar cargas e suprimentos para a Estação Espacial Internacional e, desde o ano passado, a SpaceX lançou três missões com astronautas para o laboratório em órbita.
A Blue Origin, em contraste, avançou a um passo mais vagaroso, imitando seu mascote, a tartaruga. Enquanto seu foguete New Shepard voou 15 vezes e se prepara para sua primeira missão tripulada, a nave nunca entrou em órbita; em vez disso, chega à beira do espaço sideral, a cerca de 105 quilômetros de altitude, e depois cai de volta à Terra.
Depois de perder a licitação por um lucrativo contrato do Pentágono, a empresa afirmou que o primeiro voo de seu gigantesco foguete New Glenn, que seria capaz de transportar cargas para a órbita terrestre, seria postergado para o segundo semestre do ano que vem. Originalmente, Bezos dizia que a nave voaria até 2020.
Bezos afirmou que pretende deixar o cargo de diretor executivo da Amazon ainda este ano, e muitos na comunidade espacial, incluindo Musk, disseram esperar que ele coloque mais sua atenção na Blue Origin.
Gwynne Shotwell, presidente da SpaceX e diretora de operações da empresa, cutucou aBlue Origin durante uma conferência, em 2019, citando seu vagaroso progresso.
“Acho que engenheiros pensam melhor quando são pressionados com toda força para realizar grandes coisas em um curto período de tempo, com poucos recursos. Não quando têm prazos de 20 anos”, disparou Shotwell. “Não acho que existe motivação ou ímpeto por lá.”
Entrar em órbita tem sido um ponto de tensão entre as empresas. Em 2013, quando a SpaceX estava em negociações para arrendar o uso da plataforma de lançamento 39A no Centro Espacial Kennedy, pertencente à Nasa, a Blue Origin intercedeu afirmando que também queria concorrer pelo uso da plataforma.
Isso indignou Musk, que ressaltou que a Blue Origin ainda não colocou nenhum foguete em órbita. Musk afirmou em um e-mail ao SpaceNews que, “se eles quiserem comparecer de alguma maneira nos próximos cinco anos com um veículo qualificado para os padrões da Nasa para transporte humano, capaz de se acoplar com a estação espacial, que é a função da plataforma 39A, acomodaremos as necessidades deles alegremente".
Mas ele acrescentou, “Francamente, acho mais fácil descobrirmos unicórnios dançando nas chamas dos dutos de exaustão".
No ano seguinte, a Blue Origin registrou a patente de propulsores de foguetes para pousos em navios - um feito que a SpaceX trabalhava para aperfeiçoar e outras empresas também idealizavam. A SpaceX questionou a patente - e venceu. Em uma entrevista ao Post na época, Musk afirmou que “tentar patentear algo que as pessoas têm discutido há meio século é obviamente ridículo”.
No ano seguinte, a Blue Origin aterrissou uma de suas naves New Shepard, e Bezos escreveu no Twitter que o veículo era “o que há de mais raro - um foguete usado”.
“Não exatamente ‘a coisa mais rara’”, tuitou Musk em resposta, apontando para o fato de a SpaceX ter lançado anteriormente foguetes de teste que voaram e pousaram.
No mês seguinte, quando a SpaceX aterrissou seu foguete Falcon 9 pela primeira vez, Bezos tuitou, “Bem-vindos ao clube!”. Musk assimilou o golpe, já que o foguete Falcon 9 é muito mais potente que o New Shepard e retornou à Terra depois de transportar uma carga à órbita.
Musk deu outra declaração este mês, quando a SpaceX pousou pela primeira vez um de seus protótipos Starship. Era o primeiro voo da nave com a qual a empresa pretende transportar astronautas na Nasa à Lua, desde que venceu a licitação - um sinal de seriedade no desenvolvimento de equipamentos de voo.
A empresa pretende emitir um outro comunicado quando tentar fazer a nave voar novamente, um teste de voo que, recentemente, Musk afirmou que ocorrerá “logo”. A empresa também pretende levar a Starship à órbita ainda este ano. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL