A decisão da Justiça americana contra o Google, publicada na tarde de segunda-feira, 5, pode chacoalhar a relação entre o governo dos Estados Unidos e as grandes empresas de tecnologia, iniciando uma batalha que pode levar anos entre as companhias e os órgãos reguladores de mercado.
“O Google é um monopolista e tem agido como tal para manter seu monopólio”, diz a decisão de 277 páginas proferida pelo juiz americano Amit P. Mehta, do tribunal distrital dos EUA para o distrito de Columbia.
A decisão vem após um longo processo movido pelo Departamento de Justiça do governo federal, junto com Estados americanos, contra o Google. A disputa teve início em 2020 e o julgamento durou 10 semanas no ano passado, com fim em novembro de 2023.
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A acusação é a de que o Google consolidou o próprio domínio no mercado de buscas ao pagar bilhões de dólares ao ano para outras empresas, como Apple, Samsung e Mozilla (do browser Firefox), integrarem automaticamente o buscador da companhia aos celulares e navegadores desses dispositivos. Isso teria minado a concorrência e beneficiado diretamente os algoritmos da empresa, que se aprimoram com o maior número de usuários usando a plataforma. Segundo os autos, o Google pagava US$ 26 bilhões ao ano para essas companhias, dos quais US$ 20 bilhões iam somente à Apple.
O juiz Mehta ainda não definiu quais vão ser os “remédios” para a prática monopolista do Google. Essa sentença, considerada uma segunda parte do processo, pode demorar meses e pode incluir de multas a até soluções para que o buscador da empresa pare de ser oferecido como padrão aos dispositivos, o que pode causar efeitos graves para o negócio da companhia.
O Google, sob a empresa-mãe Alphabet, anunciou que vai recorrer da decisão.
Para o advogado Caio Machado, pesquisador em direito digital pela Universidade de Oxford (Reino Unido), o grande mérito da decisão é expor em detalhes como o Google trabalhou para se colocar como uma parte da infraestrutura da internet, ao minar a concorrência e usar contratos financeiros para ganhar mercado.
“O mercado tende a assumir que já vir um buscador num aparelho não faz uma diferença gigantesca (para o negócio da companhia). Mas houve uma estratégia (por parte do Google) em se colocar como o padrão nos navegadores e que isso fez diferença para os consumidores e concorrentes”, explica Machado.
O advogado e diretor da organização Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, frisa que essa é uma “decisão paradigmática e extremamente importante”, porque é uma ação movida pelo próprio governo americano (e não por uma entidade civil) e porque reconhece a violação da legislação antitruste sobre uma empresa de tecnologia.
“A Justiça americana reconhece os mercados de mecanismos gerais de busca existem, bem como produtos de textos publicitários nesses buscadores, que o Google possui poder de monopólio e que os acordos de distribuição são exclusionários e possuem efeitos anticompetitivos”, explica.
Cerco contra Big Techs
A decisão pode abrir precedentes e fortalecer o movimento de governos por todo o mundo de apertar o cerco contra as grandes empresas de tecnologia, todas americanas: Amazon, Apple, Microsoft, Meta e Nvidia. Juntas, elas valem cerca de US$ 15 trilhões em valor de mercado e são líderes mundiais na venda de produtos e serviços para a internet, com lucros de dezenas de bilhões de dólares cada uma.
“Uma decisão grande num país repercute em outro. As evidências e raciocínios são transplantáveis e podem ser aproveitados em outros lugares”, explica Caio Machado.
Caio Machado, advogado e pesquisador da Universidade de Oxford
Atualmente, a maior opositora do poder econômico das Big Techs é a União Europeia, que vem aprovando uma série de legislações para regulamentar mercados digitais, que ficam passíveis de multas que acompanham o porcentual da receita da companhia.
O Brasil vem se movimentando contra essas companhias, lembra Machado. Em julho, o governo brasileiro, sob a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), determinou a suspensão dos serviços de coleta de informações da Meta (dona do WhatsApp, Facebook e Instagram) no território brasileiro, sob pena de R$ 50 mil por dia. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, essa decisão marca o início de um escrutínio sobre as Big Tech.
