Quando Elon Musk apresentou um plano ambicioso para comprar a empresa de energia solar SolarCity em 2016, o então diretor financeiro da Tesla o apelidou internamente de “Projeto Ícaro” – um detalhe que veio a público num julgamento na semana passada, quando Musk tomou posição para defender o polêmico negócio de US$ 2,6 bilhões. “Você se deu conta que isto significa voar muito perto do sol?”, perguntou o advogado dos demandantes, Randall Baron, ao presidente executivo da Tesla, referindo-se à sua oferta pela SolarCity.
O julgamento é, num certo sentido, uma disputa comercial sobre o negócio da SolarCity, que alguns acionistas da Tesla veem como um desastre que Musk forçou para impulsionar seus próprios objetivos – a SolarCity era administrada por seus primos, ele era coproprietário e estava em crise financeira quando a Tesla a comprou. Mas, para Musk, tem mais coisa em jogo. O caso é também um referendo sobre sua própria liderança, integridade e visão. Em outras palavras: é um modo de saber se ele é Dédalo, o mentor engenhoso, ou Ícaro, aquele que flerta com o desastre e está fadado a uma queda trágica.
Na mitologia grega, Dédalo foi um inventor brilhante que criou asas para que ele e seu filho, Ícaro, escapassem da prisão. Dédalo avisou Ícaro para não voar muito perto do sol. Mas Ícaro, inebriado com o poder de voar, não se conteve. Dédalo sobreviveu. Ícaro queimou as asas e morreu.
A resposta sobre o julgamento é importante e não só para Elon Musk. Ele agora lidera duas empresas, Tesla e SpaceX, a cujos produtos as pessoas confiam suas vidas, literalmente. Ambas ultrapassaram os limites do que é considerado possível – e do que é considerado seguro. Assim como as asas de Dédalo, a tecnologia de “piloto automático” da Tesla e as missões espaciais tripuladas da SpaceX exigem enorme fé na tecnologia e expõem seus usuários a novos riscos. Portanto, a confiabilidade de Musk é, num sentido bastante concreto, uma questão de vida ou morte.
Os momentos mais iluminadores do julgamento foram aqueles em que se explicitaram as questões centrais que há muito tempo assombravam a carreira de Musk. Ele é um visionário ou um vendedor ambulante? Um gênio do marketing ou um troll narcisista?
A segunda pessoa mais rica do mundo, de acordo com alguns critérios, poderia facilmente ter se dado ao luxo de resolver o caso da SolarCity fora do tribunal, como todos os outros membros do conselho da Tesla fizeram no ano passado. Em vez disso, ele escolheu brigar. E, então, em uma sombria sala de tribunal de Delaware, ele defendeu sua reputação contra um advogado que pretendia denunciá-lo como uma fraude, no mesmo momento em que seus colegas bilionários Richard Branson e Jeff Bezos estavam em vários estágios de suas aventuras no espaço.
O custo dessa defesa é um novo exame do histórico sobre Musk e, por consequência, sobre sua aptidão para liderar. No depoimento, Musk não fez nenhum favor a si mesmo ao chamar Baron de “um ser humano ruim” – ou ao insistir que ele “meio que odeia” ser CEO da Tesla. Mas suas trocas com Baron ofereceram em várias ocasiões uma visão sobre como Musk se vê e como ele justifica ações que outros consideram preocupantes ou incompreensíveis.
Por exemplo: por que Musk costuma fazer promessas irrealistas? Isto faz dele uma pessoa desonesta ou é a chave de seu sucesso?
Mais especificamente, Baron pressionou Musk a respeito de seu grande plano para um “telhado solar”: um telhado para casas que seria feito de painéis solares. Ele revelou a ideia em 2016, em parte para justificar o acordo com a SolarCity, e em determinado momento afirmou que estaria pronto para implantação generalizada no ano seguinte – uma afirmação ousada para o que, na época, era um conceito nada funcional. Cinco anos depois, o telhado ainda não está em produção em massa, embora Musk não tenha desistido.
“Tenho o hábito de ser otimista com os cronogramas”, disse Musk. “Se eu não fosse otimista, não acho que teria fundado uma empresa de carros elétricos ou de foguetes”.
Baron não estava comprando a ideia. “É mais do que otimista”, disse ele sobre os prazos do telhado solar. “É simplesmente mentira”.
Dois lados
Então Musk é otimista ou mentiroso? A verdade pode ser um pouco de cada coisa: seja sua previsão de um telhado solar em 2017, um Tesla totalmente autônomo em 2018 ou um milhão de robô-táxis nas ruas em 2020, Musk muitas vezes falha em cumprir o prometido. E, no entanto, é essa mesma ambição ultrajante que levou suas empresas a realizações que poucos pensavam possíveis, desde liderar uma revolução elétrica na indústria automotiva até o pioneirismo na exploração comercial do espaço.
Da mesma forma, as travessuras e os tuítes bizarros de Musk – desde se coroar “Rei da Tecnologia” da Tesla num processo federal até vender lança-chamas, fumar maconha no podcast de Joe Rogan e batizar seu filho X Æ A-12 – podem ser vistos de duas maneiras. Um ponto de vista é que ele é um idiota imaturo, mimado e sem autocontrole. O outro, que o próprio Musk sugeriu no tribunal esta semana, é que ele é um marqueteiro e showman inventivo.
Baron apresentou a manobra do “Rei da Tecnologia” como um exemplo da disposição de Musk em colocar seus próprios caprichos acima dos interesses da empresa. Musk respondeu que seus caprichos são, na verdade, estratégicos. “Quando fazemos entretenimento, as pessoas escrevem histórias sobre nós e não precisamos gastar dinheiro com publicidade, o que aumentaria o preço de nossos produtos”, disse ele.
Isso pode soar como um exagero, particularmente quando se trata de algumas das manobras mais imprudentes de Musk, como o tuíte sobre “investimento garantido” que lhe custou a presidência da Tesla ou sua intromissão inútil num esforço de resgate numa caverna na Tailândia. Mas não há como negar que ele teve sucesso em transformar a Tesla num nome famoso em todo o mundo sem fazer um único comercial de carro. Mais uma vez, as duas coisas podem ser verdadeiras: Musk é um tagarela imprudente e ególatra, mas também um mestre da mídia.
Parece improvável que, de todas as crises que Musk enfrentou até agora, o processo dos acionistas sobre a aquisição da SolarCity seja aquele que irá derrubá-lo. Por mais inconveniente que o negócio pareça de muitos ângulos, ele não evitou que as ações da Tesla disparassem, e Musk foi convincente ao dizer que a energia solar continua sendo uma aposta plausível de longo prazo para a empresa. E a eventual derrota no processo não prejudicaria muito sua conta bancária.
Mas, voltando à metáfora de Dédalo e Ícaro, havia um ponto-chave que Musk parecia ignorar. Dédalo pode ter sobrevivido à fuga – escapando de um labirinto que ele próprio criara, aliás. Mas a morte de Ícaro estava em suas mãos e isto o assombrava. Elon Musk chegou até aqui voando mais perto do sol do que qualquer figura no mundo dos negócios. Nem todo piloto automático da Tesla teve a mesma sorte. E à medida que mais e mais pessoas confiam na tecnologia de suas empresas, sua postura ousada levanta preocupações justificáveis sobre se ele dá a devida prioridade à segurança.
Afinal, não é com a sobrevivência de Musk que o restante de nós precisa se preocupar. É com a sobrevivência das pessoas que usam suas engenhocas. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU