Dia de semana, trânsito congestionado, compromisso atrasado: a pessoa sai do metrô e abre o aplicativo Uber. Em vez de pedir um carro, avalia se vale mais a pena sair pedalando de bicicleta elétrica, pegar um ônibus ou até mesmo se arriscar num patinete. Há um ano, quando Travis Kalanick ainda comandava a empresa, a cena acima seria impensável. Hoje, com o iraniano Dara Khosrowshahi na liderança, essa visão é nada menos que o plano de um futuro não muito distante para a segunda startup mais valiosa do mundo: o de virar uma central de mobilidade, na palma da mão do usuário.
No cargo desde agosto de 2017, Khosrowshahi assumiu o Uber sob pressão. Seu antecessor foi o homem que fez a startup se tornar um império, mas cometeu muitos erros pelo caminho até deixar a empresa em junho de 2017: foi incapaz de evitar assédio sexual e moral na companhia, usou softwares para espionar rivais e autoridades e foi acusado de roubar tecnologias de um de seus maiores rivais, a Waymo, divisão de carros autônomos do Google. Para piorar, ainda encobriu uma falha de segurança que afetou 57 milhões de pessoas.
Em 10 meses, Khosrowshahi arrumou a casa e conseguiu mostrar que há um rumo para o Uber. Ele começou sua jornada com uma volta ao mundo, com paradas no Brasil e na Inglaterra, para mostrar que está disposto a colaborar com governos.
Depois, começou a cortar custos e se livrar de negócios deficitários – entre eles, as operações no Sudeste Asiático e na Rússia. Nas duas regiões, vendeu o negócio para rivais, forjando alianças. “Era uma briga de foice, mas ele conseguiu sair por cima”, diz Paulo Furquim de Azevedo, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper. Além disso, fez a empresa dar lucro pela primeira vez e acertou a rota para o Uber abrir seu capital em 2019.
Amigos e rivais. Para encerrar, trouxe o britânico Barney Harford para o cargo de diretor de operações do Uber – desde dezembro, ele é o número 2 da companhia. Harford e Khosrowshahi trabalharam juntos no site de turismo Expedia, nos anos 2000. Depois, foram rivais, enquanto Harford estava à frente da concorrente Orbitz. Em 2015, a startup foi comprada pela Expedia por US$ 1,6 bilhão e os dois se uniram novamente – quando o iraniano foi para o Uber, o britânico foi junto. “Sou uma pessoa focada nos detalhes sobre como operamos nosso serviço. O Dara é o líder que tem a visão”, disse Harford, em entrevista exclusiva ao Estado.
Em abril, Khosrowshahi mostrou a sua visão de futuro para o Uber, ao anunciar que o app será uma central de transportes. Além de viagens em carros, será possível requisitar uma bicicleta elétrica, alugar um carro ou comprar uma passagem de metrô, em sistemas integrados com as redes de transporte público de grandes cidades. No futuro, essa estratégia inclui ainda carros autônomos e voadores. “Os carros são para o Uber como os livros são para a Amazon”, explica Harford.
Lembre as recentes polêmicas envolvendo o Uber
Geolocalização. A ideia é aproveitar a base de usuários que o Uber já tem e faturar com outros modelos de negócios, num momento em que a competição no mercado de caronas pagas se acirra. “Eles têm uma plataforma com GPS que está no bolso de milhões de pessoas. Onde for possível gerar valor com isso, eles vão estar”, diz Furquim.
Para Michael Ramsey, diretor de pesquisas da consultoria Gartner, a inspiração é evidente. “No Expedia, o usuário pode reservar todas as partes de uma viagem. Dara quer fazer a mesma coisa com o Uber.”
Oferecer novos serviços vai aumentar a complexidade da operação do Uber – hoje, a empresa promove, todos os dias, 15 milhões de “encontros” entre motoristas e passageiros. Agora, imagine a dificuldade de calcular o mesmo problema (o deslocamento), só que com diferentes variáveis, como metrô, ônibus ou bicicletas – e tudo integrado num único aplicativo.
Nos carros, o Uber teve a vantagem de ser pioneiro. Na nova fase, porém, terá de entrar em mercados nos quais já há competidores bem estabelecidos. “Quem usa o Uber e quer uma bicicleta estará melhor atendido do que quem usa um app de bikes e busca um carro”, avalia Ramsay. “No fim das contas, cada novo modal é só um serviço extra.”
O analista da Gartner, porém, tem dúvidas se a empresa terá sucesso caso ofereça apenas os próprios serviços ao tentar agir como um agregador de transportes. “Para o usuário, importa mesmo o tempo de deslocamento e o preço, não a marca”, diz. Assim, a empresa pode se beneficiar caso também ofereça seus serviços com outros integradores de transportes – algo que já acontece, por exemplo, com o israelense Moovit. “Ela terá menor participação na corrida, mas também menor esforço para conquistar viagens.”
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O 'Link' pode dar uma volta no veículo autônomo da empresa em Pittsburgh e explica nesse vídeo como a tecnologia funciona
Terra sem lei. Em longo prazo, o Uber pode mudar radicalmente, graças aos carros autônomos e voadores. Sem motoristas, ambos “têm o potencial de reduzir o custo operacional de cada quilômetro viajado, aumentando a receita da empresa”, como explica a professora da Universidade de Berkeley, Susan Shaheen.
No entanto, são tecnologias que ainda não estão prontas e precisam ser regulamentadas. Não à toa, o Uber decidiu iniciar testes do carro voador, a partir de 2020, em Dallas, onde estão as principais autoridades regulatórias de aviação dos EUA. A operação comercial está programada para 2023. O carro autônomo, por sua vez, dificilmente estará nas ruas antes de 2020, por conta da pausa no projeto após um acidente fatal no Arizona.
Até lá, Khosrowshahi vai ter de tomar outra decisão: ter a propriedade ou não dos veículos que o Uber compartilha. “Hoje, o Uber usa ativos de outras pessoas”, diz Ramsay. “Se tiverem os veículos, terão o controle da própria tecnologia, mas também os custos atrelados à operação desses veículos.”