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Já nos EUA, onde estão sediadas essas empresas, o governo americano vem apertando o cerco desde a gestão do republicano Donald Trump, encerrada em 2020, e seguida com mais afinco pelo governo do democrata Joe Biden. Depois do Google, a Amazon, Apple e Meta estão sob escrutínio do governo e podem receber decisões nos próximos meses.
“É um ciclo de retroalimentação global, e não é só os EUA puxando esse movimento de preocupações mais amplas”, diz Machado. O advogado acrescenta que o momento atual está mais favorável a regulações antitruste, se comparado com os anos 2000, quando as companhias de tecnologia eram tidas como startups inovadoras. “Eram empresas de garagem, do bem. Hoje, são gigantes monopolísticas.”
Remédio e próximos passos
Agora, a discussão gira em torno dos possíveis “remédios” que o juiz Mehta pode imputar sobre o Google, que domina 90% da participação do mercado de buscadores.
Esse mercado vem ganhando rivais nos últimos meses. Em julho, a OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou o SearchGPT, um buscador que utiliza inteligência artificial (IA) para pesquisar páginas na Web. Além disso, a startup Perplexity tem ganhado tração com proposta semelhante. A elas se juntam duas rivais tradicionais, o DuckDuckGo e o Bing, da Microsoft. Segundo a Apple declarou a Mehta no julgamento, entrar nesse mercado custaria US$ 6 bilhões à companhia, o que justificou a preferência por se unir ao Google.
Zanatta, do Data Privacy Brasil, afirma que ainda é cedo para avaliar possibilidade de remédios comportamentais ou estruturais, justamente por se tratar de um mercado superconcentrado. Mas a decisão “tende a gerar efeitos positivos” para os rivais.
O analista de mercado Daniel Ives, da consultoria americana WedBush, aponta que pode levar meses, ou até anos, para que os remédios sejam definidos e a decisão, cravada. “Por isso, não esperamos nenhuma disrupção nas operações do Google no curto-prazo”, escreveu a investidores na madrugada desta terça-feira, 6.
Os remédios possíveis podem incluir mudanças drásticas ou suaves no negócio do Google, com impactos neutros ou ruins para a empresa, acrescenta Ives. Um cenário positivo, no qual o Google consegue apelar da decisão em uma instância superior da Justiça, parece improvável.
Para o analista, o melhor cenário possível é o juiz Mehta decidir interromper a distribuição de lucros e compensações da receita gerada (de US$ 20 bilhões, pelo menos) pela parceria com outras empresas, mas permitir o modelo de sinergia com Apple e outras companhias. Segundo Ives, esse é “o melhor resultado possível”, já que não vai penalizar a receita nem as margens de lucro da firma americana.
Um resultado neutro para o Google é a empresa ser forçada a pagar uma multa, mas sem abdicar da parceria com as empresas de tecnologia. Segundo ele, o mercado financeiro deve ignorar a penalidade financeira, em troca de uma redução do risco no modelo de negócios.
Por fim, caso o Google seja obrigado a abandonar a parceria, o efeito imediato é que usuários vão ter de escolher qual vai ser o navegador padrão dos dispositivos Apple e Android e dos navegadores. O resultado pode ser negativo para a gigante das buscas, mas sem efeitos drásticos no negócio, justamente porque o Google segue como o buscador favoritos dos usuários.
Daniel Ives, da consultoria WedBush
“Isso pode resultar em alguma perda de participação no mercado, mas esperaríamos que a vasta maioria dos usuários escolhesse o Google, já que o Google domina a participação no mercado do Windows com o Chrome, apesar de o Edge ser o navegador padrão do sistema operacional para PCs”, escreve Ives.
Caio Machado afirma que uma eventual multa ou ajustes na parceria seria uma “lombada na estrada” do Google. “Isso pode desacelerar, mas não segura a companhia”, diz. “Seria surpreendente se houver uma moção para diminuir esse monopólio.”